domingo, 2 de novembro de 2025

Pelo amor a quem somos: o exemplo de Cosme Alves Neto



Artigo compartilhado do site [medium com], de 13 de fevereiro de 2025

Pelo amor a quem somos: o exemplo de Cosme Alves Neto

Por Gabriel Brito

De vez em quando, ao visitar a casa dos meus pais, tenho a curiosidade de abrir caixas antigas com as memórias da minha família. As fotos impressas e fitas magnéticas atravessam algumas décadas e vão até meados dos anos 2000, o meio da minha infância, quando essas lembranças migraram para o meio digital. Agachado diante daquelas caixas empoeiradas eu viajo no tempo passando páginas de álbuns que registram a juventude dos meus pais ou o nascimento dos meus irmãos. Algumas páginas tem legendas escritas com capricho pela minha mãe enquanto não tomávamos seu tempo.

Hoje, com quase 30 anos, me pergunto como seria a nossa família sem aquelas memórias. Concluo que a consciência da minha própria origem e papel no mundo seriam tão diferentes a ponto de afetar a minha própria noção do espaço que ocupo dentro da família, afetando a minha noção dos rumos que posso tomar na minha vida e carreira. Talvez este seja um exercício interessante a se fazer sempre que eu me sentir desmotivado e sem rumo.

Essa noção de memória coletiva é um conceito que pode se estender para além do meu núcleo familiar, compreendendo um contexto muito mais amplo, como o país em que vivemos: a nossa produção cultural constitui a nossa identidade como povo, e preservá-la nos ajuda a contar a nossa própria história, revelando quem somos, nos guiando, mesmo que involuntariamente, para seguir adiante.

É claro que a metáfora familiar tem seus limites: um país precisa de mais do que boa vontade e altruísmo para construir e preservar sua memória, mas principalmente de políticas públicas sérias e consistentes, o que infelizmente não é o caso no Brasil, que se acostumou a depender das ações de pessoas que, vistas com a distância do tempo, agiram quase que como super-heróis diante de tantas dificuldades. Ao me voltar para o cinema, minha área de formação, encontro uma destas pessoas: Cosme Alves Neto.

Poucos foram tão influentes na preservação e na memória do cinema brasileiro quanto Cosme, que começou sua trajetória na década de 60 em diferentes frentes, como a organização de cineclubes e a atuação na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Movido sempre pelo seu amor ao cinema e pelo seu genuíno interesse em garantir acesso ao audiovisual brasileiro, Cosme enfrentou até mesmo a Ditadura Militar no Brasil, permitindo que a enorme família formada pelo povo brasileiro tivesse acesso às suas próprias memórias. A partir desta trajetória, reflito neste artigo o contexto da preservação fílmica no Brasil.

Os Cineclubes e a Nova História

A jornada de Cosme Alves Neto começa ao final da década de 50, ao fundar o Cine Clube da Glória. Motivado pela preocupação com o destino dos filmes antigos que assistia na infância, também participa do Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC). No entanto, é importante considerar que a atuação de Cosme não é guiada somente por suas convicções pessoais, mas por um contexto histórico rico, marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Como explica Hernani Heffner em uma de suas análises sobre preservação fílmica, ascendeu neste período a chamada "Nova História":

“(…) que propunha estudos menos oficiais e ligados às classes dominantes, valorizando assim atividades distantes da política, do comércio e da guerra, como por exemplo o lazer e seu papel junto às classes trabalhadoras.”

Em outras palavras, ali ganhava força a noção de que a preservação de o que se produzia no cinema servia como documento histórico, permitindo a criação de processos e instituições que pudessem atuar de forma profissional e responsável para proteger as películas da ação humana, como a reciclagem para de prata, e da ação do tempo, causada pela natureza das próprias matérias primas das películas. O pesquisador Luiz Nazário em seu texto “O Buraco da Memória” também destaca que a Nova História colocou a “memória como instância formadora da identidade de indivíduos e grupos” permitindo a “criação, entre 1945 e 1955, das cinematecas do Leste Europeu, da Ásia, da América Latina”.

Desafios e Resistência: A Luta Contra a Censura e o Eurocentrismo

O conservador Hernani Heffner também lembra que, no Brasil, as cinematecas surgiram como iniciativas privadas, quase sempre ligadas a cineclubes, associações de críticos e entidades cinéfilas. E é dentro de todo esse cenário histórico e cultural que se insere Cosme Alves Neto, como é retratado no documentário Tudo por Amor ao Cinema (2015). O filme explora sua trajetória e revela como sua atuação refletiu o contexto cultural, social e político do Brasil na segunda metade do século XX.

