O projecionista Thaynam Lázaro trabalha no Cinema do Museu
Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem
Publicado originalmente no site do Jornal da Cidade, em em 16/03/2018
Projecionistas levam suas vidas nos corações dos cinemas do
Recife
Profissionais praticamente invisíveis, os projecionistas
colecionam histórias enquanto projetam outras nas telonas dos cinemas
Por Rostand Tiago
O cinema como experiência abraça uma gama de elementos. É um
ritual que começa ao se programar em casa, deslocar-se e sentar em uma sala
escura com estranhos, ficando totalmente vulnerável a uma luz que vem das
profundezas do local. Por trás desta luz, que projeta as imagens das narrativas
(ou não-narrativas), há alguém, de carne e osso, que acaba por acumular
histórias ao projetar outras. A visão ampla da sala de exibição e os percalços
da profissão ajudam nisso. E assim, estes projecionistas, profissionais
invisíveis, levam suas vidas nos corações dos cinemas da cidade.
Miguel Tavares, 44, tem sua vida ligada a cinemas desde sua
juventude. Seu pai trabalhou na construção do extinto Cinema Veneza, localizado
na Rua do Hospício, e garantiu um emprego na área de limpeza após o término da
obra. Foi por meio dele que Miguel também começou a trabalhar na mesma função
no local e foi migrando por vários cinemas, até parar no São Luiz. Lá, começou
a frequentar a cabine da projeção e foi aprendendo o ofício de longe, apenas
observando. Quando um projecionista precisou tirar férias, surgiu a
oportunidade de mostrar sua expertise com o equipamento. Vingou e já trabalha
como projecionista há 12 anos.
"Sempre fui apaixonado por cinema, aperreava meu pai
para me colocar pra dentro da sessão nos fins de semana e hoje estou aqui,
trabalhando no coração do cinema", afirma Miguel. Entre suas histórias
enquanto projetava histórias, ele lembra de quando precisou ficar mais de duas
horas com a mão dentro do projetor. "O filme de película 'torou' durante a
projeção e não podia deixar arranhar a fita, então coloquei a mão lá para
impedir isso. A sessão estava lotada, era uma pré-estreia, se parasse a
exibição, ia ser o maior vexame. Botei o dedo para a fita correr livre e não
tocar em nada por duas horas", relembra.
Situações como essa ficaram mais raras com a transição do
equipamento de projeção, que passou da película de 35 mm para o DCP digital,
com o projetor adquirido em 2015 pelo São Luiz. "Antes a gente recebia o
filme dividido nos rolos e tínhamos que montar em ordem no projetor. Precisava
de bastante atenção para o filme não ficar de cabeça pra baixo ou fora da sequência.
Agora no digital, tem que ter bastante atenção, colocar o filme certo na
playlist, para não ter confusão. Não que a película seja ruim, mas a mudança a
qualidade de imagem e som do digital é muito boa", explica. O antigo
projetor ainda é mantido e alguns filmes são exibidos nele.
Quem também passou por essa transição tecnológica no cinema
foi João Bosco, 54. Entrou profissionalmente para o Cinema São Luiz há 36 anos,
em 1982, como técnico de refrigeração. Com o fechamento do cinema em 2006, ele
foi transferido para o cinema do Shopping Boa Vista, onde aprendeu o ofício de
projecionista. O São Luiz reabriu em 2009 e precisavam de alguém que
trabalhasse na cabine e conhecesse o local. Assim, João foi logo convidado para
voltar a trabalhar no local, desta vez na cabine de projeção, onde aprendeu
também a manipular o equipamento digital com um técnico de São Paulo.
"A película é muito mais complicado. Ela vem dividida,
então tem que verificar se está tudo certo, montar parte por parte. Digital é
como se sentasse em sua casa, colocasse um DVD e assistisse", afirma. João Bosco, se orgulha que nesses 12 anos de
profissão, nunca ter acontecido nenhum problema em suas projeções e diz ter uma
afeição especial aos métodos mais antigos. "Trabalhar com película é uma
coisa linda, ir para a bancada, revisar o filme, montar, colocar no projetor,
fazer emenda em menos de um minuto caso a fita parta. Digital é mais
vazio", conclui João.
