Heróis não morrem: Projetista acompanha o funcionamento do aparelho de 16 milímetros responsável pelas noites de pipoca do Cineclube Ipiranga.
Na tela um velho sucesso de Charles Bronson
Cinema na veia: Archimedes Lombardi em sua filmoteca com a lata de
"The Taxi Boys", relíquia de 1914
Por Moacir Assunção
Aos poucos, depois de uma década de total paralisação, eles
voltam, ainda que timidamente, à cena cultural brasileira. Sensação do cinema
alternativo até a década de 90, quando foram quase extintos em pleno governo
Collor (que também acabou com a Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme), os
cineclubes começaram nos últimos meses a recuperar ao menos parte do terreno
perdido. O Ipiranga, no bairro do mesmo nome; as sessões no Sesc Itaquera; o
Assunção Hernandes, em Diadema, e o Idade do Ouro, em Osasco, são provas da
revitalização destes espaços culturais voltados à formação de público para o
cinema e à divulgação de produções de qualidade em contraponto às comerciais.
Se hoje paulistanos mais jovens só podem conviver com as
caras e padronizadas salas dos shoppings e com cada vez mais raros cinemas de
rua, quem tem mais de 30 anos com certeza vai se lembrar dos cineclubes do
Bixiga, na Bela Vista; Oscarito, na Praça Rooselvet, e o do Sindicato dos
Jornalistas – considerado uma espécie de ‘pai´ de todos eles e que deve
retornar à atividade no segundo semestre. Nestes espaços era possível assistir
a clássicos como Ben Hur e, entre muitos outros, aos politizados Greve e O
Homem que virou Suco, ambos de autoria do cineasta João Batista de Andrade,
oriundo do movimento cineclubista. Outrora uma forma de resistência à ditadura
militar, os cineclubes são agora trincheira contra o cinema enlatado de
Hollywood e de prestígio à produção nacional. E, para os aficionados pela
telona, já é possível até tentar construir um pequeno roteiro - ainda em
formação – com estas novas opções.
“Os cineclubes estão se organizando espontaneamente,
praticamente sem apoio governamental. Este é um trabalho super-democrático de
difusão do cinema a todas as pessoas, não somente a quem pode pagar até R$ 15
por um ingresso no shopping”, explica o presidente do Centro Cineclubista de
São Paulo, Jeosafá Fernandez Gomes. Os cineclubes não cobram ingresso, somente
taxa de manutenção, em geral de R$ 3. Mas será que há espaço para o crescimento
do movimento? No Brasil, garante o representante dos cineclubes no Conselho
Nacional de Cinema, Diogo Gomes dos Santos, 90% da produção cinematográfica não
chega nunca às telas. Os filmes, muitas vezes de qualidade, circulam somente
pelos festivais. No País inteiro há somente 1.800 salas, número irrisório perto
da população de 170 milhões de pessoas. “Cerca de 20 mil seria um número razoável”,
avalia Santos.
Na tentativa de rearticulação em nível nacional, a
restaurada Galeria Olido, no centro de São Paulo, sediou em novembro passado a
25ª Jornada Nacional de Cineclubes. O encontro reuniu uma centena de cineclubes
de todo o País, muitos ainda em fase de organização e atividade, e observadores
internacionais, para os quais a revitalização não é um fenômeno isolado, mas
tendência continental. No Brasil, só para citar dois exemplos, Rio Grande do
Sul e Ceará já contam com um movimento relativamente organizado. Embora não
ofereça o apoio desejado pelos cineclubistas, o governo federal mantém o
programa Pontos de Cultura, em que kits com projetores e telas são repassados,
via leis de incentivos fiscais, às entidades culturais para implantação de
cineclubes.
Atualmente, São Paulo tem 217 salas comerciais de cinema e
22 cineclubes empresariais, como o Espaço Unibanco, o Centro Cultural Banco do
Brasil e o Cineclube DirectTV. Mas não são considerados cineclubes dentro dos
princípios do movimento, já que em geral não promovem debates e discussões
sobre cinema e produção. Além disso, contam com o apoio de grandes empresas.
Endereço certo
O Cineclube Ipiranga, que funciona na biblioteca do bairro,
na Rua Cisplatina, 505, é endereço certo para quem curte filmes de qualidade,
de todos os gêneros, em películas de 16 milímetros. Tem clima de cinema do
interior e promove debates com gente como o crítico de cinema Rubens Ewald
Filho. Todos os sábados à noite, pelo menos 30 apaixonados por cinema se reúnem
para assistir a clássicos do bangue-bangue, policiais e filmes nacionais
antigos. Mantido pela Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16
Milímetros, o Ipiranga guarda histórias curiosas também fora das projeções.
