Davide Dalet observa minuciosamente a película antes de projetá-la.
Publicado originalmente no site Swissinfo Ch, em 3 de agosto de 2016.
A magia do 35 mm revive em Locarno
Por Stefania Summermatter e Christoph Balsiger, Locarno
Todo ano, na tradicional retrospectiva, o Festival de
Locarno projeta dezenas de filmes em 16 ou 35 milímetros. É uma escolha
política de defesa da cultura, mas que implica um esforço não negligenciável. A
alguns dias da abertura do festival, swissinfo.ch acompanhou o trabalho de
alguns profissionais da película, um ofício que pode progressivamente
desaparecer.
A imagem de Bud Spencer em “Meu nome é Trinita” aparece como
que por encanto sob a luz de uma lâmpada. A mão protegida por uma luva, Davide
Dalet escorrega a película entre seus dedos. Para a frente e para trás. Ele a
cheira, olha de perto e enfim rebobina com cuidado. Procura pequenos defeitos
que se dissimulam entre as imagens: cores envelhecidas, riscos, rasgos mal
concertados ou legendas que faltam. O objetivo? Verificar que todos os filmes
em 16 e 35 mm selecionados em Locarno estejam em estado impecável e prontos
para a projeção.
Faltam alguns dias para a abertura do festival e trabalha-se
a pleno regime no subsolo do auditório Fevi. Só para a retrospectiva – dedicada
este ano ao cinema alemão- são 60 filmes projetados em 35 e 16 mm. Se pensamos
que cada filme tem uma média de seis rolos de 600 metros, são 250 quilômetros
de película que devem ser analisados e montados em bobinas pela equipe de Marc
Redjil, responsável do que se chama a de “print certification”.
“Devemos preencher para cada filme uma folha de verificação
que contém todos os dados técnicos como o formato, a velocidade de projeção e o
idioma das legendas e a lista de eventuais defeitos. O mesmo trabalho será
feito no fim do festival, antes de enviar as películas a seus proprietários”,
explica Marc Redjil, que também trabalha para o festival de Cannes.
É um verdadeiro trabalho de beneditino. As cópias projetadas
em Locarno são de fato os originais e, como toda obra de arte, elas devem ser
tratadas com o máximo cuidado.
Em viagem com a película.
Caro velho cinema.
Por Christoph Balsiger.
É graças à precisão e à paciência de artesãos da película
que o público do Festival do Filme de Locarno ainda pode sentir a magia dos
filmes em 16 ...
Emoção e sinal político
Depois que o digital começou a se impor dez anos atrás, o
festival de Locarno fez uma escolha clara de continuar a mostrar filmes no
suporte para o qual foram pensados, ou seja, analógico para todos os “velhos”
filmes. E mesmo quando existe uma cópia restaurada em digital.
“Trata-se não somente de respeitar a vontade do autor, mas
também uma escolha baseada na emoção”, explica o diretor artístico Carlo
Chatrian, que durante anos foi responsável das retrospectivas. “Ao contrário do
digital, a película é um instrumento vivo que respira o tempo que a desgasta.
De uma certa maneira, ela dá a possibilidade ao espectador de perceber, através
das pequenas imperfeições, o tempo que passa”, acrescenta.
Mas também há uma razão política: mostrar que uma projeção
em 35 mm não é somente um prazer estético, mas também e sobretudo um valor
cultural. “No mundo ideal, as cópias restauradas e digitalizadas são idênticas
ao original. Na realidade, por razões econômicas, essa transição é feita, às
vezes, de maneira pouco precisa e uma parte das informações é perdida”,
continua Carlo Chatrian.
