Publicado originalmente pelo site Eco Desenvolvimento, em 18/07/2010.
Do lixo fez-se um sonho
Se a história contada nas próximas linhas fosse um filme, o
roteiro começaria com a história de um sonhador e terminaria com um final
feliz. Mas como filme não é, há muito que se contar sobre os percalços,
dificuldades, otimismo e força de vontade. José Luiz Zagati, paulista de 60
anos, amante do cinema e catador de sucata colocou na cabeça o sonho de
construir uma sala de cinema na periferia onde mora. Com poucos recursos, foi
no lixo que encontrou a oportunidade para mudar a realidade daquele local.
A história já virou até documentário, dirigido pelo paulista
Eduardo Felistoque e premiado em festivais de curtas-metragem pelo país.
“Através do lixo eu encontrei uma luz no fim do túnel para ajudar a dar
dignidade a todas aquelas crianças”, conta Zagati.
Os filmes favoritos são Cinema Paradiso e os de Mazzaropi.
Quando perguntado sobre as dificuldades da vida, Zagati mostra que tem um misto
da inocência dos filmes de Mazzaropi com a delicadeza de Totó, do italiano
Cinema Paradiso: “Que venham as dificuldades, porque quanto mais dificuldade,
mais eu tenho força para lutar”.
EcoD: O que te motivou a fazer um cinema em casa?
Zagati: Eu sempre pensei em fazer isso, desde criança.
Quando eu fui ao cinema pela primeira vez, lá no interior onde eu morava, eu
tinha cinco anos de idade. Foi minha irmã que me levou. O encanto nasceu ali,
em 1955, a magia do cinema me pegou, o ambiente, o público. Eu passei toda a
minha infância e juventude em Taboão da Serra, e aqui tinha o Cine Tupy, que me
lembrava muito o cinema lá do meu interior.
Desde criança que eu gostava de brincar de fazer cinema. Com
meus nove, dez anos, eu ainda não podia ir às salas, daí recortava histórias em
quadrinhos e revistas de fotonovela que minha irmã trazia da casa da patroa e
colava com sabão numa tábua. Isso pra mim já era estar vendo cinema. Mas nunca
tive condições de fazer cinema de verdade. Então, em 1990, desempregado,
comecei a catar papel e materiais para vender em ferro-velho. Era daí que eu
tirava o sustento da minha família, e foi com esse trabalho que eu tive a
felicidade de encontrar muitas coisas referentes ao cinema. Acredito que foi
assim que nasceu a ideia do nosso cineminha.
E como você começou a construi-lo?
Em 1996, eu comecei uma verdadeira peregrinação no centro de
São Paulo. Eu ia em distribuidoras e procurava por filmes, projetor ou qualquer
coisa relacionada. Com muita insistência e procura, eu consegui entrar em
contato com a Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16mm. Essa
associação faz exibições de filmes todo final de semana. Eu passei a frequentar
as reuniões e foi assim que eu consegui o meu primeiro longa-metragem completo
para ser exibido, já que antes eu tinha apenas trechos de filmes encontrados no
lixo. Em agosto de 1998, batizei o nosso cineminha de Mini Cine Tupy, uma
homenagem ao extinto Cine Tupy.
O processo era o seguinte: eu trabalhava de segunda a sexta
na rua, frequentava as exibições dos filmes no sábado, pegava o filme
emprestado, exibia no cineminha e devolvia na semana seguinte. Todo final de
semana eu tinha filme e público a revelia. É ótimo levar o cinema para essas
pessoas que não tem acesso. É uma forma que eu tenho de ajudar as pessoas,
sabe? Sei lá, colocar alguma coisa na cabeça de cada um que mora ali.
Como é a relação da comunidade com o cinema?
É impressionante. As pessoas da periferia não tem acesso à
cultura cinematográfica. É claro que isso vem mudando, mas com o surgimento da
televisão, menos pessoas vão ao cinema, porque assistem aos filmes em casa.
Muitos vem aqui, de crianças a idosos, e é muito boa essa relação. Eu
acompanhei o crescimento de muitas dessas crianças. Tem um menino, por exemplo,
que hoje faz faculdade de Direito, que se apaixonou por cinema por causa do
cineminha. E uma senhora, que saiu do Morumbi, bairro rico de São Paulo, e veio
até aqui para assistir a um filme. Foi tão emocionante, que ela chorou como
criança.
Então o cineminha foi crescendo...
Sim. Eu continuei com esse sonho, com insistência e foi
dando resultados. A imprensa apareceu, fui ganhando mais fitas de vídeo, achei
16 cadeiras de cinema no lixo. Montei o cinema numa garagem pequena e, por
causa dessa falta de espaço, eu procurei por ajuda da Secretaria de Cultura do
município de Taboão da Serra. Assim eu consegui realizar a primeira mostra de
cinema em um teatro local. Entretanto, o problema do espaço continuava. Foi aí
que eu, com muito esforço, comprei um terreno, onde sobre a laje eu construi
uma sala de cinema de forma muito simples. São 50 cadeiras, sempre ocupadas, para
assistir aos filmes todos os domingos à noite.
Quantos filmes têm no acervo?
Em VHS temos quase dois mil filmes, todos doados. O que não
impede que eu alugue um DVD de um filme que a pouco tempo estava no cinema e
hoje eu posso passar para tantas pessoas, tudo de graça e ainda garanto a
pipoca.
Já sofreu muito preconceito com a profissão de catador de
lixo?
As pessoas acham que o catador sempre está morrendo de fome
e não é bem assim. Depende de como a pessoa aproveita o dinheiro, sabe? Sempre
aproveitei cada centavo, porque eu consigo ganhar um dinheiro e ainda dividir
com as outras pessoas. Eu sou uma pessoa muito feliz, porque eu acho que já fiz
a minha parte, já cumpri a minha missão, agora eu só vou terminando. Acho que
foi esse trabalho de catador, e nenhum outro, que realizou o meu maior sonho
que era fazer uma sala de cinema. Sou muito grato a minha função de catador, e
enquanto eu puder trabalhar, vou continuar fazendo isso. Esse trabalho só me
deu felicidade.
Acha que ver seu trabalho sendo transformado em um cinema,
com reconhecimento em todo o país, as pessoas passaram a ver o lixo de outra
forma?
Sim. Eu acho que essa mudança comportamental vai surgir aos
poucos, algumas pessoas reciclam, outras não, mas com o tempo todo mundo vai
ter consciência disso. As crianças vão crescer com esse pensamento e se
tornarão adultos preocupados com o meio ambiente. Pelo menos é o que eu espero
que aconteça.
Quais os planos para o futuro?
Quero que Deus me proteja, abençoe o nosso trabalho e que se
não for para melhorar, mantenha o que está acontecendo agora.
O que te inspira a continuar com o projeto, mesmo com tantas
dificuldades?
Sei lá, tantas coisas! Mas acho que o mais importante é o
amor. Acho que o que move tudo é o amor. O amor ao que se faz é a maior
motivação.
Texto e imagem reproduzidos do site: ecodesenvolvimento.org
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