Cinema Paradiso em Terras Alencarinas.
Em um dia de sol escaldante, procurando há quase uma hora a
Rua Padre Graça, finalmente a encontramos. Uma ruela que abrangia dois
quarteirões, tão desligada da correria da cidade que nos sentimos transportados
ao interior. Era um lugar quase bucólico: as crianças brincando na rua, as
senhoras conversando sentadas na calçada e os homens jogando xadrez na praça. O
Cine Nazaré, com todo o seu jeitão de cinema antigo de cidade pequena, não
poderia estar mais bem localizado.
Fomos recebidos por Raimundo Carneiro de Sousa, o Seu Vavá.
Um senhor aparentemente comum. Aparentemente. Foi só começarmos a gravar para
que cada fio de cabelo que tínhamos se arrepiasse. Sentíamos como se
estivéssemos conversando pessoalmente com o personagem Totó, de Cinema
Paradiso. Descobrimos que, assim como os filmes, um projecionista também é
capaz de nos encantar.
A paixão de Seu Vavá pelo cinema vem desde criança, quando
se esgueirava para ver os filmes pela fresta da porta do cinema, pois não tinha
dinheiro para o ingresso. Daí a fazer suas próprias sessões de cinema para os
amigos não custou muito. Ele mesmo criou o projetor, parco e improvisado, mas
era um sucesso. O jovem sonhador cresceu, mas a vida o impelia ao cinema. Seu
Vavá começou a trabalhar, primeiramente para frades alemães pertencentes à
Ordem Franciscana Menor, que fundaram o Cine Familiar, em 1935. Encomendaram a
ele quadros e molduras para a Igreja. Posteriormente, as encomendas passaram a
ser também para o cinema, como tabuletas para propaganda dos filmes, conserto e
confecção de cadeiras, entre outros. Seu Vavá sempre procurava entregar as
encomendas na hora das sessões, podendo, assim, assistir ao maior número de
filmes e seriados possíveis.
Somente em 1949 Seu Vavá foi de fato contratado como
funcionário do Cine Familiar. De início, fazia a limpeza do salão, passando
mais tarde a assumir o encargo de entregar os rolos de filme 35mm ao escritório
do Grupo Severiano Ribeiro, que alugava filmes aos exibidores locais.
O Grupo Severiano Ribeiro, à época, exibia os filmes bem
antes dos exibidores de bairro. Já assumindo a tarefa de ajudante de operador,
Seu Vavá assistia ao máximo de filmes que podia no Cine Majestic, no Cine
Moderno ou no Cine Diogo, que eram os grandes exibidores da época. Como os
frades só alugariam o filme meses depois, Seu Vavá anotava todas as cenas que
os frades achariam impróprias (como uma mulher com trajes de banho, ou um beijo
acalorado), para depois serem feitos os cortes necessários.
Não demorou muito para que, habilidoso, assumisse o cargo de
projecionista efetivo do Cine Familiar. Os frades ainda lhe deram uma passagem
de avião e lhe enviaram para a grande cidade de São Paulo, para que ele fizesse
cursos de mecânica e eletrônica em uma fábrica. Quando voltou para Fortaleza,
os frades aparelharam novamente o cinema, com equipamentos mais modernos, e o
reformaram. Seu Vavá tornou-se então o novo gerente do Cine Familiar em 1952.
Empolgado e orgulhoso, Seu Vavá nos contou que, com a
reforma e com a nova gerência, o Cine Familiar tornou-se o único entre os
cinemas de rua que tinha ar condicionado também na cabine de projeção, além de
quatro amplificadores, cabine com dois projetores e tela cinemascope importada,
o que também tinha como benefício o fato de o cinema nunca ter parado uma
sessão sequer por falha nos equipamentos.
