Publicação compartilhada do site IDEALISTA, de 12 de março de 2024
Museu do Cinema de Villarejo: a maior coleção de filmes profissionais
Carlos Jiménez, o seu criador, conta-nos toda a história deste projeto e dos 23 cinemas que a sua família tinha no sul de Madrid.
Lucía Martín (Colaborador do idealista news)
Um dos habitantes de Villarejo de Salvanés, uma localidade no sul de Madrid, diz que vivem numa aldeia mas comem pão chinês porque as padarias fecharam. Não há padarias, o mito do pão de aldeia está a cair por terra, mas há um motor económico da vila, a fábrica Cuétara, que pode empregar entre 60% e 70% da população, direta ou indiretamente, segundo outro habitante. Villarejo é conhecida por ser a sede desta indústria e também porque ali viveu a mãe de Jacinto Benavente, embora não exista nenhuma placa na casa onde ela viveu. Para além disso, existem algumas ruínas romanas, uma torre muito bonita, um museu dos Tercios e outro, aquele que viemos ver, que é sem dúvida uma das mais extensas e ricas coleções de cinema profissional da Europa.
Não estamos a exagerar: referimo-nos ao Museu do Cinema de Villarejo, que ocupa as instalações do antigo cinema da cidade, encerrado em 2004.
O seu criador é Carlos Jiménez, filho do proprietário do primeiro cinema da aldeia. E é precisamente daí que vem o seu amor pela sétima arte: ainda em criança, com 8 anos de idade e empoleirado numa caixa de refrigerantes, foi encarregado de passar filmes no cinema que o seu pai fundou em 1966. Desde então e até hoje, a sua vida tem girado em torno do grande ecrã. É por isso que, quando lhe perguntam qual é o seu filme preferido, responde Cinema Paradiso, porque o filme italiano de Giuseppe Tornatore é também um reflexo da sua própria vida.
De onde veio o interesse do seu pai pelo cinema?
O meu pai sonhava em ter o seu próprio cinema. Era um aventureiro. E começou no cinema sem ter qualquer ideia do que era e praticamente sem meios financeiros. O que acontece é que, bem, ele lutou toda a vida para o conseguir e não só conseguiu o seu cinema, como conseguiu mais 22. O início foi, como podem imaginar, muito precário.
De que ano estamos a falar?
Estamos a falar de 1966, quando ele abriu o seu primeiro cinema aqui na aldeia. Curiosamente, por falta de recursos, teve de o abrir sem teto, como cinema de verão. Mas não é que fosse um cinema de verão, é que ele não tinha dinheiro para continuar. Bem, de facto, nem sequer tinha dinheiro para comprar os lugares. O que aconteceu é que isto foi rapidamente arranjado, à porta do cinema, quem se quisesse sentar podia trazer uma cadeira de casa. E foi assim que começou. E o sucesso foi enorme.
Jiménez recorda os cinemas de verão, que desapareceram durante algum tempo porque o público os considerava desconfortáveis (cadeiras de plástico, conforto zero) e como, desde há algum tempo, se assiste a um ressurgimento destes cinemas em muitas cidades, incluindo Madrid.
A sua família tinha mais 22 salas de cinema, onde é que elas ficavam?
Os nossos cinemas sempre estiveram nesta região. Bem, aqui em Villarejo de Salvanés, onde está agora o Museo del Cine, mas também em Colmenar de Oreja, em Chinchón, em Villaconejos, em Tarancón, em Santa Cruz de La Zarza, em Tielmes, em Carabaña. E assim por diante, até 22. Toda esta área era nossa e nós próprios construímos alguns cinemas e outros foram alugados.
O meu pai era uma pessoa muito pobre, muito humilde, e não tinha dinheiro para pagar aos empregados. Por outras palavras, os empregados que o cinema tinha na altura eram amigos que ele deixava ver o filme e beber uma Coca-Cola. Eu era o seu único filho, por isso ele deixou-me como operador. E quando eu tinha oito anos, era responsável por 500 pessoas em cima de um daqueles caixotes de madeira e pregos que tinham para os refrigerantes, porque eu não conseguia chegar ao projetor. Um projetor tem dois metros e meio de altura. E lá estava eu, sozinho na cabine, a projetar os filmes. E quando era assustador, tinha tanto medo como queria ter.
Jiménez lembra-se perfeitamente do primeiro filme que teve de projetar, Pachín Pachín, protagonizado por Angelito, que era uma das crianças prodígio da época, juntamente com Joselito, Marisol, Ana Belén... De facto, Angelito, Ángel Gómez Mateo, é hoje amigo de Jiménez. "Como era um filme para crianças, o meu pai levou-me ao cinema e deixou-me ver o filme. Nunca mais me vou esquecer", confessa.
Há pouco falava de como se assustava com os filmes de terror...
