Publicado originalmente no site Cultura de Borla, em 23.03.15
65 anos de história, 40 a projetar filmes.
O Cine-Teatro de Estarreja faz hoje 65 anos. A 12 de março de 1950, Estarreja via nascer um novo edifício, um projeto do
arquiteto Rodrigues Lima inaugurado com a exibição do filme “Aventuras do
Príncipe Charlie” (1948), de Anthony Kimmins. Um espaço que faz parte da
história. Polo de atração de públicos dos vários cantos da região, tanto pelo
cartaz de cinema como pelas peças de teatro e revista. José Sá, um elogiado
projecionista, já que “exibia filmes na perfeição”, entregou a vida ao
Cine-Teatro de Estarreja durante 42 anos de trabalho. Hoje com 72 anos, começou
a trabalhar aos 13 e, mesmo a fugir da polícia, aguentou-se na cabine de
projeção e dela só saiu quando o espaço fechou portas definitivamente. São
“aventuras” que José Sá faz questão de partilhar, vividas na primeira pessoa,
na segunda metade do século XX. O espelho de outra época entre as mesmas,
embora renovadas, paredes.
Como surgiu
o Cine-Teatro de Estarreja na sua vida? Sempre gostei muito de cinema.
Costumava ir com os meus pais ao Cinema Velho, que existia do outro lado da
rua. Quando o Cine-Teatro começou a ser construído andava sempre a brincar nas
escadas e depois, quando foi inaugurado, vinha para aqui espreitar os filmes,
sem bilhete. Subia também lá cima, à cabine, encostava-me à parede e diziam-me:
“Oh menino, não pode estar aqui dentro!”. Eu gostava disto. Com o passar do
tempo, os funcionários viam-me tantas vezes que já diziam: “Olha, varre ali que
aquilo está cheio de lixo” ou “vai pôr ali um disco para se ouvir”. E assim fui
ficando.
E acabou por chegar a projecionista. Eu vim para aqui aprender. Primeiro
a aprender com a vassoura, na cabine, na altura tinha 13 anos. Estava fora da
idade e, por isso, tive que me esconder da polícia, porque não era permitido
trabalhar com essa idade. Entretanto, já mais à vontade dentro da cabine, ia
vendo como é que aquilo funcionava. Brincava um bocadinho com a máquina sem
ninguém ver. Com ela parada, claro. Via como arrancava, como parava. Mais
tarde, ajudava o projecionista da altura a enrolar o filme e apagava a luz da
sala, até que um dia me perguntaram se eu já era capaz de fazer a montagem do
filme. Disse que sim e foi aí que comecei com essa tarefa, sempre com a
supervisão do projecionista. Com o passar dos anos passei também a pôr a
máquina a trabalhar.
Uma arte que aprendeu sozinho. Ia observando e também aprendi
muito em África, durante a guerra. Andava sempre com a mania das invenções.
Comecei a trabalhar como ajudante de projecionista e cismei que havia de tirar
a carteira profissional de projecionista, o que não foi fácil, pois era preciso
ser eletricista e eu não era. Meti-me no curso de Eletricista e depois fui
fazer o exame de Projecionista ao Cinema São João (Porto). Passei e fiquei
projecionista de segunda. Queria ser projecionista de primeira mas, devido à
localização aqui do Cine-Teatro e ao tipo de cinema que era, pois não rodava
diariamente, não pude subir de categoria.
Andava sempre nas invenções? Sempre,
um dia cismei que o som não devia vir só da frente. Quando estive no Ultramar
havia lá bons cinemas ao ar livre, já com stereo. Então, coloquei duas colunas
na plateia e duas colunas no balcão. Era totalmente diferente. Um dia cheguei
aqui, olhei para os cantos e faltavam as colunas. Estavam à altura da mão dos
espetadores e devem-nas ter tirado. Não pus mais nada.
Esteve apenas no
Cine-Teatro? Estive na Murtosa uma temporada porque na altura abriram lá um
cinema num clube e não tinham ninguém que trabalhasse com a máquina. Até me
vinham buscar a casa e tudo. Houve também uma altura que percorria os cinemas
todos aqui no Distrito de Aveiro como fiscal de bilheteira.
Era uma profissão
rara? Era e não era assim muito fácil. Quem é que quer estar preso entre quatro
paredes? Quem é que se interessa por estar de volta da fita?
Em 42 anos de
serviço, deve ter muitas histórias para contar. Recorda-se de alguma? Os cortes
da censura. A censura cortava os filmes. Os pedaços de filme ficavam guardados
nos cofres da empresa distribuidora que não podia deitá-los ao lixo. Então, a
distribuidora colava os bocadinhos e fazia bobines de 1 hora. Enviava-nos e nós
passávamos. Por exemplo, depois da sessão de domingo, vínhamos à porta, víamos
quem podia ver – só quem conhecíamos – e dizíamos que, a partir da meia-noite,
ia haver sessão. E isto enchia. Não tinha interesse, não tinha sequência
nenhuma, mas a malta gostava, batia palmas. Era uma autêntica romaria.
Como era
na altura em termos de procura? Vinha muita gente ao Cine-Teatro? Vinha tanta
gente que esgotava. Na altura levava cerca de 900 pessoas e ainda se punham
cadeiras normais pelos corredores fora. Eram quatro e cinco filmes por semana.
Quando era um filme de classe ao domingo, passava também à segunda. A terça era
o dia normal de dar cinema, depois quinta, sábado e voltávamos ao domingo.
Acabava por não haver descanso quase nenhum. Além disso, os contratos obrigavam
à exibição de determinados filmes. Como não tínhamos espaço para os exibir,
esses filmes entravam também à terça e à quarta. Mas vinha pessoal de Ovar ver
cinema aqui, de Oliveira de Azeméis e até de Aveiro, que já tinha dois cinemas.
Havia uma camioneta que trazia também pessoas de Pardilhó e da Murtosa de
propósito para virem ao cinema. A qualidade de imagem atraia pessoas de todo o
lado.
O Cine-Teatro de Estarreja foi muito importante para o desenvolvimento do
concelho. Na sua opinião, o que o levou a fechar portas? Este espaço decaiu na
altura em que a televisão começou a passar filmes. O estado do cinema começou a
ir abaixo. Já chovia dentro da sala também. Depois de estar tanto tempo fechado
o pessoal desabituou-se, mas as obras tinham que ser feitas.
Quando hoje entrou
aqui que memória teve? A memória daquilo que eu tinha antigamente, embora
renovado. Dá-nos uma sensação estranha.
Saudade? Muita. Eu casei-me e dizia à
minha mulher - “olha, vou ter com a tua colega” -, que era a máquina. Estava casado
com duas mulheres, a minha mulher e a máquina. Não fazia mais nada.
Era uma
doença. Gostava imenso disto. Se fosse hoje voltava tudo ao mesmo.
Texto e imagem reproduzidos do site: culturadeborla.blogs.sapo.pt
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