Diretor Italiano: Giuseppe Tornatore.
Publicado originalmente no blog O Cinema Paradiso, em 2 de março de 2015.
"Cinema Paradiso": Um doce olhar sobre as coisas
inesquecíveis que passam e sobretudo que ficam.
Por Prof. Márcio Araújo.
Por Prof. Márcio Araújo.
Ao assistir e contemplar o filme "Cinema
Paradiso", do diretor italiano Giuseppe Tornatore, senti a leveza de um
beijo imortal no meu coração de apaixonado pelo cinema. Magicamente ficou
perceptível que a existência não é só a realidade, pois, perante nossas
limitações e defeitos, a imaginação adocica a amargura provocada pelo peso da
vida e pela brutalidade dos fatos.
O ambiente onde se configura uma grande parte da trama, a
sala de cinema, é um local de convívio, um espaço de encontro de uma comunidade
siciliana afetada pela conjuntura histórica do pós Segunda Guerra Mundial. A
própria distribuição dos espectadores no espaço, apresenta-se com uma
radiografia das hierarquias da pequena aldeia, uma verdadeira micro-sociedade:
ricos e poderosos ocupam o andar superior de onde olham para o povo comum que
se agita em baixo, na plateia.
Na escuridão, iniciam-se romances, selam-se amizades, bebe-se
vinho, fumam-se cigarros, embalam-se e amamentam-se bebês, batem-se pés,
celebram-se vitórias. Podemos verificar, de forma impressionante, que o
espectador tem a oportunidade de ver projetado nesses personagens e nessas
imagens cenas da sua própria vida, problemas que são seus, angústias e alegrias
pelas quais passaram. Isto significa que o cinema oferece capacidade de
identificação que está no seu fascínio. Esta função de espelho permite que cada
pessoa, de modo livre, olhe para si, pense sobre si e reflita sobre a sua vida.
Na sociedade italiana de valores majoritariamente católicos,
todas as Instituições sofriam a influência da Igreja e para a população da
aldeia de "Cinema Paradiso", assistir a filmes era um ritual sagrado,
equiparado a própria missa. Mas ao contrário da pluralidade da arte, a Igreja
oferecia sempre o mesmo enredo, uma mensagem eclesial repetitiva, imposta e
conservadora. Para a Igreja, O Cinema Paradiso é o local de todos os pecados,
onde existe o perigo de se veicularem valores nada convencionais. A figura do
padre, por exemplo, aparece como castradora da liberdade e do sonho.
A censura era uma prática comum na sociedade italiana da
época, não só de imagens eróticas, mas também políticas. A censura aplicada aos
filmes, faz com que os espectadores não possam ver uma única cena de beijo
durante largos anos, rompido apenas na nova etapa do Cinema Paradiso, após o
fatídico incêndio.
No entanto, o início da amizade entre o projecionista
Alfredo e o menino Totó (Salvatore) é o que determina a empatia do público com
a produção. Essa amizade é apresentada através de um longo flashback que nos
conduz a uma incrível viagem, por meio primeiro do olhar de uma criança, onde
se processam travessuras, descobertas e inocência, e mais tarde de um jovem,
quando Totó se apaixona por Elena, estudante de sua mesma escola. Só que Elena
é uma menina rica e segundo sua posição social, jamais vai convencer seus pais
a aceitarem um pobre projecionista como seu marido.
Com a ausência do pai, claramente sentida pelo garoto, é em
Alfredo que Totó enxerga a figura paterna, Alfredo foi para ele um “mestre”, um
"professor de vida”, o seu verdadeiro “educador”. E por isso o menino se
apega àquela imagem aparentemente ranzinza, mas encantadora em sua essência e
com enorme coração. Ao mesmo tempo, Alfredo adota Salvatore como o filho que
não teve e mesmo que inconscientemente, nota-se que eles se completam. A
memória evocada corresponde àquela gratidão que em todos nós sobrevive por quem
se preocupou em educar-nos. Estas memórias têm elevado valor emotivo pois, ao
longo da vida, guardamos sempre saudade fiel dos nossos primeiros mestres. Tudo
isso, se configura no final do filme, quando Totó volta depois de trinta anos a
cidade de origem e recebe o presente que Alfredo lhe deixou (não revelarei para
não estragar a surpresa).
A sensibilidade de Tornatore também brinda o espectador com
algumas sequências incrivelmente belas, como o primeiro beijo de Totó e Elena,
testemunhado pela maravilhosa trilha sonora e pelos clarões da chuva que cai.
