Publicado originalmente no site Milton Jung, em 10 de junho de 2013.
Histórias por trás da tela do cinema.
Por Marília Taufic.
Com apenas sete anos, os fins de semana do pequeno Noel
Taufic, neto de libanês, já eram tempo de fazer negócios. Rodava quase 200
quilômetros com o pai, Kamel, da pacata Leme, no interior de São Paulo, até a
capital, para voltar na bagagem com mercadoria valiosa. Era início da década de
1960 e, naquela época, eles precisavam ter um produto diferente para oferecer
aos clientes em cada dia da semana. “Segunda era dia de comédia, terça podia
rodar um drama, as quartas eram tradicionais dos namorados, sexta a galera
curtia um bang bang, sábados e domingos passavam comédia, romance, tínhamos que
pensar em sessões para toda a família”. Pai e filho viajavam juntos para tratar
da diversão de tantas pessoas que se emocionavam no cinema da cidade.
As películas começaram
a rodar no sangue dos dois quando Kamel ainda era adolescente. Herdeiro do
prédio onde ficava o primeiro cinema de Leme, o Cine São José, Kamel não
esperou atingir a maioridade para assumir os projetores. Ainda na juventude,
subia com os equipamentos e as histórias em um caminhão e rodava as fazendas da
região para iluminar muros ou um lençol com seus filmes. Em 1948, assumiu o São
José e, claro, como um bom filho de libanês, os negócios iam bem e tinham que
crescer. Onze anos depois, no dia do aniversário da cidade, em 29 de agosto de
1959, nascia o Cine Alvorada com 1.180 lugares para oferecer alegria a todos. O
futuro parceiro de viagens de Kamel e com bom tino para programação da telona
chegou pouco tempo antes, em abril de 1955, para nunca mais sair do cinema.
“Virou um vício”, conta Noel, como se aquele espaço, as relações humanas e a
emoção que ele proporciona, nunca mais pudessem sair de sua vida.
“O cinema é onde a
pessoa conheceu a namorada, deu o primeiro beijo, riu com os amigos, foi um lugar
legal na vida dela. Aqui você vende alegria, emoção, é um negócio muito
gratificante”. E quem conhece o empresário de 58 anos com histórias para contar
que parecem que foram por mais de 100 anos no comando de cinemas, sabe que ir a
uma sala com a presença do Noel é prazer na certa. Ele está na bilheteria, na
bomboniere, dá uma espiadinha para ver se a projeção, o som e o ar condicionado
estão bons e se rolar algum problema é correria até a sala de projeção,
dinâmica que aprendeu com o pai e com tantos outros companheiros de cinema.
Em meados do século passado, quem rodava pelas ruas do
centro de São Paulo poderia ver um cinema por quarteirão. “Na Avenida Rio
Branco eram quatro, só entre o Largo Paissandu e a Duque de Caxias. E só no
Largo Paissandu eram outros quatro: Cine Olido, Art Palácio, Cine Paissandu e o
Cine Ouro”, lembra Noel, que andava pela capital como se estivesse em uma sala
de aula. Na época, o Brasil chegou a ter mais de cinco mil salas, número bem
maior do que as pouco mais de três mil de hoje. “Tinha muito cinema na
periferia, ao ar livre, auto cine, a maior sala de São Paulo era na zona leste,
o Cine Mundo, com quase quatro mil lugares. E a família Ferrador era dona da
maior rede, com um grande circuito: Cine Ipiranga, Majestic e tantos outros.
Mas não existia uma marca. Os cinemas tinham nome”, fala Noel fazendo
referência às atuais grandes redes.
Nesta época quem via um filme na telona, só poderia ter o
bis na TV cinco anos depois, janela que diminuiu para dois anos no governo Collor
e que foi diminuindo cada vez mais até culminar para um futuro, que é o que
ocorre hoje, de muitas pessoas terem acesso ao filme antes mesmo dele ser
lançado, por meio das cópias piratas e dos downloads na internet. Noel conta
que, eventualmente, filmes de sucesso eram reprisados em meses diferentes. “Eu
cheguei a exibir Uma Linda Mulher cinco vezes, Dio Come Ti Amo, exibi umas dez
vezes. Também foi assim com Marcelino Pão e Vinho, os bang bangs italianos,
como Django, o original (de 1966), claro”. Mas este hábito não era simples,
porque ele causava um problema que quem já trabalhou em uma cabine de projeção
conhece bem: as películas quebradas. “A cópia vinha meio estragada e tinha que
arrumar. Às vezes as distribuidoras davam duas cópias diferentes para emendar”,
lembra com gosto, como se isso também fosse normal para se divertir com os
negócios. “Faz parte!”.
