Publicado originalmente no blog Cine Argus, em 22/10/2015.
Meninos Curiosos.
Por Edivaldo Moura.
Meninos Curiosos.
Por Edivaldo Moura.
"Meu irmão era operador. Eu gostava de ir observar,
sempre fui curioso. E meu irmão dizia "olha, o Duca não gosta de ninguém
aqui! Desce, desce, desce!". Quando foi um dia, Seu Duca vinha na
escadaria e disse “ei, Chiquinho, não faz isso não. Deixe ele aí, que eu gosto
de gente curioso assim. Quem sabe um dia ele não vai nos servir, pro cine
argus”. O depoimento é de Ademar dos Santos, técnico do Cine Argus por décadas,
que ainda se emociona ao falar do antigo cinema de rua de Castanhal e de Seu
Duca, patrão e amigo de longo tempo.
Não é a toa que Seu Duca gostava de gente curiosa.
Especialmente, de gente curiosa pelo cinema. Nascido em 1918, o garotinho
Manoel (Duca), por volta de 6 anos, admirava o Cine Teatro Kosmos, que ficava
em frente a casa de um farmacêutico com o qual morou durante um período de
dificuldades financeiras de sua família, na cidade de Bragança. O que mais o
encantava era o trabalho de preparação artesanal dos cartazes (que o inspiraria
a fazer o mesmo com o Cine Argus) e o funcionamento da máquina de projeção.
"Mas, não é que eu gostasse só de ver o filme na tela, o meu encanto era
ver a máquina funcionando (...) Eu queria ver porque é que as pessoas andavam.
Saber o porquê. Porque ele colocou a fita e tal, movimentava, aparecia lá na tela.
Mas, eu olhava pra máquina e não via nada, só via a fita parada (...) E eu
perguntava pro operador 'o que é que faz andar, hein?", afirma Seu Duca em
entrevista concedida ao filho Chico Carneiro em 1977. Tanta curiosidade levou
Seu Duca ao sonho de ter um cinema, o que conseguiu realizar em Castanhal, por
volta de seus vinte e poucos anos.
Ademar dos Santos nos recebeu no ano de 2014, em meio à sua
imensa coleção de vinis, em sua oficina, onde utiliza a intimidade de muitos
anos com os equipamentos de projeção do Cine Argus para fazer consertos de
eletrodomésticos. Do cinema onde trabalhou, guarda muita saudade. Afirma nunca
ter pisado nas salas multiplex do Moviecom, no Yamada Plaza Castanhal. "Se
eu for lá, eu sei que a lágrima vai descer, porque eu sinto saudade disso (...)
dói você ta perto daquele equipamento que você lidava com ele desde criança,
conhecer com a palma da sua mão... dói pra caramba", diz.
Nosso entrevistado relatou que seu primeiro serviço no Cine
Argus foi como ajudante em uma pintura do prédio. O rapaz curioso foi em
seguida contratado como faxineiro. De faxineiro, passou para revisador. De revisador
para operador. E de operador se tornou o técnico da empresa, quando tinha entre
19 e 20 anos.
Das várias histórias curiosas contadas na entrevista de
Ademar dos Santos há uma que diz respeito ao momento em que o Grupo Severiano
Ribeiro deixou de fazer a distribuição de filmes para os cinemas do interior do
Pará, na segunda metade dos anos 60. "Quando foi véspera de natal, seu
Duca foi lá (em Belém), tava cortada a programação do interior, dele e do meu
primo em Capanema. Rapaz, nesse dia eu vi esse homem chorar. Aí ele disse
“Ademar, o que eu faço?” Era o dia de, depois da projeção, sair a gratificação
para cá um dos funcionários. Eu disse “não, seu duca, não se perturbe não, que
pra tudo tem um jeito, Deus dá um jeito pra tudo", relembra Ademar. A
solução para o problema não podia ser mais criativa e contou com o improviso
dos dois. Seu Duca pediu a Ademar que tentasse montar um filme a partir de
restos de película existentes no forro do prédio, para salvar a renda do Natal.
"Naquele tempo, o público era um ou outro que entendia
de cinema. Era escolhido o público seleto para compreender", relata
Ademar. "Então eu disse 'eu vou montar um filme aqui, pra não ficar sem
filme no natal'. Emendei um bocado de partes, umas quatro partes. “E aí, que
nome é?” (perguntou Duca). “Ah, não tem nem nome isso aí”. Eu pensei “ah, poe
aí... Rua da Saudade (RISOS). Aí ele fez
a placa e disse “Rapaz, você tem uma cabeça...”. Aí começou. Eu ouvia o povo
dizer "rapaz, eu vou embora, que eu não sei que diabo de filme é
esse!". Mas, arranjou o dinheiro pra dar a gratificação de cada um e ainda
sobrou o dinheiro da passagem pra ele ir pra Recife no dia seguinte. Dia de
natal ele viajou pra Recife pra tentar a programação direto de Recife pra
Castanhal. E conseguiu", lembra Ademar.
Depois desse fato, Seu Duca estimulou a reaberta de diversos
cinemas no interior do estado do Pará, criando um circuito exibidor com mais de
30 salas de cinema. Adquiriu equipamentos de vários cinemas do sudeste do
Brasil, que estavam fechando suas portas frente à concorrência com a televisão,
para servir às suas praças. Os anos 70, marcados pelos faroestes, foram um
período áureo para o recém criado circuito da Empresa Argus. O menino curioso
que queria ter um cinema agora tinha mais de 30. E o outro garoto curioso que
gostava de observar o projetor, se tornaria o técnico responsável por diversos
projetores dessas praças.
Texto e foto reproduzidos do blog: memoriasdocineargus.blogspot.com.br
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