Retrospectiva alemãEm colaboração com o Deutches
Filminstitut, o Festival do Filme de Locarno apresenta este ano uma vasta
retrospectiva do cinema da Alemanha, de 1949 a 1963. Trata-se de uma
cinematografia pouco conhecida, explica o diretor artísticoCarlo Chatrian, que
reflete as contradições do anos Adenauer, com diretores com dificuldade de
olhar o passado e outros que tendem a seguir a confiança no futuro típica do
modelo americano.Essa retrospectiva apresenta 73 filmes de diretores conhecidos
como Fritz Lang e Robert Siodmak, que voltaram ao país para rodar os últimos
filmes da carreira, e obras menos conhecidas que marcaram a história do cinema
alemão.A escolha dessa retrospectiva é um “presente” ao público de fiéis, os
suíços-alemães que vêm todo ano ao Festival de Locarno, afirma o diretor
artístico.
A procura de peças sobressalentes
Promover filmes em analógico implica um esforço não
negligenciável para um pequeno festival como o de Locarno. A começar pela
infraestrutura. “Para fazer circular os filmes, as películas são enroladas em
uma só grande bobina. No nosso caso, dado que se trata de cópias originais dos
filmes, devemos obrigatoriamente utilizar cinco ou seis bobinas. Portanto, é
preciso dois projetores por sala que funcionam em paralelo. Dito de outra
maneira, quando aparece na tela o tradicional pontinho, o segundo projetor é
acionado com a continuação do filme e assim sucessivamente”, explica Elena
Gugliuzza, coordenadora do setor imagens e som.
Com o fechamento de numerosas fábricas históricas, a
manutenção dos antigos projetores é cada vez mais difícil e cara. Especialmente
porque as peças sobressalentes não são produzidas em série. “Não sabemos se
conseguiremos no futuro a encontrar lentes e lâmpadas que precisamos. Fazemos
estoque de peças do mundo inteiro”, prossegue Elena Gugliuzza.
Não são somente os instrumentos de trabalho que desaparecem,
mas também e sobretudo as competências daqueles que, durante anos, fizeram
funcionar a indústria do cinema, laboratórios de impressão até as salas de
projeção.
Competências que se perdem
Na cabine minúscula do antigo Rex de Locarno, a sala
histórica onde ocorrem as retrospectivas, Pierre Ebollo regula dois velhos
projetores de 35 mm. Seus gestos denotam afecção, mas essa camaronês sorridente
recusa-se a falar de nostalgia. “Os ofícios mudam e é a nos de nos adaptarmos,
sem esquecer do que velho”, afirma. Ebollo conhece perfeitamente como manejar
essas máquinas, como também as digitais. “Eu trabalho como projecionista e
técnico desde os anos 1960, primeiro em Camarões e agora na França e em
diferentes festivais mundo afora”, acrescenta.
Nos festivais de cinema, ainda existe uma rede bem rodada de
pessoas que sabem manipular os velhos filmes. Na Suíça como em outros países
não existe mais uma formação específica para projecionistas em 35 mm, explica
lamentando o diretor da Cinemateca Suíça. “É uma evolução problemática porque
basta uma pequena manipulação errada ou de uma máquina mal regulada para
destruir uma obra de arte”, declara Frédéric Maire. É por isso que a Federação
Internacional de Arquivos do Filme (FIAFLink externo) pensa em criar uma
formação. “Os filmes em película são um mercado de nicho, mas está longe de
desaparecer”, acrescenta Frédéric Maire.
A película morreu, viva a película!
Além de todo o material de arquivo, que representa um século
de cinema, ainda há diretores que preferem o celuloide. Em Cannes e em Berlim,
mas também no Festival de Locarno, regularmente há obras contemporâneas
projetadas em analógico pela escolha do autor.
Quentin Tarantino mandou instalar projetores de 70 mm em
diferentes salas nos Estados Unidos e na Europa para seu último filme “Os oito
bastardos” (2015). Foi uma espécie de cruzada em favor da película de uns dos
maiores diretores.
E o público? Carlo Chatrian não tem dúvida. “O espectador do
festival é um conhecedor que tem um prazer adicional em ver filmes em 35 mm”.
Ou seja, a magia das imagens que vibram na tela e o murmúrio do projetor
continuarão a fazer sonhar os que gostam de cinema, pelo menos durante um
festival.
Texto e imagens reproduzidos do site: swissinfo.ch
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