Publicado originalmente no site da revista Brasileiros, em 17/02/2011.
Da “boca” para fora
O projecionista José Henrique Cirilo, que viveu na região da
Boca do Lixo, em São Paulo, berço do Cinema Marginal nos anos 1970, procura
destino digno para seu acervo – um tesouro de três mil filmes
Texto Pedro Venceslau foto Beto Lima.
Cidade Tiradentes, distrito localizado no extremo leste de
São Paulo, abriga o maior complexo residencial popular da América Latina. O
lugar foi escolhido e projetado pelo governo paulista para receber a população
desalojada das favelas e de áreas de risco da cidade. Trata-se de uma selva de
concreto, formada por Cohabs e CDHUs entrecortados por córregos a céu aberto e
desmanches de automóveis.
O projecionista José Henrique Cirilo não gosta muito de
entrar nos detalhes de como foi parar lá. Desde 2005, ele mora em um prédio com
tinta desbotada na parede e concreto aparente. O conjunto foi ironicamente
batizado “Praia de Ipanema”. Poucos vizinhos sabem que ele é dono de um tesouro
de valor inestimável para o cinema brasileiro. Ao longo de sua carreira no
submundo do cinema paulista, Cirilo, hoje com cinquenta e poucos anos, manteve
o hábito de comprar, por vias nem sempre convencionais, rolos de filmes que
deixavam as salas de cinema e tinham destino certo: o incinerador ou fábricas
de vassouras. Seu acervo conta com cerca de três mil títulos entre películas de
35 mm, 16 mm, CD e VHS, muitos deles exemplares únicos ou raríssimos. No meio
da sala apertada e sem nenhum conforto do apartamento, ele deixa exposta sua
maior relíquia: um projetor original em perfeito estado de funcionamento.
Quando bate a vontade, Cirilo escolhe um dos títulos e exibe ali mesmo, na
porta branca da geladeira. A história desse personagem da cidade se confunde
com a do chamado Cinema Marginal, um movimento que viveu seu apogeu entre o fim
da década de 1960 e os anos 1970 na Boca do Lixo, um quadrilátero no Centro de
São Paulo que, hoje, é habitado pelos noias da cracolândia, mas um dia foi a
Meca cinéfila nativa.
35 mm
Foi no final da década de 1920, quando o cinema falado
revolucionou a Sétima Arte, que a região da Boca do Lixo começou a ser ocupada
pelo povo do cinema. As distribuidoras que chegavam ao Brasil preferiam se
instalar ali, devido a uma questão estratégica: a proximidade com as estações
ferroviárias da Luz e Sorocabana. Quarenta anos depois, no final dos anos 1960,
havia pouco ou nenhum espaço para a produção de filmes brasileiros mais ousados
intelectualmente. No auge do regime militar, a soma da censura com o começo do
“milagre econômico” fomentou a produção de filmes com apelo popular. Na era
pré-shopping center, as salas de cinemas dos bairros viviam lotadas. Foi nesse
cenário que as ruas da Boca do Lixo viveram seu apogeu como polo de realização
e distribuição de filmes de baixo orçamento. Cirilo começou a frequentar a Boca
em 1970 quando estudava no Colégio Maria José, na Alameda Glete, bem perto do
quadrilátero formado pelas ruas do Triunfo, Andradas, Vitória e Gusmão. Aos 18
anos, morava com o pai relojoeiro e a mãe dona de casa, na Mooca, e ia à região
atrás de “mulherada”. “Tinha um monte de puteiro lá. Tem até hoje…”, diz.
Graças a um amigo do seu pai, chamado José Rima, ele conseguiu o primeiro
emprego na área. “Ele montava telas em todas as salas de cinema. Hoje, está com
90 anos e ainda faz isso.” O primeiro patrão foi Oswaldo Massaini, o mais
poderoso produtor e distribuidor da época. O homem era uma lenda viva na Boca.
“Eu era fiscal dele nas salas de cinema. O Oswaldo só comprava filme que
explodia de público. Eu ficava na catraca, conferindo a renda. Depois, o
Oswaldo me buscava com o chevetinho cinza dele.” A experiência levou Cirilo a
submergir definitivamente na Boca.
Clandestino.
