Publicado originalmente no site MAGAZIN HD, em 22 de Outubro de 2016
DocLisboa ‘16: Cinema Futures, em análise
Por José Vieira
Mendes
Cinema Futures, DocLisboa 2016, DocLisboa'16, Michael Palm
Numa altura em que a projecção em película praticamente não
existe nas salas, ‘Cinema Futures’, o filme-ensaio do realizador austríaco
Michael Palm lança novamente o debate sobre o analógico e os avanços da
revolução digital.
Estreado em Venezia Classici 2016 e premiado nesta secção,
Cinema Futures como o nome indica é um filme dedicado ao futuro do cinema. No
entanto, não directamente em relação aos modos de ver ou olhar o cinema, mas
antes aos modos de preservar as memórias do cinema, num contexto acelerado da
revolução digital. Foi assim que para comemorar o seu 50º aniversário e
discutir o que está por vir nos filmes, que o Film Museum austríaco entregou em
2014, ao escritor e cineasta Michael Palm, — célebre igualmente pelo seu
excelente filme-ensaio Low Definition Control (2011) — a tarefa de realizar
este Cinema Futures, um documentário filmado no mundo inteiro, de forma a
tentarmos compreender sobre vários pontos de vista o futuro do cinema na era
digital.
Em Cinema Futures, o realizador Michael Palm coloca em
primeiro lugar algumas perguntas cruciais sobre o futuro do cinema. A revolução
digital chegou tarde ao cinema e foi vista principalmente como um avanço
tecnológico. Hoje em dia e numa época onde as fitas de celulóide analógicas
estão a desaparecer, e dada a diversidade de formatos de imagem digital móveis,
há muito mais coisas em jogo. Estão os arquivos de filmes do mundo condenados a
desaparecer? Poderão realmente os ficheiros substituir as fitas de celulóide?
Para onde irão todas as imagens armazenadas em discos rígidos quando estes se
tornarem obsoletos daqui a uns anos? A película de celulóide e o analógico irão
mesmo desaparecer? Estamos perante uma massiva perda colectiva da memória
audiovisual? O cinema tal como o conhecemos vai morrer de uma forma tão
comovente ou estaremos apenas a assistir a uma mudança?
Estas resposta são dadas por cineastas como Apichatpong
Weerasethakul, Martin Scorsese, Christopher Nolan e por teóricos e filósofos
como Nicole Brenez e Jacques Rancière, por arquivistas (Paul Klamer, da
Biblioteca do Congresso do EUA), por restauradores (da Sony Pictures),
historiadores do cinema (Tom Gunning e David Bordwell) e artistas (Tacita
Dean), curadores de museus da imagem, que desta forma procuram orientar os
espectadores numa viagem sobre as memórias do cinema, ao mesmo tempo sobre o
futuro do cinema na era da imagens digitais em movimento.
Devemos aceitar que um filme é transitório, não pode durar
para sempre, é como um sonho. Como a nossa vida não é eterna, é uma das
frases-chave de Cinema Futures, esta do cineasta tailandês Apichatpong
Weerasethakul. Cinema Futures explora sobretudo a mutação dos formatos dos
filmes rodados em película para o digital, e das consequências que esta mudança
pode ter ao nível artístico, de produção, distribuição e conservação.
Podemos profetizar a morte de filmes rodados em película,
mas na verdade, aos media digital e analógicos — ou mesmo as nossas memórias
pessoais, fotografias e videos de família, DVD e CD com os filmes e músicas que
gostamos mais —, coloca-se agora a questão do armazenamento, reprodução e
migração dos meios de comunicação. Para Palm, os filmes digitais são como
simulacros do presente como em Blade Runner, de Ridley Scott, (1982), onde os
replicants estavam destinados a viver por apenas quatro anos, que é mais ou
menos a duração média de uma forma digital até ser substituída por outro
processo mais avançado.
Os conservadores e arquivistas de filmes estão cientes
disto, porque os arquivos filmícos são como museus, ou seja arquivos de memória
capazes de recolher a história do cinema e da memória colectiva. Ainda segundo
Palm os arquivos não afectam apenas a percepção do passado, mas determinam
tambémm o potencial e as possibilidades do futuro.
Por outras palavras, Cinema Futures lida com o futuro da
história do cinema, porque a história recolhida nos arquivos permite que
façamos novas descobertas ao mesmo tempo que proporcionam novas oportunidades
aos filmes anteriores. E é este aspecto da defesa de um arquivo utópico, que
permite descobrir e trazer à luz algo que nunca tinha sido visto antes.
Cinema Futures é assim um documentário sobre o presente e o
futuro do cinema e do cinema na era digital. É narrado em episódios
individuais, aforismos cinematográficas, colocando cenários futuros,
transmitindo medos culturais e esboçando ao mesmo tempo utopias promissoras,
para as imagens em movimento. O filme tenta acompanhar a transição de um tempo
e de uma história de fitas de celulóide fotoquímicas e analógicas, com cerca de
120 anos de idade, para esta idade imaterial e radicalmente evanescente e
virtual de fluxos de dados da imagem digital.
O foco principal é um amor ao cinema, embora um amor
desprovido de nostalgia. O que está em jogo é acima de tudo a técnica cultural
específica e a experiência do filme analógico, a preservação do património
audiovisual nos arquivos de cinema e televisão, o armazenamento, restauração e
conservação de imagens em movimento em fitas de cinema e em magnéticos, e as
promessas de salvação dessas imagens, feita através da pseudo-eternidade dos
bits e bytes. No início logo substitui ‘um filme de…’ por ‘uma file de…’.
Cinema Futures é assim um filme que oscila entre as crenças
tecnológicas do progresso e as visões apocalípticas do apagamento total de
nossa memória audiovisual. Por um lado, há o conceito do digital como uma forma
de superar o efémero — e por outras palavras, que pode assegurar o acesso
democrático ao nosso património audiovisual. Por outro lado, há a visão do
nosso presente como um futuro que remete para uma ‘idade escura’, na qual os
filmes não serão mais preservados, porque se tornaram um objeto físico. E o
cinema é uma infra-estrutura tecno-social, composta de dados obsoletos e
digitais que se vão tornando ilegíveis.
O que será das imagens e das memórias do nosso tempo e de
tempos passados, quando eles já não tiverem um análogo, que corresponde
evidentemente a uma presença física? À luz das rápidas mutações e da maneira
como os filmes são produzidos em geral ninguém pode prever com precisão o que o
futuro nos reservará e o que poderá acontecer. Cineastas, arquivos de filmes e
arquivos de televisão estão agora a enfrentar este debate urgente. As coleções
de arquivos começaram só agora a ser digitalizadas e armazenadas em grandes
servidores. Quanto tempo estes dados permanecerão legíveis e acessíveis nesta
Arca de Noé digital? O que vamos ganhar e perder com isso? Estas questões vão
continuar!
O MELHOR: o extraordinário significado desta verdadeira
viagem ao mundo das imagens em movimente, procurando incessantemente responder
a questões tão complexas;
O PIOR: a viagem às vezes é um pouco monótona, um bocadinho
talking heads, e afasta-se definitivamente nos modos de ver para se centrar
unicamente na questão do armazenamento.
Título Original: Cinema Futures
Realizador: Michael
Palm
Documentário | 2016 | 126 min
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