Publicado originalmente no site Apaladewalsh, em 30 de Julho de 2015.
Retrato de Projecção - O Cinema São Jorge.
De Tiago Baptista
Não foi a minha primeira ida ao cinema, mas foi uma das mais
antigas e mais importantes para tudo o que viria a seguir. Em Março de 1986, os
meus pais levaram-me ao São Jorge para ver Young Sherlock Holmes (O Enigma da
Pirâmide, 1985). O filme não deixou grande memória. O que me impressionou, e
muito, foi a sala de cinema. Com 9 anos, tudo me pareceu desmesurado: ainda na
rua, a fachada com o telão pintado e as vitrines com os cartazes dos outros
filmes em exibição e os anúncios das próximas estreias; no interior, as
escadarias, os átrios, os lustres, a varanda junto ao bar; e dentro da sala,
aquelas filas intermináveis de cadeiras, os varandins de madeira que dividiam a
decoravam a plateia, o pé-direito imenso e o maior ecrã que eu já tinha visto.
Cinema São Jorge
Claro que o São Jorge já fora uma sala de cinema ainda maior
do que aquela que tanto me encheu as medidas em 1986. Quando abriu as portas,
em Fevereiro de 1950, o São Jorge combinava as actuais três salas numa só com
uma lotação total de quase 2000 lugares, igualmente distribuídos entre a
plateia (as salas do primeiro piso) e o balcão (hoje, sala Manoel de Oliveira).
Era a maior sala de Lisboa, a que se juntaram pouco depois outras duas mais ou
menos da mesma dimensão, o Monumental em 1951 e o Império em 1952
o São Jorge
conquistou ainda os lisboetas com comodidades inéditas nas salas da capital: ar
condicionado, um sistema central de aspiração por vácuo, e, tal como os cinemas
ingleses da Odeon detidos pela Rank, um órgão Compton Theatrone
O filme da sessão inaugural foi The Red Shoes (Os sapatos
Vermelhos, 1948), ou não fosse o São Jorge explorado pela inglesa Rank Pictures
Corporation. Desenhado pelo arquitecto Fernando Silva, o edifício reservou
ainda espaço para escritórios e para uma sala de projecção privada. Para além
desta ligação internacional, da sua escala e do uso de materiais de construção
e decoração requintados, o São Jorge conquistou ainda os lisboetas com
comodidades inéditas nas salas da capital: ar condicionado, um sistema central
de aspiração por vácuo, e, tal como os cinemas ingleses da Odeon detidos pela
Rank, um órgão Compton Theatrone (a publicidade garantia que, na altura, só
existia outro nos estúdios da BBC em Londres) que se erguia de um elevador no
centro do palco para animar os intervalos. A inauguração contou com um concerto
de Gerald Shaw, organista escocês da Odeon. Antes de Lisboa, Shaw fora enviado
ao Cairo para tocar o Compton do recém-inaugurado cinema Rivoli. À data da sua
morte, em 1974, Shaw era o último organista de cinema activo em Inglaterra.
Durante os anos cinquenta e sessenta, o São Jorge passou muito
cinema inglês e americano, produzido ou distribuído pela própria Rank e
assistiu às estreias de vários filmes de realizadores portugueses como Perdigão
Queiroga, Fernando Garcia ou António Lopes Ribeiro. Mas as maiores enchentes
desta sala foram provavelmente aquelas que, já depois do 25 de Abril, aqui
trouxeram durante seis meses milhares de espectadores para ver Ultimo tango a
Parigi (O Último Tango em Paris, 1972).
A divisão em três salas aconteceu em 1981 e foi já uma
tentativa de combater a fuga de espectadores provocada tanto pela
desertificação da cidade como pelas alterações nos hábitos dos públicos e ao
aparecimento de novas maneiras de ver cinema, primeiro com as salas “estúdio”,
depois com os multiplexes e, finalmente, com as salas em centros comerciais. No
mesmo ano em que foram inaugurados os cinemas Alfa e o Centro Comercial
Amoreiras, o São Jorge foi vendido a uma empresa americana, a Cinema
International Corporation, que mostraria sobretudo filmes das majors
americanas. Conseguiu sobreviver ao Império e ao Monumental (encerrados em
1983), ao Tivoli e ao Eden (1989), ao Condes (1996), tornando-se assim o último
grande cinema comercial do eixo Baixa-Avenida, mas acabaria por encerrar em
2000, pouco depois da inauguração dos multiplexes dos centros comerciais
Colombo (1997) e Vasco da Gama (1999). Charlie’s Angels (Os Anjos de Charlie,
2000), Battlefield Earth (Terra – Campo de Batalha, 2000) e Snatch (Snatch –
Porcos e Maus, 2000) fecharam a porta do São Jorge, em 29 de Novembro de 2000.