“Uma vez, passamos El Dia que me Quieras, com Carlos Gardel, para um grupo de
argentinos. Eles ficaram emocionados, choravam e cantavam junto com os artistas
do filme”, conta o responsável pelo espaço, Archimedes Lombardi.
Noutra ocasião, relata, um homem de quase 70 anos, já doente
e desenganado pelos médicos, pediu para ver um faroeste que lembrava sua
infância - uma espécie de último pedido. Atendido, ficou emocionado e sobreviveu
ainda mais dois anos. “Como ele estava na cama e não podia vir, levamos a fita
e o equipamento na casa. A família achou que ele viveu mais e melhor por causa,
em parte, do filme que adorava”, afirma Lombardi. Também na capital, o veterano
cineclubista João Luiz de Brito exibe, às sextas-feiras, filmes nacionais no
Sesc Itaquera. “Até dezembro, passava os filmes na Casa de Cultura de Itaquera,
ligada à Prefeitura. Com a mudança de administração, a situação ainda está
indefinida”, informa.
Já o Cineclube Assunção Hernandes, em Diadema, no Grande
ABC, é tocado por um grupo de jovens cineastas formados nos cursos promovidos
nos centros culturais municipais, sob a coordenação de Diogo Gomes dos Santos.
Na equipe estão um pedreiro, um caminhoneiro e estudantes universitários de
áreas como Rádio e TV e Jornalismo (veja destaque). A cidade, dirigida há seis
administrações por prefeitos de esquerda, tem a particularidade de contar com
dez centros culturais em uma área de 30 quilômetros quadrados, um a cada 3
quilômetros, média bem superior à da capital. O espaço promove suas sessões aos
sábados.
Além de exibir, os cineclubistas do Assunção Hernandes
também produzem os próprios filmes. Para este ano está programado o primeiro
longa-metragem que contará a história de Zequinha Barreto, guerrilheiro que
acompanhou o capitão Carlos Lamarca quando ele se refugiou na Bahia, morrendo
ao seu lado. “Apesar de ter muitos centros culturais, Diadema nunca teve um
cinema comercial bem-sucedido. Queremos criar nas pessoas o hábito de assistir
aos filmes e garantir aos estudantes das oficinas a oportunidade de se
exercitar na linguagem do cinema”, explica uma das coordenadoras, Josiane
Alfer.
Também na Grande São Paulo, Osasco contabiliza, desde o ano
passado, a criação de quatro cineclubes, cujas sessões atraem público de todas
as idades. “O pessoal (em geral moradores simples do próprio bairro, Vila
Quitaúna) fica encantado em ver filmes a que dificilmente teria acesso”, aponta
o professor Rui de Souza, um dos responsáveis pelo Cineclube Alto do Farol, que
dirige junto com João Martinho Lúcio. Na cidade há ainda os cineclubes Idade do
Ouro, ligado à associação dos aposentados local, e outros dois mantidos pela
Faculdade Fernão Dias.
No Interior, mais especificamente na cidade de Americana,
até uma antiga estação de trem desativada virou cineclube. É o Cineclube
Estação. “Vêm de 25 a 30 pessoas em média. Passamos até um documentário sobre a
revolução ´bolivariana´ de Hugo Chávez,” conta o coordenador Eduardo Minatel.
Aficionados
Muitas vezes, são os cineclubistas a alma e motor destes
espaços. Com sua paixão pela chamada “sétima arte”, tocam adiante a empreitada
e, aficionados assumidos, resgatam as produções tornando-se colecionadores.
Archimedes Lombardi, que mantém há 13 anos o Cineclube Ipiranga, “sem falhar um
só sábado”, como faz questão de frisar, tem uma história de vida parecida com a
do garoto do filme Cinema Paradiso (do italiano Giuseppe Tornatore), pois
também aprendeu a gostar de cinema manejando os equipamentos de projeção. Aos
16 anos, em Santo Anastácio, interior de São Paulo, ajudava o padre a fazer
exibições no salão paroquial. Depois, mudou-se para São Paulo e recebeu convite
para exibir os filmes no Clube Atlético Ypiranga. Levar seu acervo e dos outros
integrantes da Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes 16 Milímetros
para a biblioteca foi um passo.