Outro momento tocante acontece quando Salvatore retorna ao Cinema Paradiso. Os
pequenos detalhes encontrados no abandonado cinema, como a boca do Leão de onde
eram projetadas as imagens, são extremamente importantes pra ele, afinal de
contas, fazem parte das lembranças de uma fase importante de sua vida. A vida é
feita destas pequenas memórias e o longa retrata muito bem isto. Em outra cena,
o choro das pessoas ao ver uma parte da história da cidade e da vida delas ir
embora junto com a implosão do Cinema Paradiso é de cortar o coração. Difícil
segurar as lágrimas. Além disso, o roteiro explora muito bem o bom humor, como
no engraçado método de censura do padre, onde todas as cenas de beijo são
cortadas, provocando verdadeiros saltos na projeção que causam a imediata
reação da plateia. Outro momento de bom humor acontece quando Alfredo projeta
um filme numa casa e o morador sai para ver a razão daquele alvoroço. Repare
também como alguém grita que a praça é nossa durante a tentativa de cobrar
ingresso, provocando a imediata reação do louco da praça, que responde com sua
frase característica a praça é minha!
"Cinema Paradiso" é um filme simultaneamente
realista e poético realizado ao bom estilo italiano, tingido pela nostalgia e
conduzido pela memória. Quem vê esse filme, com certeza não consegue ficar
indiferente.
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"(Nuovo) Cinema Paradiso" de Giuseppe Tornatore: o
passo a passo de um clássico do Cinema.
Por Hamilton Nogueira.
“(Nuovo) Cinema
Paradiso” é um filme de 1988, com roteiro e direção do cineasta Italiano:
Giuseppe Tornatore. Apesar de ser (re)conhecido por “Cinema Paradiso”,
Tornatore provou que não é diretor de um único filme, dirigindo também outras
obras clássicas do cinema italiano, como: “Estamos todos bem” (1990), tendo
como carro-chefe a interpretação de Marcello Mastroianni, “Uma simples
formalidade” (1994), merecendo destaques as atuações de Roman Polanski e Gérard
Depardieu, “A lenda do pianista do mar” (1998), e por fim, “Malena” (2000), com
uma atuação magistral de Mônica Belucci.
É pelo intenso
lirismo e pelo tom memorialístico de seus filmes que Giuseppe Tornatore é, sem
dúvida, um dos grandes diretores do cinema italiano e porque não dizer, do
cinema mundial.
O longa-metragem foi agraciado - como bem é descrito nos
créditos iniciais da película - com os prêmios de Cannes: Grande Prêmio do
júri, oscar de melhor filme estrangeiro, Globo de ouro da imprensa estrangeira
em Hollywood, prêmio especial do Júri no oscar europeu “Felix” em 1989, prêmio
“César” de melhor filme estrangeiro e obteve também o prêmio “Cinema e Società”
de 1989.
Ambientado em um pequeno vilarejo da Sicília – pós 1945 – a
trama de Tornatore gira em torno das aventuras e desventuras de Alfredo
(Philipe Noiret) e Totó/Salvatore (o qual foi interpretado por três atores,
revelando, dessa forma, as três fases do personagem: Infância, adolescência e
fase adulta. Na ordem, são eles: Salvatore Cascio, Marco Leonardi e Jacques
Perrin).
Projecionista do cinema paroquial, Alfredo é visto como uma
simbologia do próprio cinema. Seria ele a ascensão e a decadência da cinematografia
enquanto arte. A lenta degradação de Alfredo é também a perda de espaço do
cinema para outras tecnologias como a televisão e o videocassete.
Aos moldes de Federico Fellini (1920-1993), Giuseppe
Tornatore desenvolveu seus personagens mais caricaturais em “Cinema paradiso”.
Todos com características bem peculiares, carregados, muitas vezes, com um
humor mordaz e fina ironia. Completam o time:
Padre Adelfio (Leopoldo Trieste): é tido como a figura conservadora e moralista
do enredo. É o responsável pelas ordens de corte em cenas de beijo nas
películas apresentadas no “Paradiso”. Fato este que desagrada o público e
principalmente a Totó.
Maria (Antonella
Attili/ Pupella Maggio): Mãe de Totó. Perde o marido durante a 2ª guerra
mundial e luta para criar seus dois filhos: Totó e Anna (Isa Danieli). Muitos
estudos sobre a obra apontam essa personagem como uma analogia a Helena de
Tróia que aguarda o retorno do marido e - posteriormente - do filho. Atente
para a cena em que a personagem está tecendo quando o filho (Totó) regressa a
sua casa.
Elena (Agnese Nano):
é a grande paixão de Totó. Os dois se conhecem após a mudança de Elena e de seu
Pai (o qual é descrito na narrativa como um banqueiro) para a vila siciliana.
Enzo Cannavale (Spaccafico), Leo Gullota (Usher), Roberta
Lina (Lia), Ninno Terzo (Pai de Peppino), são os personagens planos, comumente
conhecidos como secundários, mas, que de certa forma, ajudam significativamente
no desenrolar da trama.
É o tom memorialístico por meio de Flashback's aliado a
captação de imagens do mar siciliano e da maravilhosa trilha sonora de Ennio
Morricone (que acompanha ininterruptamente o filme) que Tornatore convida o
espectador a adentrar no universo de seus personagens. Totó/Salvatore, já
adulto, bem sucedido, no entanto, solitário e sem uma vida afetiva estável
recebe a notícia da morte do amigo e grande mentor: Alfredo. E agora o que
fazer?... Deitar-se, encostar a cabeça ao travesseiro e (re)lembrar é tudo o que
resta?... Sim, lembrar, aliado a doses de remorsos e nostalgia.
