Alice Gonzaga e Bebel Assaf, filha e neta do fundador da Cinédia
Foto: Vânia Laranjeira
Publicado originalmente no site Cultura RJ, em 19.07.2011
Preciosidades do cinema, num casarão na Glória
Acervo da antiga Cinédia é acalentado pela família de
Adhemar Gonzaga, seu fundador
Sempre que vai à Feira de Antiguidades da Praça XV, no
Centro do Rio, a pesquisadora Alice Gonzaga se ressente com um anacronismo.
"Olho para o chão e vejo, estendidas, imagens de pessoas com quem eu
convivia", diz, sobre as fotos antigas oferecidas para venda,
acrescentando que, dia desses, flagrou a si própria, ainda menina, num dos
registros.
Desde os 6 anos de idade, Alice, hoje com 76, dedica-se a
resguardar dos efeitos do tempo imagens importantes para a memória cultural do
Brasil. Filha do jornalista e cineasta Adhemar Gonzaga, fundador da mítica Cinédia?
nada menos que o primeiro estúdio cinematográfico do país -, ela preserva, num
casarão histórico no bairro da Glória, parte essencial da cinematografia
brasileira, além de registros raros do começo do século passado que lançam luz
a produções de outros países.
"A maioria das pessoas pensam que só guardamos material
da Cinédia. Mas a parte mais preciosa do nosso acervo são fotografias e
documentos de produções alemãs, dinamarquesas americanas e francesas das
décadas de 1920 e 1930. Temos aqui imagens que não existem mais em seus países
de origem, porque foram destruídas pela guerra", conta.
O "aqui" refere-se à casa na Rua Santa Cristina
que, rebatizada com o nome Cinédia, abriga há três anos os arquivos que antes
habitavam os estúdios de Jacarepaguá. Por lá estão guardados equipamentos que
testemunharam as primeiras filmagens brasileiras; fotos, cartazes, contratos e
documentos de filmes de diferentes fases e estilos do cinema nacional; cerca de
40 fitas de obras produzidas pela Cinédia original. Mas não apenas isso.
Colecionador voraz desde a infância, Adhemar Gonzaga preservou em seus arquivos
um vasto material sobre o cinema e a cultura ao redor do mundo, o que inclui
desde recortes de jornal até fotos que recebia divulgando produções
estrangeiras. Alice herdou a mania do pai, e continua engordando os arquivos,
que contam com mais de 250 mil imagens.
Em família
Além da abrangência do acervo da Rua Santa Cristina, o que
surpreende no trabalho atual da Cinédia é o caráter familiar que o sustenta.
Fora Alice, trabalham no arquivo duas de suas filhas: Bebel e Maria Eugênia.
Juntas, as três administram e cuidam do acervo, rejeitando qualquer
possibilidade de abri-lo a parcerias públicas ou privadas.
"Eu defendo esse arquivo com unhas e dentes. Quero
tê-lo sob meus olhos, garantindo sua integridade", justifica a matriarca,
ela própria um arquivo vivo. Grandes figuras da cultura brasileira eram,
afinal, personagens corriqueiros em sua vida desde o berço. "Eu gostava de
ir à costureira com a Carmem Miranda, quando criança. Só lamentava que o
caminho fosse tão breve: bastava uma caminhada até a Lagoa, no Edifício
Lombardi". Com Humberto Mauro, grande colaborador dos estúdios Cinédia,
Alice teve pouco contato. Mas conviveu longamente com o casal Vicente Celestino
e Gilda de Abreu. "O Vicente era muito simpático e alegre, não tinha nada
daquela tristeza toda de O ébrio. Mas a Gilda era muito mandona. Foi ela que
segurou a carreira do Celestino, era a cabeça do casal", conta.
Sem qualquer patrocínio, a Cinédia atual tem a base de sua
receita na venda de reproduções de fotos e de trechos de filmes. "Na
internet há bastante coisa, mas a qualidade não é a mesma", justifica. Há
1 ano, duas salas do casarão são usadas para cursos, que vão da música aos
quadrinhos. O acesso ao acervo, porém, acontece de forma mediada. Quem descreve
é a própria Alice: "Os pesquisadores devem me procurar, explicar o
objetivo da pesquisa e eu mesma separo o material. Infelizmente, isso é pago,
de acordo com o volume de informações envolvidas. Afinal, precisamos manter
essa casa".
O rigor nos procedimentos possivelmente afasta candidatos à
pesquisa, a própria Alice admite. "Sou chata", diz, bem-humorada.
Algumas pessoas acabam conquistando, porém, regalias. É o caso do escritor Ruy
Castro, que recorreu às raridades do acervo quando escreveu a biografia de
Carmen Miranda. "Meu sonho é convencê-lo a escrever agora a biografia do
Adhemar Gonzaga", revela a pesquisadora, que acalenta o hábito de chamar o
pai e as filhas pelo nome próprio. "Precisamos zelar pelo
profissionalismo", justifica.
Mas há outros sonhos que Alice enumera. Um deles é conseguir
digitalizar os filmes feitos pela Cinédia. Há pouco tempo, cinco deles foram
restaurados, graças ao apoio da Petrobras. "Queremos restaurar outros, mas
preciso recobrar o fôlego. Os laboratórios no Brasil têm um processo muito
demorado. Às vezes eu penso se não seria mais fácil fazer esses restauros em
Amsterdã", brinca.
Outro sonho é criar um Museu do Cinema. E convencer algum
carnavalesco a transformar em samba-enredo o filme Alô, alô Carnaval.
"Cada número musical seria uma ala", imagina.
Juliana Krapp
Texto e imagem reproduzidos do site: cultura.rj.gov.br
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