“Temos muitos filmes antigos, mas o mais velho que há no meu
acervo é Os Garotos do Táxi, de 1914”, revela. Durante as sessões, os
saudosistas têm até a possibilidade de ouvir o barulho do antigo projetor de 16
mm, iguais àqueles usados até hoje em alguns poucos cinemas interioranos.
Outros colecionadores têm filmes até mais antigos que o de Archimedes, como
alguns mudos de Charlie Chaplin, além de preciosidades como O Vigilante
Rodoviário, seriado brasileiro dos anos 40, Bonanza e Tarzan. O engenheiro
Hamílton Fonseca de Castro, um dos mais assíduos freqüentadores do cineclube,
tem 100 filmes, quase todos de humor como O Gordo e o Magro, Os Três Patetas e
Carlitos. Castro, 52 anos, resume em poucas palavras a sua paixão pelo cinema:
“Tenho também filmes em vídeo e DVD, mas nada se compara à emoção de ver a
película projetada na telona. O cinema nunca vai morrer, mesmo com toda a
tecnologia, porque as pessoas precisam dessa sensação inigualável”.
Faça seu roteiro
Cineclube Ipiranga – Biblioteca Genésio de Almeida Moura.
Rua Cisplatina, 505, Ipiranga. Fone: 273-2390. Sessões aos sábados às 19h.
Entrada Franca
Cineclube Sesc Itaquera – Rua Projetada, 1000, Itaquera.
Fone: 6523-9200. Sessões aos sábados às 19h. As sessões são gratuitas, mas o
Sesc cobra o acesso às dependências com preço variável (visitante, comerciário
etc).
Cineclube Idade do Ouro – Rua Minas Bogasian, 97, Centro,
Osasco. Fone: 3682-9895. Sessões às quintas-feiras às 15h. Entrada Franca
Cineclube Assunção Hernandes – Rua Ari Barroso, 549. Centro,
Diadema. Fone: 3425-0060. Sessões aos sábados, às 19h. Entrada: R$ 2
Cinema Concreto
Cineasta diletante, Miguel Batista, 56 anos, dono de mãos
calosas e voz grave, deve ser o primeiro cineasta-pedreiro da história do
Brasil. Rosto emoldurado por espessa barba com muitos fios grisalhos, Miguel,
que atua no Cineclube Assunção Hernandes, em Diadema, também faz literatura de
cordel. Mas ganha a vida mesmo mexendo com pás de pedreiro e cimento em
construções na periferia de Diadema. “Digo que o meu hobby é ser pedreiro, mas
não é verdade. Dependo disso para viver”, afirma. Em parceria com o também
também cineasta amador Arnaldo Malta, ele já lançou o curta Pisadas Marcantes.
A dupla ganhou o terceiro lugar no Prêmio Plínio Marcos, um dos principais do
circuito do cinema alternativo.
Natural de Limoeiro do Norte, no Ceará, Miguel chegou em São
Paulo há duas décadas, transferindo-se depois para a cidade do ABC. Há alguns
anos, fez curso de roteiro em um dos centros culturais de Diadema, o que lhe
deu base para preparar o curta. Em outro filme, lançado por colegas do curso,
ele, humilde pedreiro da periferia da cidade, fez o papel de um rico
empresário. “Ao chegar em casa, perguntei para minha mulher se era aquilo mesmo
que ia comer. Já estava quase me acostumando com a vida de rico”, brinca. No
Ceará, os parentes se encarregam de divulgar seu trabalho. A divulgação chegou
a tal ponto que uma prima veio do Nordeste a São Paulo, enfrentando enormes
dificuldades, só para conhecer o parente famoso, “que faz cinema em São Paulo”.
A Miguel, restou sorrir, como faz durante quase todo o tempo. “Não é fácil tocar
os filmes, mas adoro essa vida e gosto muito do grupo também”, afirma ele, um
dos mais ativos membros da ONG Com Olhar, que toca o cineclube.
Mas Miguel não é o único trabalhador de profissão modesta
que atua na produção de filmes. Outro integrante, Rubeílton Moraes, é
caminhoneiro. Fez o curso de cenografia e se tornou fotógrafo e cineasta, como
todos os colegas do grupo, não há um que não tenha dirigido ao menos um filme.
“Como motorista de caminhão, descubro belos visuais, o que ajudou muito no meu
olhar cinematográfico”, explica.
Revista dos Bancários, Edição n.103, Abril de 2005.
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