A incursão mais importante da biografia de Cosme Alves Neto é certamente a Cinemateca do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, espaço concebido com a intenção de preservar o cinema e exibi-lo ao público. Cosme contribuiu com seu tempo, mas também com sua vasta cultura cinematográfica, fazendo desta uma missão bem-sucedida: logo o espaço se tornou um ponto de encontro para cinéfilos e cineastas. Ao enxergar valor histórico e cultural em qualquer obra, incluindo aquelas desprezadas por suas qualidades ditas “inferiores”, evitou o descarte de diversos títulos, tornando-os documentos audiovisuais da História.

Não é exagero afirmar que Cosme Alves Neto dedicou sua vida ao cinema brasileiro através da Cinemateca do MAM. Ele lutou para preservar as cópias e para permitir que o espaço continuasse sendo de livre circulação de ideias, enfrentando até mesmo a ditadura: o governo militar estava à caça de ideias “subversivas”. Ele chegou a esconder filmes, operar em segredo e esconder negativos de filmes censurados como “Cabra Marcado para Morrer” (1984), chegando a ser preso e torturado.

Cosme Alves Neto assumiu a Cinemateca do MAM em um dos períodos mais sombrios da história do Brasil e os cineclubes (aliás, todo o fazer cinematográfico) se tornaram espaços de debate político. O momento, marcado pelo auge do AI-5, não representou apenas uma caça ao considerado subversivo ou imoral, mas o desapreço ao livre exercício da cultura. Em sala de aula, a pesquisadora Milene Gusmão, minha professora, lembrou que existiram exceções: membros do governo chegaram a liberar algumas das obras por reconhecer a importância político-cultural delas, revelando um contexto histórico cujos critérios de censura e tinham nuances do que um simples sim ou não com base nas leis vigentes.

O Panorama Brasileiro e os Obstáculos Estruturais

A realidade e as dificuldades enfrentadas por Cosme na Cinemateca do MAM não eram exclusivas daquela instituição, daquele governo e daquele período: o panorama da preservação cinematográfica no Brasil foi e ainda é preocupante. Ao contrário de países como a antiga União Soviética, cuja cinemateca, a Gosmofilmfond, era financiada pelo estado, no Brasil o apoio estatal sempre foi inconsistente, tornando as ações de preservação incertas, carentes de recursos e legislação específica. Tudo isso levou a incêndios devastadores, condições de armazenamento precários e a falta de profissionais capacitados no mercado. Todos estes obstáculos tornam ainda mais impressionantes as ações de Cosme Alves Neto em relação ao seu trabalho no resgate e preservação do cinema.

A atuação de Cosme Alves Neto inspirou e influenciou na formação de novas gerações de cineastas e cinéfilos. O documentário dá como exemplo a participação na Jornada de Cinema da Bahia, onde atuou mobilizando jovens cineastas, o que prova o seu interesse e compromisso com o desenvolvimento do cinema brasileiro e com a popularização do acesso aos acervos. Aliás, como mostra Nazário, esta popularização poderia ser alcançada de forma efetiva se a Cinemateca Brasileira tivesse adotado o sistema cooperativista da Cinemateca Uruguaia, mais aberto aos cinéfilos.

Cosme Alves Neto também teve um papel crucial na exportação do cinema brasileiro. O documentário Tudo por Amor ao Cinema (2015) destaca, por exemplo, a exibição clandestina de Blá, Blá, Blá, de Andrea Tonacci, no Festival de Locarno, na Suíça. O filme, proibido pela ditadura militar, foi resgatado por Cosme e levado ilegalmente para a Europa em um período em que o impacto do cinema brasileiro ainda era limitado pelo eurocentrismo dominante.

Hernani Heffner explica que os critérios de preservação cinematográfica eram pautados por uma suposta “evolução estética”, fortemente influenciada pelas produções do chamado Primeiro Mundo, que sempre esteve na vanguarda da tecnologia, do comércio e da ideologia cinematográfica. Já Nazário aponta outro viés dessa influência eurocêntrica: o próprio modelo da Cinemateca Brasileira seguiu padrões elitistas importados dos mercados norte-americano e europeu, determinando quais obras deveriam ou não ser preservadas.

Na prática, isso impacta diretamente a memória do cinema brasileiro. Mesmo com esforços como os de Cosme, que recuperou filmes esquecidos — como Rio de Janeiro em 1923, vindo da Finlândia — , esses resgates ainda são exceções. O histórico descaso com a preservação cinematográfica nos países do chamado “Terceiro Mundo” privou gerações do acesso à sua própria história nas telas.