Com tantas vantagens, o novo cine Familiar contava com os
mesmos confortos e qualidades de cinemas grandes, o que começou, segundo Seu
Vavá, a incomodar o Grupo Severiano Ribeiro. Começaram a aparecer, então,
dificuldades de se alugar filmes da distribuidora. O jeito foi fazer amizades
com a Cinemar, que trazia filmes de Recife, que era um centro de referência na
distribuição de filmes pelo Brasil. Mesmo conseguindo o apoio de bons
fornecedores, a Severiano Ribeiro ainda detinha maior quantidade de filmes, o
que resultou em um recuo de fornecimento, uma vez que o Severiano deixaria de
alugar tais filmes e o Cinemar perderia vários clientes.
Foi quando Seu Vavá conheceu o gerente que coordenou a Metro
no Recife, que forneceu a ele os filmes da programação para o Cine Familiar.
Com a volta de tais filmes depois de muitos anos sem serem exibidos, o sucesso
foi certeiro. O cinema dos frades voltou a fervilhar, mesmo com a mutilação que
a ação do tempo provocou neles. Mas até nisso o Seu Vavá conseguiu se virar:
ele inventou uma máquina que permitia ver o filme na mão, de modo a
coordená-lo. Deste modo, os filmes foram “reeditados”, fazendo com que os danos
não fossem tão evidentes.
Foi então que um dia apareceu à porta do Cinema Familiar o
dono do Severiano Ribeiro em pessoa para oferecer uma grande quantidade de
filmes para que o Cine Familiar voltasse a ser parte do grande grupo. O acordo
foi aceito, uma vez que estava cada vez mais difícil conseguir filmes dos
distribuidores de Recife. O acordo trouxe vantagens para a nova fase do cinema
dos frades. O cinema de bairro lançava os filmes não mais meses depois do
lançamento deles em grandes salas de cinema, mas simultaneamente a tais
exibidores.
Seu Vavá, estranhando tantas vantagens, acabou descobrindo
que em São Paulo uma nova e grande distribuidora visava atrair cinemas
independentes de todo o país, inclusive os nordestinos. Foi quando o Cine
Familiar rompeu com a Severiano Ribeiro e fechou contrato com a empresa
paulista Fama Films. Como esta distribuidora pertencia a dois irmãos italianos,
o Cine agora exibia filmes italianos de arte, fazendo com que iniciasse os
tempos de glória do Cine Familiar. Filas de virar as esquinas se formavam para
as exibições dos novos filmes.
Mas, em 1968, o Cine Familiar estava fechando. Segundo Seu
Vavá, os motivos eram claros: a igreja não mais suportava os filmes não tão
censurados que o cinema dos frades exibia, o que ocasionou o fechamento da
sala. Já os frades anunciaram que a exibição de mais filmes causaria prejuízo
para eles, o que não fazia muito sentido, uma vez que o cinema estava a todo
vapor, lotando em todas as seções e lucrando em sua bilheteria.
Foi então que nosso Totó particular decidiu ter seu próprio
cinema. Achando que finalmente poderia ter liberdade para projetar os filmes
que bem entendesse, comprou o Cine Nazaré, que já havia funcionado anos antes.
No entanto, era o auge da ditadura militar. Seu Vavá se viu obrigado a dançar
conforme a música. Ao início de cada sessão, 4m de filme com a carta da censura
eram projetados na tela, mesmo as sessões da tarde eram proibidas para menores
de 18 anos e, novamente, Seu Vavá viu-se obrigado a mutilar filmes e mais
filmes para que se adequassem à censura. Sucumbindo à pressão, o cinema fechou em
1974.
No entanto, quando a sua mulher adoeceu, Seu Vavá sentiu-se
impelido a reabrir o cinema. Em 2008, aquelas poltronas vermelhas serviram de
encosto para ávidos cinéfilos mais uma vez. Diferentemente dos caríssimos
multiplex de hoje em dia, o Cine Nazaré é democrático. Uma urna de madeira na
entrada deixa bem claro: paga quem puder, e o quanto quiser. Difícil é decidir
um preço justo a pagar pela nostalgia de assistir a filmes clássicos em um dos
poucos cinemas de rua remanescentes.
Texto reproduzido do site: cinemaeaudiovisual.ufc.br
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