Com o Christopher Lee, cada vez que o via com aqueles dentes a sair da sepultura, ficava muito assustado, porque é preciso ter em conta que a cabina era um sítio solitário para mim. Eu estava sozinho com um projetor que era todo preto. Quase todos os projetores até aos anos 60 eram pretos: uma sala totalmente escura, com um projetor preto, numa caixa de refrigerantes... Eu não conseguia parar de olhar para o ecrã porque era um arco elétrico que produzia a luz no projetor e o arco elétrico tem dois carbonos que se desgastam, um mais do que o outro, por isso é preciso estar constantemente a ajustá-lo para que o ecrã não pareça escuro. Portanto, temos de estar constantemente a olhar para o ecrã. É por isso que digo que, quando o filme era de terror, tive dificuldades. Além disso, havia outro problema, que era o facto de as pessoas serem muito boas mas muito rudes, o oposto de agora.
Agora somos mais instruídos, mas somos um pouco menos tolerantes. Nessa altura, o filme era cortado muitas vezes porque os filmes eram explorados ao máximo. Nos anos 60, um saco de uma cópia de um filme valia meio milhão de pesetas. É claro que se ganhava muito dinheiro nas aldeias. E se juntarmos a isso o facto de o homem da aldeia não ser uma pessoa muito rica, que também tinha um projetor de péssima qualidade, bem, no final houve muitos cortes durante a projeção e as pessoas ficaram muito barulhentas, gritaram muito e eu era um rapazinho na cabina, sozinho, e quando o filme foi cortado fiquei um pouco assustado. Até disse ao meu pai para pôr uma fechadura lá dentro, assim sentia-me mais protegido. Mas bem, a verdade é que me diverti muito e estava ansioso por isso.
Quando é que as sessões se realizam?
Aos domingos. Depois, com o tempo, foram-se acrescentando mais sessões, aos sábados, às sextas também. Mas no início só havia uma sessão ao domingo e toda a gente esperava ansiosamente pelo domingo para ver o filme. Ou melhor, para ir ao cinema, porque não importava qual era o filme, aliás, muita gente ia ao cinema sem saber qual era o filme que ia passar. Diz-se que nos anos 40, 50 e mesmo nos anos 60, com o aparecimento da televisão, as pessoas não tinham o suficiente para comer, mas tinham o suficiente para ir ao cinema. O cinema tem sido único. O cinema do século passado é comparável à Internet deste século.
E o cinema estava cheio?
Os cinemas rurais estavam sempre cheios. Não eram cinemas como nós os pensamos hoje, com todos os luxos e comodidades que um grande cinema num centro comercial tem atualmente. Eram muito precários mas estavam cheios e as pessoas iam com uma ilusão que não vejo agora.
Quando é que o vosso último cinema fechou?
O último cinema que fechámos foi este, o nosso cinema de Paris. E o último filme que exibimos foi Mar adentro, de Amenábar. Com o primeiro filme, a 31 de agosto de 1966, entraram mil pessoas num cinema que tinha capacidade para 500. Com o último filme, entraram quatro pessoas. Era impossível continuar. Fui obrigado a fechar o cinema. E a partir daí, apareceu esta outra coisa. Este outro passatempo privado de que ninguém sabia. E é assim que continuo no cinema, mesmo que seja na vertente do colecionismo.
Quando é que abriu como museu de cinema?
Em 2012, foi inaugurado por Enrique Cerezo.
Não existe nenhum outro museu deste género em Espanha, pois não?
Não. Além disso, este é o primeiro museu profissional de cinema em Espanha. E digo profissional porque sempre me dediquei ao cinema profissional. É uma coleção muito cara e muito complicada, porque é preciso mão de obra, tempo, transporte, locais para o guardar.....
E o que é que os visitantes podem ver aqui? Fale-nos deste espaço.
Só coleciono uma coisa: a história do cinema. A nossa visita guiada, que dura uma hora e meia, é uma verdadeira aula de história do cinema. Porque mostramos o lado científico do cinema. O cinema também é ciência. Estes aparelhos que mostramos foram inventados pelos cientistas da época. E começamos na era pré-cinemática, com o aparecimento da lanterna mágica em 1646, e terminamos com os irmãos Lumière e até com todos os projetores modernos que foram feitos até aos dias de hoje.
Têm cerca de 500 projetores, quantos podem ser vistos aqui?
A nossa coleção é muito volumosa. Só de projetores temos cerca de 500. Mas aqui no museu, por razões de espaço, o visitante não pode ver mais de 150. Porque depois da lanterna mágica temos o zoetropo, o praxinoscópio, a roda de Newton, a roda de Faraday, etc...
Qual é a peça mais antiga?
As da parte pré-cinematográfica, principalmente do século XVIII e XIX.
Porque é que têm uma máquina de costura?
As pessoas ficam espantadas quando vêm ao museu e vêem certas peças que não são projetores, porque não sabem o que significam. O que é que uma máquina de costura tem a ver com um museu de cinema? Muito simplesmente. Louis Lumière, o suposto inventor do cinema, e digo suposto porque uma invenção não é uma criação absoluta, mas baseia-se noutros conhecimentos anteriores, baseou o seu cinematógrafo no mecanismo da máquina de costura.