A atuação de Cosme vai além de suas motivações políticas, como mostra o documentário, e só pode ser explicado pelo seu genuíno amor ao cinema. No entanto, ele é apenas um exemplo notável de uma geração de defensores da preservação do cinema brasileiro e da memória audiovisual do Brasil. Luiz Nazário dá como exemplo o colecionador Antônio Leão, que é consciente de que a classe dos colecionadores preserva mais que o Estado, o que me faz refletir sobre como as demandas citadas por Cosme não se extinguiram, apenas acompanharam as transformações tecnológicas: a comunicação é mais fácil, o acesso do público também, mas arquivos em película seguem em condições precárias aguardando por políticas públicas constantes e compromissadas com a cultura brasileira, o que permitiria não só melhor condições de arquivamento, mas que o acesso aos filmes seja ampliado.

É preciso ser justo: o governo Lula, hoje e no passado, tem como um dos pilares o apoio à cultura, o que tornou a realidade da preservação fílmica no Brasil um pouco mais esperançosa neste século, através de editais que nos permitiram ter acesso a, por exemplo, às versões restauradas das obras de Glauber Rocha. Outro exemplo, o "Programa de Restauro Cinemateca Brasileira — Petrobras", lançado em 2007, chegou a financiar os próprios colecionadores, reconhecendo a importância destas pessoas. No entanto, a constância segue sendo um obstáculo a ser superado. O incêndio de 2021 na Cinemateca Brasileira, que destruiu parte do acervo histórico do cinema nacional, é um triste lembrete dessa inconstância, como reportou o G1 na ocasião.

Cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", parte do acervo da Cinemateca Brasileia que foi queimado durante o incêncio em 2021. O material já estava danificado por um alagamento em 2020. (foto: Foto: Reprodução / Relatório do MPF via G1)

O Legado de Cosme Alves Neto e o Futuro da Memória Cinematográfica Brasileira

Apesar da importância do trabalho de Cosme Alves Neto, o audiovisual brasileiro não pode depender apenas de esforços individuais. Mesmo que seu legado continue vivo, o acesso pleno e contínuo à memória cinematográfica só será garantido com ações governamentais sistemáticas.

Em junho de 2024 o Governo Federal anunciou um investimento de R$ 1,6 bilhão no audiovisual, incluindo o fomento à produção e um acordo com o Ministério Público Federal para garantir as atividades da Cinemateca Brasileira. Embora represente um avanço em relação à gestão anterior, essa medida ainda precisa de tempo para mostrar seus impactos e não aborda questões fundamentais, como a descentralização. Como destaca Luiz Nazário, descentralizar a preservação não só melhora as condições de conservação, mas também valoriza os cinemas regionais e amplia o acesso às obras.

Diferente das películas de Limite (1931), feitas de nitrato, as memórias da minha família não correm risco de autocombustão. Mesmo assim o tempo é implacável, e temo que as gravações em VHS-C feitas pelo meu pai se deteriorem. Ainda assim, poder acessá-las é um privilégio. E assim deve ser com a memória de um país: disponível para qualquer um que queira revivê-la quando quiser — seja como documento histórico ou como obra de entretenimento.

Somente com cuidado, respeito e consistência garantiremos que as novas gerações tenham acesso às suas próprias memórias. Cosme Alves Neto dedicou sua vida a essa missão porque entendia que só é possível amar algo conhecendo-o. E com o cinema não é diferente. Afinal, como amar alguém sem conhecê-la? Como amar um país sem conhecê-lo?

REFERÊNCIAS

HEFFNER, Hernani. “Preservação”. Contracampo, n. 34, 2001. Disponível em: Preservação Audiovisual. Acesso em: 13 out. 2024.

NAZÁRIO, Luiz. “O Buraco da Memória”. In: Diálogo entre Linguagens. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas; MELENDI, Maria Angélica (orgs.). Belo Horizonte: Editora C/ Arte; UFMG, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, 2009. p. 175–188.

MICHILES, Aurélio (dir.). Tudo por Amor ao Cinema (Filme, 90 min). Produção de André Montenegro e Rui Pires. Brasil: Aurora Filmes, Olhar Imaginário, Imagem Selvagem, 2015. Disponível em: YouTube. Acesso em: 13 out. 2024.

Fogo na Cinemateca: galpão tinha acervo de Glauber Rocha, equipamentos antigos e documentos sobre a história do cinema no Brasil. G1, São Paulo, 30 jul. 2021. Disponível em: G1. Acesso em: 13 out. 2024.

BRASIL. Ministério da Cultura. “No Dia do Cinema Brasileiro, MinC destaca ações para fortalecimento do setor audiovisual”. Agência Gov, Brasília, 19 jun. 2024. Disponível em: Agência Gov. Acesso em: 13 out. 2024.

Justiça Federal homologa acordo para preservação da Cinemateca. Exame, São Paulo, 21 jun. 2024. Disponível em: Exame. Acesso em: 13 out. 2024.

Cosme: por amor ao cinema. Taquiprati, 11 jan. 2021. Disponível em: Taquiprati. Acesso em: 13 fev. 2025.

Texto e imagem reproduzidos do site: medium com

Nenhum comentário:

Postar um comentário