O contexto do filme é basicamente o pós-segunda guerra
mundial. Deparamo-nos com uma Itália devastada e assolada pela miséria e por
crises políticas. É nesse cenário que encontramos o pequeno Totó, uma vítima a
mais desta tragédia e de seus resquícios. A margem da pobreza de sua família e
da ansiedade em (re)encontrar seu pai que fora ao conflito, o pequeno Totó
divide seu tempo entre a escola e os filmes na paróquia que serve como cinema e
única distração para os moradores de um vilarejo ao sul da Itália: o “Cinema
Paradiso” (título homônimo do filme).
As hierarquias que Insistem em dividir a sociedade não
deixam de aparecer na obra prima de Tornatore. A burguesia da cidade ocupa
sempre os camarotes dos andares superiores da paróquia (cinema), cuspindo
(literalmente) sempre que possível nas camadas menos favorecidas. Aí Tornatore
não deixou de registrar sua crítica refinada aos moldes de Luis Buñuel ("O
discreto charme da burguesia", 1972). O cinema paradiso serve para tudo:
descreve as disparidades de classes, é o lugar de extravasar os vícios e deixar
aflorar os desejos outrora contidos.
O ponto de virada do filme é uma tragédia no espaço que
serve de distração ao vilarejo: um incêndio na paróquia/cinema acaba por deixar
o seu projecionista cego. Entre altos e baixos a vida de Alfredo nunca mais
será a mesma após o incidente. Como
diria Guimarães Rosa em seu conto “A Benfazeja”: A luz é para todos; as escuridões
é que são apartadas e diversas.
Mais por dificuldades financeiras e para ajudar sua família
do que necessariamente por sua paixão pelo cinema, Totó agora exerce a função
de projecionista do agora reformado "Novo Cinema Paradiso".
Subversivo e progressista, Salvatore sempre deixa passar um beijo ou uma cena
mais sensual. Atitudes transgressoras, haja vista, o contexto histórico,
altamente conservador.
Totó cresce e agora não é somente projecionista e cinéfilo.
Ainda em sua Sicília natal tem como grande amiga uma câmera com a qual registra
a tudo e a todos. E é captando lugares, paisagens e situações cotidianas que
Salvatore conhece Elena - grande paixão de sua vida.
A partir de então o filme é caracterizado por uma série de
perdas e, sempre no plano afetivo. Movido pela insistência de Alfredo, Tóto
deixa sua terra para estudar. Regressa (aqui o filme dá um grande salto
elíptico e passa a ser linear) para o enterro de seu mentor e descobre um
Paradiso abandonado.
Algo mudou em Totó; não lembra mais de alguns amigos da
infância e as pessoas - de sua Sicília natal - agora parecem carregar consigo
uma melancolia aguda.
Por interesses políticos, o Paradiso entra em processo de
extinção. Situação não muito distante da
nossa realidade, onde, patrimônios históricos e culturais são eliminados para
atender interesses de empreiteiras e da especulação imobiliária. Totó assiste a
implosão do “seu cinema” solidário ao sofrimento coletivo. Cena forte: parece
que estamos nos deparando com o final de uma era. Seria, como quer Ronald
Bergan: A morte dos palácios de filmes. Constata-se também na cena que Alfredo
e o cinema são apenas um: quando um morre o outro também é extinto.
No decorrer da película, grandes homenagens a 7ª arte, seja
pelas citações incansáveis de Alfredo a clássicos do cinema, pelas exibições
destes mesmos clássicos no Paradiso ou pelos cartazes focalizados pela
objetiva: vide os cartazes de “Casa Blanca” ao fundo de Totó e Alfredo na
cabine do Paradiso e de “E o vento levou” na rua após Totó e sua mãe ficarem
sabendo da morte do Patriarca da família. Destaque também para as claras
homenagens a Chaplin, Jean Gabin e Laurel e Hardy, os inesquecíveis: “O gordo e
o magro”. Mas o que é devastador está guardado para o final: diria ser difícil,
quase impossível sair do filme sem ao menos uma lágrima escorrendo pelo rosto.
Talvez nada disso seria possível sem a música de Ennio Morricone que evoca as
nossas mais antigas memórias[1].
“Cinema Paradiso” é um filme Metalinguístico? Sim, mas não é
uma obra usada para discutir técnicas narrativas, nem montagem, tão pouco, o
processo de distribuição. A obra entra para a história como uma verdadeira
prova de Amor a cinematografia. Mostra que o valor primeiro ao contemplar um filme
está contido na subjetividade do espectador; em suas sensações. O espectador se
encontra na obra a partir do que viveu, do que já amou - ou sofreu -; daquilo
que foi ou poderia ter sido. É esse o primeiro valor, é essa a primeira
impressão. Bergan ratifica a assertiva dizendo que o filme de Tornatore é um
lembrete sutil de que cinema é experiência pessoal.
[1] Ronald Bergan in “Guia Ilustrado Zahar de Cinema”.
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