O "Beijo Proibido" em Cinema Paradiso
Por João Bakdash
Giuseppe Tornatore recria o imaginário humano e joga com os
sentimentos e as lembranças de quem assiste esta bela película.
Iconoclastia não tem idade. O cineasta italiano, nascido na
Sicília, começou a sua carreira como diretor no início dos anos 80, escrevendo,
dirigindo e interpretando curtas para a tv italiana. Concluiu o lançamento de
sua primeira película em 1986 com Il camorrista, drama baseado na vida do
mafioso italiano Raffaele Cutolo e adaptado da novela de Giuseppe Marrazzo. A
recepção não poderia ter sido melhor: Tornatore acabou premiado como Melhor
Diretor no festival Nastro d'Argento, o mais antigo da Europa e o segundo mais
antigo do mundo (Academy Awards detém esse posto). Motivado pelo sucesso na
estréia, Tornatore lançou Cinema Paradiso três anos depois.
Com 33 anos na época, sua produção marca o rompimento com a
burocracia instituída do roteirismo que diretores veteranos não teriam coragem
de cogitar - característica essa que se tornaria marcante em seu estilo de
direção. No caso de Nuovo Cinema Paradiso ele vai ainda mais longe na
desconstrução do que na sua primeira produção e até as posteriores Stanno Tutti
Bene e La Domenica Specialmente, para se ater á quebra de narrativa marcada no
movimento sessentista francês Nouvelle Vague.
De fato toda sua filmografia é marcada por aparente marcha
lenta no ritmo de narração, seguido por um grande acontecimento que muda a vida
dos personagens. É assim que Tornatore constrói o enredo, de forma confusa aos
não iniciados, mantendo suas próprias características. Boa parte dos eventos se
mostram, propositalmente, corriqueiros e até comuns, o manejo de câmera com
planos abertos, trilha sonora de Ennio Morricone e as várias oscilações típicas
de tempo e espaço.
A partir deste ponto contém spoiler.
A trama começa e a câmera do diretor de fotografia Blasco
Giurato (Tutte Le Donne Della Mia Vita) passeia de plano-detalhe em
plano-detalhe. A especialidade de Giurato, capturar momentos com zoom exato, é
plenamente aproveitada em Cinema Paradiso. Raramente não enxergamos o rosto dos
dois protagonistas: Alfredo (Philippe Noiret), um velho projecionista ranzinza,
e Salvatore, ou Totó, (Salvatore Cascio - criança, Marco Leonardi -
adolescente, Jacques Perrin - adulto), um menino hiperativo de 6 anos, curioso
e até chato, mas sem duvida muito inteligente, que acaba infernizando Alfredo.
No início Salvatore Di Vita já é um cineasta bem sucedido e
mora em Roma, mantém pouco contato com a sua mãe Maria (Pupella Maggio). É
quando recebe uma ligação com a notícia do falecimento de Alfredo, interpretado
pelo brilhante e já falecido Philippe Noiret, agora tem a difícil tarefa de
voltar para Giancaldo. A partir daí temos toda a lembrança do passado através
da memória de Salvatore.
Os motivos para tamanha assertividade são revelados somente
na sequência do enredo, a abertura se faz brilhante e bem sucedida na medida em
que consegue cativar e prender o espectador através de um sentido sensorial
enigmático e delicado.
Alfredo tem como tarefa projetar os filmes no único cinema
da cidade, para onde Salvatore, então chamado de Totó, fugia sempre que a mãe
escapava-lhe os olhos depois que terminava a missa (ele era coroinha). No
começo, o menino apenas espreitava as projeções através das cortinas do cinema;
O padre assistia antes para censurar as cenas de beijo dos filmes. Assim os
dois se aproximaram, foi ali que Totó passou a fazer companhia a Alfredo e
desenvolveu sua paixão por cinema.
Essa proximidade cria um laço de avô e neto entre os dois, é
quando Tornatore começa a jogar com as expectativas quase nulas para um jovem
naquela cidade, com a relação entre os dois. A síntese disso se dá quando o
cinema pega fogo, mas Totó salva-lhe a vida inacreditavelmente. Mais tarde
Alfredo se recupera, mas fica cego dos dois olhos. Giancarlo reinaugura o cine
pouco depois. Depois de tanto tempo, Totó era o único que sabia operar a
máquina, então torna-se o novo projetista. É nesse momento em que Totó permite
a primeira cena de beijo, para euforia das pessoas no cinema e revolta do
padre.