Uma história de 20 anos por trás da luz
A projecionista Luciene Arruda possui uma trajetória
semelhante a de João Bosco, trabalhando em shoppings e em cinemas menores, com
uma carreira cheia de idas e vindas. Tudo começou há 20 anos, quando Luciene se
candidatou para trabalhar na bomboniere do cinema do Shopping Recife. A administração
do local avaliou o currículo dela e preferiu colocá-la na cabine de projeção,
já que tinha alguns cursos da área de eletrotécnica na bagagem. “Tive um
treinamento de dez dias lá, aprendi na porrada mesmo, nem sabia como era uma
sala de cinema por dentro. Vi todas as máquinas e fiquei ‘meu Deus, vou
conseguir mexer nisso não’”, conta Luciene.
Ela venceu as máquinas e trabalhou no complexo sistema de
exibição de um cinema multiplex, com dez salas. "Era muita sala para
organizar, então a gente não ficava necessariamente na cabine, ficávamos em uma
central de monitoramento das cabines. Quando dava algum problema, a gente ia
para as cabines e resolvia", conta. Passou dois anos nessa jornada mais
movimentada, até que foi chamada para trabalhar na Prefeitura do Recife, no
Teatro do Parque no Cine Apolo. Foi conciliando a vida entre a projeção e os
estudos de graduação em pedagogia por 18 anos. Estava pronta para começar a
lecionar quando foi convidada para trabalhar no Cinema do Museu, administrado
pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
Nessas rotinas, adquiriu um arsenal de habilidades em
diversos tipos de projeção. Super-8, 16 mm, 35 mm e, mais recentemente, a
digital. "Ao trabalhar com uma sala só, é menos corrido. Como só tem um
projetor, a possibilidade de ocorrer um erro deve ser zero. Eu faço tudo com
muita responsabilidade para isso não acontecer. Eu amo cinema, então tenho
concentração máxima entre tela e projetor, para não deixar nada errado",
explica.
O "teste das cabeças"
Mesmo com essa possibilidade de algo dar errado ser quase
zero, às vezes algo acontece, mas nada que seja irremediável. Uma das pessoas
que divide essa responsabilidade com Luciene no Cinema do Museu é Thaynam
Lázaro, que desenvolveu técnicas para conferir se está tudo correndo bem.
"Nossa profissão é praticamente invisível, o público só lembra da gente
quando algo dá errado. Então, eu uso o 'teste das cabeças' para saber se tá
tudo bem. Se as cabeças estão viradas para a tela, as coisas estão funcionando
certo. Se estão me olhando, é que tem algo errado", elucida Thaynam.
A relação do jovem de 27 anos com a sétima arte vem desde a
infância, quando começou aos 9 anos a frequentar sozinho a sessões do acessível
cinema do Teatro do Parque, hoje fechado. "Eu estudava no centro da
cidade, ia para o Parque e via o mesmo filme um milhão de vezes", afirma.
Frequentava também outros cinemas do centro, chegando ao ponto de conhecer os
funcionários do cinema do Shopping Boa Vista e conseguir entrar de graça quando
as sessões não estavam muito lotadas. Apaixonado, formou-se em Cinema e
Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e participou de um
curso para se capacitar na área de projeção. Thaynam ainda se envolve com
produções no seu tempo livre.
Segundo ele, o que mais pesa quando pensa na profissão é a
responsabilidade com o aparato que lida. "São equipamentos caros, é um
órgão público, se quebrar alguma coisa, o cinema meio que fecha. É preciso ter
muito cuidado e zelar por tudo", aponta. Esse zelo é sintomático de um
profissão que zela também pela experiência cinematográfica para quem faz todo o
ritual da ida ao cinema. Afinal, se a sétima arte mudou a vida destes
profissionais invisíveis, que ajudam no bombeamento do coração do cinema, nada
mais justo do que se esforçarem para que ela continue existindo da melhor forma
e mudando outras vidas.
Texto e imagens reproduzidos do site: jconline.ne10.uol.com.br
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