Após um ano de indefinição, o São Jorge foi comprado pela
Câmara Municipal de Lisboa e reabriu em Novembro de 2001 com a estreia de Quem
és tu? (2001), de João Botelho, acompanhado da reposição de Frei Luís de Sousa
(1950) – que ali tinha estreado – e de Lisboa, Crónica Anedótica (1930).
Gerido pela EGEAC, que tem vindo a remodelá-lo desde a
compra municipal, o São Jorge acolhe hoje dezenas de festivais de cinema,
concertos e eventos privados. Nas várias visitas que fizemos ao São Jorge para
este Retrato, o cinema estava sempre activo. Num dia, decorria um festival de
cinema; noutro, o átrio superior preparava-se para se transformar em
quartel-geral do júri das Marchas de Lisboa; noutro dia ainda, vivia-se na sala
principal e nos bastidores a confusão ordenada que antecede a preparação de um
concerto. No centro desta azáfama permanente está a equipa de projeccionistas
de vídeo e cinema coordenada desde 2007 por Fernando Caldeira. Foi com eles que
visitámos as duas cabines actuais do São Jorge. A primeira é comum às duas
salas da antiga plateia , mas apenas na 3 se projecta ainda cinema (a antiga
sala 2, agora Montepio, é sobretudo usada para debates e conferências). Diogo
Viana, 29 anos, mostra-nos esta cabine, o local onde passa mais tempo.
Dedicando-se agora exclusivamente da projecção de video e cinema digital, Diogo
trabalhou nas Amoreiras, onde ainda chegou a aprender como projectar película
com um colega mais velho. Está no São Jorge há 2 anos, mas já sabe muito bem
que não está num cinema qualquer: nota-se que nos mostra com orgulho os
recantos mais escondidos do edifício.
A cabine da sala 3 está equipada com um projector digital
compacto Barco DP90 2K e um servidor CDP2000, um dos primeiros do país, explica
orgulhosamente Fernando Caldeira, responsável pela grande actualização
tecnológica destas salas e, em particular, pela sua transição para o digital.
Ao lado do Barco, um Victoria 5 de 35mm, comprado aos cinema
UCI do El Corte Inglés. Arrumado, um Victoria 8 (antes instalado na sala Manoel
de Oliveira) e agora transformado em projector portátil (não parece, mas é)
para sessões no exterior. Foi usado, por exemplo, em março deste ano no Teatro
de São Carlos para a projecção de The Birth of a Nation (O Nascimento de Uma
Nação, 1915) acompanhada ao vivo pela Orquestra Sinfónica Portuguesa.
Quando subimos à cabine da sala principal, entramos num
mundo completamente diferente. Vestígio de outros tempos, uma pequena divisão
anexa à cabine, hoje usada para arrumos, era o local de onde um bombeiro vigiava
simultaneamente o cinema e os projectores. A cabine propriamente dita é
particularmente espaçosa, a maior que visitámos até agora. No centro vêem-se
dois projectores, um de película e outro digital. O primeiro é um Cinemeccanica
Victoria 8, modelo RK60 (dos anos 1960), capaz de projectar 70mm e 35mm (a
configuração actual), e exibe ainda uma pequena placa onde se lê “Propriedade
Rank Audio Visual”. Tem um sistema de refrigeração alimentado por água e uma
torre rotativa para 3 objectivas. Uma adaptação permitiu instalar bobinas de
maior capacidade para passar filmes inteiros, sem intervalos. Usado
fundamentalmente para as cópias de película que ainda são mostradas nos vários
festivais de cinema, este Victoria 8 não possui agora quaisquer automatismos.
Ao lado, uma estreia nestas crónicas, o primeiro projector
4K que vemos, um NEC NC3240S, instalado em Março de 2014, com uma lanterna para
lâmpadas de 4Kw (ou 7Kw quando se projecta 3D) e um servidor Doremi Show Vault.
Um “monstro” da projecção digital, perfeito para o ecrã gigante do São Jorge.
Nada mais apropriado para uma sala que, já em 1950, se distinguia pelas suas
inovações tecnológicas.
É na velha cabine do São Jorge que conhecemos os
projecionistas Carlos Souto (57 anos) e Jorge Silva (50), duas fontes vivas
para a história da projecção em Portugal.