Mas ao mesmo tempo
que o público tinha acesso a um filme diferente a cada dia da semana, os
grandes lançamentos às vezes traçavam uma história diferente nos cinemas
nacionais. As primeiras risadas das comédias de Mazzoropi, por exemplo,
aconteciam, em sua maioria, no Cine Art Palácio. Toda semana do 25 de janeiro,
data do aniversário de São Paulo, um novo filme do comediante era lançado no
cinema do Largo Paissandu e lá ficava por mais de um mês para depois poder ser
lançado em outros lugares. “Aqui no interior a gente preferia colocar na época
da safra da cana-de-açúcar, em maio, quando o público do Mazzaropi estava com
mais dinheiro”, explica Noel.
Aos 15 anos, o filho de empresário já fazia a programação
dos cinemas do pai sozinho. Cinco filmes por semana, 20 por mês, cartazes e
trailers escolhidos e depois de muita conversa, Noel voltava com o ônibus cheio
de história para projetar. Apesar de jovem, ele já sabia atrair alguém para uma
sala de cinema, contando sobre um filme, sem nem ao menos tê-lo visto. Não foi
por pouco que na mesma época foi emancipado pelo pai para abrir seu primeiro
cinema na cidade vizinha, Pirassununga, e por aí traçou sua própria história em
muitas outras cidades: Araras, Porto Ferreira, Espírito Santo do Pinhal, Mogi
Guaçu, Itu, Tietê, Tatuí, Patrocínio, Araxá, Itaúna, Divinópolis, Campinas,
Peruíbe, Mongaguá, Itanhaém, Guarujá, Pedreira, Vinhedo e Santa Rita do Passa Quatro,
tiveram cinemas em seu comando. Noel viu o auge e a decadência dos cinemas de
rua.
“As pessoas dão
vários motivos, mas para mim, os maiores culpados para a queda do cinema foram
os próprios donos, porque as salas foram se tornando ruins, o público precisava
de algo novo”. Para Noel, a rede Cinemark trouxe um novo conceito para o Brasil
que deu certo. “O cinema stadium (o da plateia em degraus) agradou e os
exibidores começaram a prestar atenção nesta mudança. Nos Estados Unidos já
existia TV a cabo e o cinema andava e aqui não, precisava de algo diferente”,
acredita ele.
Além da novidade
estrutural, as novas salas também saíram das ruas para os shoppings, trazendo
maior sensação de segurança e comodidade, com estacionamento, refeição e todo
um complexo de compras e outros serviços. “A sociedade capitalista tem que
consumir né?”, conclui ele.
Noel também não pôde investir o bastante para fazer todas
essas mudanças que a sociedade desejava. Seus cinemas foram fechando e para
construir o novo conceito, ele voltou para Leme. Na Avenida de entrada da
cidade, está o Cine Avenida, com pouco mais de 180 lugares, stadium e som Dolby
Digital. Segundo Noel, as pessoas procuram hoje o cinema para fazer festa,
assistir a um show, um jogo de futebol e até a final da novela. “Hoje o cinema
não é apenas um local para exibir filmes, é uma casa de espetáculo”. O último
capítulo do sucesso global Avenida Brasil, lotou o cinema lemense e como um
fiel e fanático corintiano, não poderia deixar de passar a final da Libertadores
com o Timão. “Demos sorte!”, lembra orgulhoso. Tais oportunidades, explica ele,
ficarão ainda melhor com a projeção digital. “As pessoas poderão assistir a
eventos ao vivo pela telona, é um futuro diferente, porém fantástico”, fala o
exibidor, que acredita que a magia está dentro do cinema, independentemente do
que estiver acontecendo diante dos olhos dos espectadores.
O recomeço do
exibidor já é um sucesso reconhecido inclusive entre estudantes de
administração. No último dia 3 de junho, Noel recebeu, além de outros dois
empresários, o prêmio “Empreendedor Nota 10”, realizado pelo Centro
Universitário Anhanguera de Pirassununga, que teve como objetivo destacar os
empresários que transformaram uma boa ideia, aliada a muito trabalho, em um
negócio de sucesso com geração de emprego e renda na região. Para Noel, o
prêmio representa uma história de ousadias. “Todos nós somos inteligentes, mas
o empreendedorismo está no sangue daqueles que têm coragem de correr riscos. Já
acertei muito e já errei, o importante é tentar”, ensina.
Texto e fotos reproduzidos do site: miltonjung.com.br
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