Quais são as peças do museu que mais lhe agradam?
Pessoais ou profissionais? O gosto profissional, os projetores dos irmãos Lumière. Agora, o meu gosto pessoal, bem, pá, aquela máquina antiga com que aprendi quando tinha oito anos, que não tem um grande valor económico mas que para mim, sentimentalmente, é a que tem mais valor.
E aquele Óscar que estava nas antigas bancas, como é que o arranjaram e como é que o trouxeram para aqui?
filmes premiados
Temos um Óscar com quatro metros de altura. Foi comprado num leilão de arte nos Estados Unidos. Bem, garantiram-me que era um dos que adornavam a entrada do Kodak Theatre quando os Óscares se realizavam lá. Lutámos muito para a conseguir, porque nessa altura, e não estou a falar de há muito tempo, estou a falar de antes do aparecimento dos telemóveis ou da Internet, era muito mais difícil. Demorávamos até seis meses para o trazer. As empresas de transporte obrigavam-nos a paletizar. Eu não falava inglês, mas a paixão, o trabalho árduo e a tenacidade por vezes fazem milagres.
Jiménez reconhece que, apesar de ter acumulado muitas jóias que distribuiu por outros cinemas (até numa sala forte, no caso de um dos primeiros projetores Lumière que custou "três ou quatro andares", segundo o proprietário), continua a aumentar a coleção porque "com tantos aparelhos e peças falta sempre qualquer coisa. Não se pode esperar comprar um projetor com 150 anos e encontrá-lo com todas as suas peças. Por isso, há sempre uma procura contínua".
O que é que se perdeu na experiência de ir ao cinema?
Ir ao cinema até aos anos 70 não era apenas ver um filme, era assistir a um espetáculo cinematográfico com rituais que hoje se perderam. Por exemplo, nas salas de cinema havia uma cortina. O filme começava por ser projetado na cortina. A cortina abria-se majestosamente. Havia um intervalo a meio do filme para ir à casa de banho. Havia uma senhora com um avental branco e um pequeno cesto que levava os doces ao teu lugar. Havia um porteiro para nos sentar, para manter a ordem, para desinfetar o cinema com ozono. Todas estas coisas faziam parte do ritual do cinema. E nos cinemas mais humildes não havia um espetáculo. Havia dois: o que o espetador encontrava no ecrã e o que se formava dentro do auditório com todas as aventuras que aconteciam. Porque nos cinemas mais precários, que estavam nas mãos de pessoas inexperientes, tudo acontecia.
Os porteiros, além disso, vestiam-se a rigor...
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Os porteiros eram uma autoridade. Temos também uma coleção de fardas de porteiros, porque quando salvamos um cinema, sempre que pudemos, salvamos também a farda. Eram uma verdadeira autoridade, não só nos faziam entrar, como nos devolviam o bilhete com a palma da mão para cima, para lhes darmos gorjeta. Mas o porteiro era o vigilante do cinema, aquele que se certificava de que as pessoas, por exemplo, não fumavam no auditório, porque nos cinemas e teatros eram os únicos sítios onde não era permitido fumar porque eram considerados sítios muito perigosos, aquele que mantinha a ordem e se não se mantivesse a ordem, punha-nos na rua, tínhamos de sair. Atualmente, as coisas mudaram muito.
Também têm um museu em Almeria.
Sim, também temos um museu em Almeria, no parque temático Minihollywood, em Tabernas. O museu está instalado no edifício que aparece como um banco no filme A morte tinha um preço.
Qual é o seu filme preferido?
O meu filme preferido é Cinema Paradiso, porque reflete a minha própria vida. Identifico-me com esse filme.
Vai ao cinema?
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Vou ao cinema, mas também tenho outros meios para ver filmes. Sou membro da academia, temos o nosso próprio cinema e lá vemos as ante-estreias e também estou com os atores, com os realizadores, com as pessoas que participaram nesse filme e, bem, para mim é muito mais agradável ver o filme rodeado pelos próprios protagonistas do que vê-lo sozinho com o público em geral num cinema.
O museu recebe algum apoio?
Infelizmente, após 12 anos de atividade, não temos qualquer tipo de apoio. Já tentámos. O Ministério da Cultura envia-nos para a Comunidade. A Comunidade envia-nos para a Câmara Municipal, de um lado para o outro, mas não temos qualquer colaboração ou ajuda direta, o que é extraordinariamente espantoso, porque estamos a falar do primeiro museu profissional de cinema em Espanha e da maior coleção da Europa. Por vezes, cheguei a pedir-lhes instalações para construir outro museu noutro local. E nem sequer isso. Assim como os meios de comunicação sempre foram extraordinariamente bons para nós, dando-nos muita publicidade e aparecendo sempre em todo o tipo de programas, jornais... com as instituições públicas, com as diferentes administrações, a verdade é que estamos um pouco abandonados.
Bonustrack para cinéfilos
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Texto e imagens reproduzidos do site: www idealista pt
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