No início da nossa conversa, Jorge Silva faz questão de
chamar as coisas pelos nomes. Uma coisa é um projeccionista; outra,
completamente diferente, é um “passador de fitas”. O primeiro, explica Jorge,
tinha carteira profissional, mas sobretudo sabe distinguir formatos de imagem e
som e consegue fazer a manutenção elementar da sua máquina. Além disso, Jorge
é, nas suas próprias palavras, um “maluco do cinema”. A prová-lo, tem uma
colecção de filmes e de projectores de 35mm, alguns já montados e a funcionar,
numa casa fora de Lisboa.
O pai de Jorge era projeccionista nas Caldas da Rainha e um
dia castigou o filho obrigando-o a ajudá-lo na cabine. Jorge tinha 12 anos e
nunca se esquecerá daquele dia porque foi o mesmo em que morreu Elvis Presley:
16 de Agosto de 1977. Jorge trabalharia depois em vários cinemas da região do
Oeste explorados por Eurico Martins. Passou pelos Delta das Caldas da Rainha,
mas também por S. Pedro de Moel, Pataias, Nazaré, Maceira, Benedita. As cópias
eram “esticadas” para sessões nas várias salas passando à tarde numa e à
meia-noite noutra, ou levando as bobinas, uma a uma, de cinema para cinema. De
vez em quando a coisa corria mal e os intervalos prolongavam-se
interminavelmente. O cancelamento da sessão e a devolução do dinheiro dependiam
da paciência dos espectadores.
Em Lisboa, passou pelo São Jorge pouco antes da remodelação
de 1981 e voltou definitivamente há 7 anos. Antes disso, Jorge trabalhou no
cinema da Promotora (em Alcântara), no Cine-Pátria (Beato) e no Olímpia.
Trabalhou também nos armazéns de distribuidoras e nas salas de visionamentos
privados da Filmitalus e da Castello Lopes, onde os procedimentos de segurança
contra a pirataria (já então) implicavam códigos, arrumar separadamente os
rolos de cada cópia ou marcar nela o nome do projeccionista responsável. Mas as
histórias que mais parecem entusiasmá-lo, dos cinemas de Lisboa, são as do
período passado nas Twin Towers, em Campolide, exploradas pela Filmitalus entre
2002 e 2008, onde trabalhou pela primeira vez com o sistema de projecção sem
fim típico dos multiplexes e se orgulha de ter feito um interlock especialmente
longo para poder passar um 007 em duas salas muito afastadas.
Carlos Souto também começou novo. Com 16 anos já projectava
16mm na Casa Pia e continuou a fazê-lo depois no RALIS, onde fez a tropa.
Quando saiu, o primeiro cinema em que trabalhou foi o Cine-Pátria, no Beato
(por onde Jorge também passou). Este velho cinema de bairro era explorado pela
Edecine, fundada em 1948 por Baldomero Charneca e que chegou a ter 18 salas a
funcionar simultaneamente em todo o país. A empresa ainda existe, embora desde
1985 se dedique sobretudo ao fornecimento de equipamento para cinemas. Souto
trabalhou noutros cinemas da Edecine como o Popular (Poço do Bispo), o Foca
(Forte da Casa), o Universal (Campolide), o Cine-Azambuja e o Cine-Moscavide,
ou o Cine-Teatro de Mafra. Depois de uma passagem pelo Berna, Apolo 70 e
Caleidoscópio, ligados à Lusumondo, regressou ao Beato. Talvez porque foi ali
que começou a trabalhar, mas também porque “adorava aquela máquina”, ainda se
lembra que o projector do Cine-Pátria era um Philips FP-6 (um aparelho dos anos
50). Quando aqueles cinemas fecharam (o Caleidoscópio foi o último, em 1994),
Souto abandonou a projecção e fez trabalhos de construção civil. Há 17 anos,
mais ano menos ano, veio reconstruir o bar do São Jorge e aqui ficou, como
projeccionista.
Já sabemos que nem todos os projeccionistas têm
necessariamente uma relação forte com o cinema. Não é o caso de Carlos e isso
nota-se em várias pequenas coisas. Nas memórias de como ia, ainda criança, ver
sessões duplas quase todos os dias (“às vezes mais do que uma por dia”); na
colecção de starts e entradas (pontas) de distribuidores que guardou; ou no
tempo que passa em blogs sobre salas de cinema antigas, partilhando as suas
memórias e corrigindo datas e nomes. Além disso, garante-me que é frequente
sair do trabalho e ainda ir ver filmes em casa. Algum género preferido? O
terror, responde sem hesitação. Em Setembro, quando começar o MOTELx: Festival
Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, teremos um projeccionista muito
feliz na cabine do São Jorge.
Fotografias de Mariana Castro.
Agradecimentos: Fernando Caldeira, Carlos Souto, Jorge
Silva, Diogo Viana, Fernando Vidal.
Texto e imagem reproduzidos do site: apaladewalsh.com
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