Publicado originalmente no site Diário do Alentejo, em 19-08-2011.
A vida de Eurico Reis é dar filmes aos outros
A vida de Eurico Reis, projecionista, poderia dar um filme.
Mas o que o mais lhe interessa é poder projeta-los e mostrá-los às pessoas. Às
pessoas que continuam a ir às salas de cinema ou a assistir aos filmes ao ar
livre. O homem que cresceu e viveu com os olhos postos nos ecrãs de fundo
branco continua na cabine, agarrado à máquina. Até porque é aqui que se sente
bem, no seu cinema paraíso.
Texto Bruna Soares
Eurico Reis projeta filmes há anos. Há tantos anos que já
lhe perdeu a conta. Não sabe quantas películas lhe passaram pelas mãos, porque
esse somatório também há muito que o deixou de fazer. As histórias e as emoções
dos filmes interessam- -lhe mais do que os números.
Num dia igual a tantos outros, onde o vento não sopra e o
sol não brilha, Eurico Reis abre a porta da sua casa. Começa por mostrar umas
fotografias que repousam sobre uma mesa. As mais gastas pelo tempo exibem-no
ainda sem o cabelo grisalho. As provas estão à vista. É, sem dúvida, o ofício
de uma vida.
Eurico Reis, como não poderia deixar de ser, revê-se na
história de um filme. "Cinema Paraíso". A película conta a história
de um rapazinho que, tal como Eurico, se apaixonou pelos encantos da sétima
arte bem cedo. Em "Cinema Paraíso", "Totó", personagem
principal, em criança, fugia para o cinema, espreitando as projeções dos
filmes. Eurico, com oito ou nove anos, também era para lá que corria, fazendo
companhia ao projecionista. Foi nos bastidores, tal como o ator principal do
seu filme de eleição, que Eurico Reis aprendeu a amar o cinema.
"Cinema Paraíso" foi rodado em Itália. O enredo da
vida de Eurico Reis, esse, passa-se em Aljustrel.
"Comecei a ir muito cedo para o Cine-oriental, dada a
proximidade a que este estava da casa dos meus pais. Sempre me interessei. O
senhor Francisco Conceição era, na altura, o proprietário do cinema e eu
mostrava muito interesse, o que o levou a simpatizar comigo. Ajudava no que
podia. Ia buscar com um carrinho de mão ou com uma carreta os filmes à estação
de comboios e à rodoviária de Aljustrel. Colava os cartazes das películas em
exibição no largo principal. Comecei por fazer estas tarefas. Em troca podia
assistir aos filmes", conta Eurico, com um sorriso.
O menino que passou a infância com os olhos postos no ecrã
de fundo branco fez-se homem. Cresceu em altura e consigo cresceram também as
responsabilidades. "Quando já tinha uns 18 anos a Lusomundo comprou o
cinema de Aljustrel e fiquei à frente da sala. Já estava preparado para assumir
essa responsabilidade. Depois fui chamado para cumprir o serviço militar e tive
de abandonar o cinema. No exército, no entanto, ingressei na especialidade
foto-cine – Fotografia e Cinema dos Serviços Cartográficos do Exército. Aprendi
inúmeras coisas na tropa. Interessei-me muito pela fotografia e comecei a fazer
fotorreportagem. Deixei, nesta altura, um pouco o cinema, mas o bichinho ficou
sempre cá".
Os dias do cinema Eurico Reis é, na verdade, um apaixonado
por inúmeras artes. Para além de passar grande parte da sua vida agarrado à
máquina de projeção, vendo os filmes através da própria cabine, passa também
grande parte do seu tempo a pintar, a fotografar e a fazer serigrafia.
"Sou um interessado pelas artes em geral. É este mundo que me fascina e
que me move".
O cinema, sempre o cinema, porém, é o que o ocupa
profissionalmente. Atualmente projeta filmes no auditório António Chainho, em
Santiago do Cacém. É o homem da máquina de projeção. Conhece-lhe a mecânica, o
ouvir do trabalhar. Faz parte de si, até porque o fez sempre.
Eurico, contudo, está consciente do que se passa atualmente
no mundo do cinema. "O cinema, ao longo dos tempos, tem tido altos e
baixos" E, como sabe do que fala, explica: "Quando apareceram as
cassetes o cinema ressentiu-se. Muita gente começou a ver os filmes em casa.
Depois vieram os DVD e, atualmente, a Internet disponibiliza todo o tipo de
filme. Muitos, inclusive, ainda estão em exibição no seu país de origem. A
magia do cinema, aquela pela qual se esperava meses para se ver o filme mais
famoso, perdeu-se".
Eurico foi desse tempo, do tempo em que se esperava para ir
ver o filme ao cinema. "Para as películas chegarem à província era necessário
esperar muito. Primeiro rodavam nas grandes salas, que estavam nas grandes
cidades. Só passado muito tempo é que chegavam e nesse dia, no dia em que eram
exibidos, a sala enchia. O povo vestia-se a rigor e ia ao cinema, que era um
ponto de encontro e de convívio".
De uma coisa, contudo, Eurico tem certeza. "Quem gosta
de cinema continua a ir. O ambiente da sala, os sons, a grandeza do ecrã e toda
a envolvência são coisas que não se conseguem reproduzir em casa. Podemos ter
um ecrã de topo, com alta definição, que não temos as mesmas sensações de estar
a ver o filme no cinema. Essa é a magia que nunca se perderá".
Eurico continua a promover o cinema como pode e tenta
levá-lo a todos os sítios. Tanto que, há uns anos, adquiriu uma máquina de
cinema portátil. "Posso passar cinema em todos os sítios. Basta-me ter uma
parede ou uma tela branca". É o cinema na rua, ao ar livre, lembrando as
antigas esplanadas.
Em 2000 Eurico avançou para ideia de fazer cinema
itinerante. E a sua máquina, de origem chinesa, já correu inúmeros recantos do
Alentejo. "Dá-me prazer levar o cinema às freguesias mais isoladas. Estive
em vários sítios onde as pessoas nunca tinham visto cinema. Por exemplo, na
aldeia de Estrela, no concelho de Moura, a primeira vez que as pessoas viram
cinema foi através do meu sistema. Isto são experiências e sensações que não se
esquecem".
O cinema ao ar livre, para Eurico Reis, "é muito
cativante". "A máquina de projeção está no meio das pessoas. As
pessoas acompanham todo o processo. Veem os rolos das bobines, as películas,
ouvem o barulho da máquina a rodar. É um cinema de proximidade. As crianças
ficam totalmente encantadas e a sensação é muito boa".
Mas também o cinema itinerante já teve melhores dias.
"Este verão está muito fraco. As verbas para este tipo de atividades estão
reduzidas e é muito difícil".
Eurico continua, porém, a meter a máquina a trabalhar.
"Pode estragar-se por rodar muitos filmes, mas também pode estragar-se por
estar demasiado tempo parada", ironiza.
Passados tantos anos, Eurico Reis continua com os olhos
postos no ecrã de fundo branco. Continua a ver muitos dos filmes através da
cabine e o futuro é coisa que não o assusta. E, neste sentido, o cinema digital
também não. "Tudo evolui. É o progresso", considera, até porque, como
diz uma das frases mais célebres do mundo do cinema ("E tudo o vento
levou"), "afinal de contas, amanhã será outro dia!".
Texto e imagem reproduzidos do site: da.ambaal.pt
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