Publicado originalmente no blog IMS, em 13 de janeiro de
2015.
O filme não morreu, viva o filme.
Por Maria Mendes*
Quinta-feira, a última de todo mês, sete e meia da noite:
num galpão em Hackney, antigo bairro negro no leste de Londres, uma espécie de
garagem se acende nos fundos de um restaurante. Não há porta, apenas um balcão
na entrada. Do lado de dentro, um cachorro, algumas pessoas, um projetor de
16mm. Nas duas primeiras fileiras, sofás de couro, nas de trás, cadeiras de
montar com almofadas em cima. A tela é quadrada e mais parece uma persiana,
embora não tenha aspecto precário. As caixas de som, uma de cada lado, se
sustentam sobre tripés. No canto, um manequim despido, adornado com um cachecol
que lembra adereços do carnaval carioca.
O barulho vai diminuindo e vêm à frente da tela dois homens,
um mais jovem, na casa dos trinta anos, alto e bem vestido, e outro mais velho,
camisa xadrez, baixo, com um bigode pitoresco. O mais alto dá boa noite e
apresenta o colega, Umit, confirmando em seguida que estamos em mais uma sessão
do Ciné-Real, que naquela noite irá apresentar o filme The Texas Chainsaw Massacre
(O Massacre da Serra Elétrica), de 1974.
Umit Mesut, o homem à nossa frente que enfim toma a palavra,
tem à volta de 50 anos, cabelos com entradas já resolutas e óculos largos,
estilo anos setenta. Dá informações práticas, fala que o filme tem dois rolos e
portanto vai haver um intervalo de aproximadamente 5 a 10 minutos na hora da
troca. Conta que comprou a cópia em 1977, num estoque da Kodak, e que ela ainda
se encontra em razoavelmente bom estado apesar da idade avançada. As cores se
esmaeceram um pouco, prevalece o magenta, mas nada comprometedor. Em seguida,
faz o comentário-pergunta que de certa forma resume sua vida até então: “O
filme está aí há 130 anos e ainda funciona – para que jogá-lo fora?” É, de
certa forma, uma afirmação da razão da existência daquela sessão e
paradoxalmente uma cutucada nela própria, afinal não poderia partir de um
princípio mais simples, mais elementar, contrário de certa forma ao hype
instalado que permite a existência daquelas noites.
Umit vive do seu próprio encantamento com a película e,
abrigado numa pequena loja em Clapton, é uma espécie de eremita do celulóide.
Avesso a entrevistas, coleciona uma pilha de cartões de visita de jornalistas,
em sua maioria da BBC, que esperam em vão um retorno. Não tem interesse em
nenhuma forma de promoção, mesmo possuindo um estabelecimento comercial, e nem
quer aparecer em lugar nenhum. Mas é capaz de conversar horas, em empolgação
infantil, com qualquer um que demonstre paixão pelo cinema. Não discrimina: é
fã de Bruce Lee, dos clássicos hollywoodianos e do horror mais trash; de King
Kong e Cinema Paradiso.
A loja existe há quase trinta anos e se chama Umit and Son,
embora ninguém nunca tenha visto o tal filho. Dez minutos lá dentro são
suficientes para se presenciar o show dos mais variados tipos humanos que
tentam entender o que acontece naquele local empilhado de filmes, máquinas,
pôsters e objetos do chão ao teto. Um senhor com a blusa rasgada entra e
pergunta se ali se vendem DVDs pornôs, outro quer consertar um VHS no qual
derramou cerveja, um terceiro compra apenas balas e vai embora. Umit não cede
ao hype: primeiro negou ser o projecionista nas sessões do Ciné-Real, depois
aceitou ir uma vez como mestre-orientador, já que ninguém sabia operar direito,
e ficou tão fascinado por haver gente interessada em ver filmes em 16mm que
nunca mais deixou de projetar um filme, e já se vão mais de dois anos.
Londres vive uma particularidade típica das cidades que
parecem grandes demais, ricas demais: o cenário principal e mais estruturado é
dominado pelo cinema comercial, e salvo raras instituições como o British Film
Institute quase não há lugar para o cinema de repertório. Ao contrário de Paris
e Nova York, que contam com um número razoável de salas dedicadas à projeções
de retrospectivas, Londres é uma espécie de deserto do cinema mundial de todos
os tempos, e há apenas um lugar dedicado a lançamentos de outras épocas.
Hackney é um bairro que se descaracteriza a cada dia, expoente da gentrificação
de toda a área leste da cidade, até há alguns anos perigosa e pouco acessível
por transporte público. Cada vez mais, lojas como a de Umit ficam ameaçadas de
extinção, entretanto a onda hipster refaz a história com seus modismos, e esse
fio é o que o sustenta. Veneno remédio.
Antes de começar as projeção em 16mm, Umit sempre fala dos
filmes. No caso de O Massacre da Serra Elétrica, contou que tinha sido filmado
originalmente naquela mesma bitola, num espaço de mais de 13 semanas, sem
ninguém da equipe ser pago por isso. A recompensa financeira enfim veio, mas
apenas 20 anos atrás, quando a distribuição foi feita formalmente. Era a
primeira direção de Tobe Hooper. Ainda hoje consta como um dos dez maiores
filmes de terror de todos os tempos em vários cânones do gênero. Umit explica
que o filme assusta porque ataca os sentidos, e percebemos então que aquela
noite faz parte disso. É uma forma bonita de ver o cinema, cada vez mais rara,
em que à experiência do filme soma-se a experiencia da projeção em si, do
barulho da máquina, da troca dos rolos, da espera. E numa das grandes capitais
do mundo, em que tudo aponta para o que corre, em que não há tempo de se olhar
o que é miúdo, é fascinante ver a resistência perseverando mês após mês – ainda
que projetada numa tela que mais parece uma persiana.
* Maria Mendes é jornalista, curadora de documentários e
mestre em cinema pela Universidade de Londres.
Texto e imagens reproduzidos do blog: blogdoims.com.br
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