Publicado originalmente no site FILMSPOT, de 18 de março de 2023
"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
O projecionista ideal (no tempo das revistas)
Durante o século XX, a projeção de cinema chegou a ter várias publicações que lhe eram inteiramente dedicadas.
Uma das consequências menos propaladas da crise na imprensa é, a meu ver, o "afunilamento" de géneros e temáticas. No caso das revistas, a padronização e as mudanças tecnológicas levaram à extinção de uma enorme quantidade de títulos e ao desaparecimento de um alargado leque de temas que passaram a ser meras lembranças de eras e modelos de sociedade onde o escrutínio jornalístico se envolvia nas mais variadas áreas da atividade humana.
A alma mais curiosa (sobretudo, a que agora redige estas linhas) encontra um bom exemplo disso nas publicações periódicas de há muitas décadas dedicadas ao mister da projeção de cinema, tal como a conhecemos ao longo do século XX. Em concreto, ficaram para a história as revistas 'The Motion Picture Projectionist', 'International Projectionist' e várias páginas da britânica 'The Bioscope'.
Editada em Nova Iorque, entre 1927 e 1933, e de tiragem mensal, a 'The Motion Picture Projectionist' foi pioneira na criação de uma revista direcionada aos profissionais das cabines de projeção dos Estados Unidos da América.
Tratando-se, provavelmente, de uma resposta da indústria à crescente popularidade do cinema naquela época – não por acaso, a sua edição inaugural inclui uma "mensagem aos projecionistas" assinada por Thomas Alva Edison, um dos inventores da câmara de filmar –, assim como pela perceção da figura (e qualidade) do projecionista enquanto elemento diferenciador numa lógica de concorrência comercial, a 'The Motion Picture Projectionist' fomentou, ao longo de 48 números, diversos textos de cariz técnico e tecnológico subjacentes a projeção de cinema.
De 1933 até junho de 1965, também com redação em Nova Iorque, a 'International Projectionist' foi a publicação mais longeva dedicada ao tema. À semelhança da sua antecessora, os artigos exaustivos sobre as especificidades técnicas da profissão ocupam parte substancial da revista; aqui, a principal novidade foi mesmo o apelo "mercantil" que marcas e fabricantes (Kodak, Simplex, Essannay Electric, Motiograph, Philips...) imprimiram às suas páginas, por intermédio de anúncios sui generis em absoluta harmonia com a atmosfera publicitária da sua época.
Do outro lado do Atlântico, a londrina 'The Bioscope' foi, até à última edição, em maio de 1932, uma revista semanal devotada à atualidade, noticiosa e generalista, da Sétima Arte, tendo, a certo momento, reservado espaço para a abordagem ao trabalho do projecionista.
Conforme as suas congéneres norte-americanas, o foco dessa secção (designada "Modern Cinema Technique") recaía sobre considerações técnicas muito específicas, tais como o funcionamento de máquinas de projeção, a utilização dos primeiros dispositivos para filmes sonoros, ou o apropriado manuseamento das propriedades inflamáveis da película de nitrato.
Para os curiosos em consultar estes periódicos, fiquem com a certeza de que encontrarão um infindável conjunto de "jargão" técnico: uma genuína avalanche de artigos subordinados a mecânica, ótica e acústica, a conceitos como inspeção de cópias para projeção, amperagem e geradores elétricos, retificadores, distância focal, hastes de carbono, arcos voltaicos, lâmpadas de xénon e Cruz de Malta, ou esquemas e diagramas de engenharia civil em prol da construção de cabines de projeção.
Ali, encontrará frases tão "insondáveis" como "uma tela iluminada por um arco de 120 amperes não causará o efeito de parecer duas vezes mais brilhante do que uma tela iluminada por um arco de 60 amperes". Em suma, não será exagerado afirmar que, com a literatura publicada nestas revistas, poder-se-ia conceber, de raiz, uma sala de cinema...
Bioscope
Do ponto de vista historiográfico, folhear as várias edições da 'The Motion Picture Projectionist' ou da 'International Projectionist' é, também, observar a evolução da própria arte do cinema.
Consoante a época em consulta, vislumbramos o impacto que o advento do filme sonoro, da película a cores, dos grandes formatos (70mm, CinemaScope, Cinerama...), das primeiras experiências em estéreo, ou do mercado dos cinemas drive-in, conferiram ao quotidiano laboral do projecionista.
Apesar desta quantidade e qualidade de conteúdos técnicos, as revistas sobre projeção de cinema nunca descuraram o lado humano daquele ofício. Em cada número, é possível encontrar referências a boas práticas e segurança de trabalho, classificados de compra e venda de maquinaria de projeção cinematográfica, correspondência enviada para as redações e, de modo particular, a referência à atividade sindical afeta aos projecionistas norte-americanos.
Pelo meio, há ainda a possibilidade de fruir da prosa dos vários articulistas destas publicações, e resgatar, por exemplo, o cariz singelo deste parágrafo escrito por Harry Rubin, supervisor de projecionistas para a cadeia de cinemas Publix Theatres, publicado a janeiro de 1928 na 'The Motion Picture Projectionist':
"Por regra, nós, os projecionistas, não nos consideramos como artesãos. Vendamos a nós mesmos a ideia da nossa própria importância. Somos o espetáculo e, quanto mais cedo acordarmos para esse facto, melhor. Todos ouvimos falar, uma e outra vez, sobre o poder do projecionista para "fazer ou desfazer um espetáculo". E esse ditado é absolutamente verdade; o projecionista tem o trabalho mais importante da sala de espetáculos, seja ela na Broadway, ou na Main Street."
Atualmente, quando a qualidade (ou a sua ausência) na exibição cinematográfica já invoca "textos de desagrado" em sites culturais, recuperar os periódicos citados assinala, também, o (re)encontro com uma época onde o investimento na formação e divulgação técnica do projecionista era encarado como um garante, humano e comercial, para a valorização da experiência do cinema em sala.
Texto e imagens reproduzidos do site: filmspot pt/artigo
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