O ponto de encontro de cinéfilos e cineastas da Boca era o
mitológico restaurante Soberano, onde os negócios rolavam soltos. Era lá que os
produtores recrutavam equipes, escreviam roteiros, trocavam ideias e decidiam,
entre uma cerveja e outra, o futuro do Cinema Marginal brasileiro. Entre os
frequentadores assíduos estavam Walter Hugo Khouri, Carlos Reichenbach, Zé do
Caixão e Rogério Sganzerla. “No andar de cima, funcionava a distribuidora do
seu Borghetti. Ele era dono do Cine Éden, que era muito visado pela censura. Um
dia, ele quebrou e ficou com um monte de filme em casa”, lembra Cirilo. Naquele
tempo, cópias de grandes produções podiam ser compradas com facilidade no
mercado negro, por meio de funcionários de distribuidoras, como a Paris Filmes.
Quando havia rolos excedentes – e sempre havia – ou quando o filme saía de
cartaz nos principais cinemas, os longas tinham dois destinos: ou iam para o
incinerador ou acabavam em fábricas de vassouras. Cirilo então se aproximou de
Borghetti, com a intenção de alugar alguns de seus filmes “encalhados” para
fazer sessões em circos. O negócio deu certo e ele então passou a distribuir
filmes para o interior, outros Estados e até para o Chile. Acabou comprando a
produtora e entrando definitivamente para o ramo. “Eu comprava até filmes, como
o King Kong, no mercado negro. Não faltava dinheiro naquela época. Na Boca,
ninguém ficava duro.” Em outra frente, Cirilo começou a investir também na
produção de filmes pornográficos. “A gente comprava duas latinhas de negativos de
filmes com atrizes famosas, como Eva Wilma, e fazia uma edição em cima. Pegava
duas pistoleiras da boca e mandava elas fazerem uma conjunção carnal. Depois,
misturava as cenas do filme com as nossas e transformava em um belo pornô.” Foi
assim que a pornochanchada Cada um Dá o que Tem, que tinha muita cena picante,
mas sem excessos, se transformou no pornô No Calor do Buraco. “Tem até filme
com o Juca Oliveira fazendo pornô”, diverte-se Cirilo. “A gente gravava com as
meninas em um hotelzinho da Boca chamado Scala.”
A decadência da Boca.
Muitos demoraram a perceber que a febre dos filmes
pornográficos era o primeiro sinal do fim dos anos de ouro da Boca. Com a
difusão do videocassete, a popularização da televisão e, posteriormente, as
sucessivas crises econômicas, as salas de exibição foram se esvaziando
gradativamente. Os cinemas do Centro sobreviveram, mas às custas de se
converterem em redutos de prostituição. Em 1989, Cirilo sentiu o baque. Para
conseguir pagar as contas no fim do mês, começou a trabalhar como projecionista
nos Cine Cancan e Moulin Rouge. “O pornô acabou sendo o assassino dos cinemas.
Depois, veio o VHS e as salas passaram a ser dominadas por putas e travestis.”
Ele conta que um novo mercado surgiu graças a essas
circunstâncias. “As atrizes dos filmes ficavam ali na sala, fazendo programas.
A gente gravava alguns filmes ali mesmo.” Durante todo esse tempo, nas épocas
de vacas gordas e magras, Cirilo nunca deixou de comprar ou ganhar filmes.
“Quando a (distribuidora) Havaí fechou, eles iam entregar o prédio e me
chamaram lá. Ajudei a desmontar tudo e ganhei 500 cópias de uma vez.” Seu
acervo conta com clássicos como Menino da Porteira, com Sérgio Reis, e o
polêmico Amor Estranho Amor, o filme que Xuxa conseguiu tirar de circulação. “A
história desse filme é curiosa. A Xuxa andava muito com o Pelé, que era amigo
do Massaini. Foi assim que ela topou participar do filme.” No longa, a Rainha
dos Baixinhos seduz um garoto menor de idade. Da Boca, Cirilo foi para o SBT,
onde foi um dos câmeras do mitológico programa Aqui e Agora. Atualmente, vive
de bicos, mora em Cidade Tiradentes e procura um destino digno para seu acervo.
A Cinemateca de São Paulo se interessou pelo material, mas ele não aceitou as
condições impostas. “Eles querem tudo como doação. Você acha o quê? Dar de
graça para os caras? Tem filme ali que paguei caro.” Seu sonho é montar um
centro cultural no bairro. Talvez seja mais fácil sua história virar um filme.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasileiros.com.br
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