Desde as falas até as fotografias, o filme é repleto de um
tom melancólico interrompido apenas pelas cenas bem humoradas das peripécias do
menino.
Na praça principal da cidade, na qual se localiza o cinema e
a igreja, há um louco. Sempre no toque da meia-noite, o homem repete: "La
piazza è mia! La piazza è mia! La piazza è mia!" - e atira pedras em quem
se recusa a deixar o lugar. Talvez aquele seja o altero dos homens da cidade.
O filme peca em não explorar o lado familiar de Totó, até
mesmo a sua mãe carece de qualquer detalhe durante os 123 minutos. No entanto
uma filmagem sobre a Segunda Guerra deixa subentendido que seu pai faleceu
durante a Guerra na Rússia. Na cena seguinte a "deixa" se concretiza
com a sua mãe assinando o pedido de pensão. Esse momento marca a transição de
Salvatore. Cascio sai de cena para dar lugar a Marco Leonardi. Tal como
profetizado por Alfredo poucos minutos antes, agora Totó tem outras
preocupações, conhece seu primeiro amor: Elena.
Sua relação com a menina aparece como determinante para
formar sua nova personalidade. Neste ponto clichê se trata do amor impossível
entre o menino pobre e a garota burguesa. No entanto a maneira como o roteiro é
conduzido trata todas as mudanças como naturais, cabe aos personagens lidarem
com elas da melhor maneira possível.
Elena e sua família deixam Giancarlo, Salvatore vai para o
serviço militar obrigatório. Os dois prometem manter contato por
correspondência, mas as cartas de Salvatore acabam sempre devolvidas. Quando
volta do Serviço Militar, a frustração o faz decidir morrer onde nasceu.
Percebe-se que, como nós, Totó já não existe, a frustração no amor e o tempo
militar lhe tiraram a pureza.
Alfredo o desencoraja, pois ali nunca conseguiria realizar
seus sonhos. E então a advertência que explica todo o enredo até aqui: Salvatore
nunca deve olhar para trás, deve sempre seguir o seu destino - ele nunca deve
sequer voltar para visitá-los.
Ele obedeceu Alfredo, mas retorna para assistir o funeral.
Outra vez o ator muda, agora o lendário Jacques Perrin interpreta a versão
madura do rapaz.
Embora a cidade tenha mudado muito, Alfredo agora entende o
porquê mudar para a capital era tão importante. Durante o funeral reconhece o
rosto de várias pessoas do cinema na sua infância e adolescência. Enfim a modernidade
também estava chegando em Giancaldo: O cinema seria demolido para dar lugar a
um estacionamento.
A viúva de Alfredo lhe entrega um presente deixado pelo
falecido: um rolo de filmes sem rótulo. Salvatore entra pela última vez no
Cinema Paradiso - agora velho e abandonado, lá encontra o velho banco em que
subia para operar o projetor quando pequeno.
O projetor ainda funciona, é quando ele descobre o carretel
dos beijos cortados durante as décadas de censura. Entre elas está uma filmagem
de Elena. Ele chora. Salvatore é Totó novamente, ainda que apenas por alguns
minutos. Leva os arquivos consigo e faz uma montagem com a sequência dos beijos
numa das cenas finais mais bonitas que já pude contemplar. Salvatore fez as
pazes com o seu passado.
Nesta delicada película, Tornatore nos leva a uma viagem ao
nosso próprio passado - mais do que isso, uma viagem de autoconhecimento.
Quando voltamos para um lugar antigo, para um lugar marcante em alguma época
passada da vida, algumas coisas estarão diferentes. Talvez não exista mais
aquela árvore antiga de outrora, alguns rostos também sumiram, outros, mais
jovens, brincam pela rua. Porém o lugar continua sendo o mesmo, ainda que
diferente. O sentimento de mudança é tão somente nosso. O motivo? Nós mudamos.
Texto e imagem reproduzidos do site: lounge.obviousmag.org
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