Publicado por webinsider, em de junho de 2010.
O Pioneirismo do 70mm no Brasil tem um nome:
Por Paulo Roberto Elias
A exibição de filmes em 70 mm no Brasil foi feita com
projetores brasileiros, em vários cinemas. Conhecer quem os fez e a sua
trajetória foi um grande privilégio.
Mesmo depois de duas décadas freqüentando cinemas com
sistemas estado da arte para projeção em 70 mm, e de ter tido uma vivência
prévia em cabines de projeção, 35 e 16 mm, com algum conhecimento neste
assunto, eu jamais imaginaria que os maiores espetáculos de cinema que eu vi,
incluindo o Cinerama 70, no antigo Roxy do Rio de Janeiro, se deveram a uma
única pessoa: Orion Jardim de Faria, designer e fabricante do Incol modelo
70/35.
E esta descoberta aconteceu um tempo depois de começar a
pesquisar que tipos de equipamentos eram usados pelos exibidores, nos cinemas
do Rio de Janeiro. Na realidade, muito antes de falar com qualquer pessoa do
ramo, eu descobri uma página no site “in70mm.com”, do dinamarquês e expert em
70 mm Thomas Hauerslev, falando sobre o Incol. O que acontecera é que o autor
do artigo, Richard Fowler, conhecia Alysson de Faria, filho de Orion que
trabalhou na Dolby, e soube por ele dos projetores, tendo depois a chance de
vê-los e fotografá-los, na cabine de projeção do Senado Federal, em Brasília.
Algumas outras fotos, dos mesmos projetores, vieram parar
eventualmente em minhas mãos, por gentileza e cortesia de Charles Torres,
gerente comercial da Projecine. São poucas, infelizmente, as referências que
sobraram dos Incol 70/35, mesmo nos escritórios do principal exibidor que os
usara, Luiz Severiano Ribeiro. Para agravar esta situação toda, quando a
fábrica do Incol foi fechada, um dos funcionários jogou toda a papelada fora,
achando que ela não tinha mais serventia. E lá estavam a maior parte dos designs
e das documentações que hoje nos teriam sido de imensa valia para um estudo.
Não sobrando quase nada, é quase que impossível se fazer
qualquer tipo de pesquisa. E é por isso, em última análise, que vários países
mantêm museus especializados ou bibliotecas separadas por áreas, nas
instituições acadêmicas. E este é um aspecto, o do cinema, onde, a meu ver,
estas iniciativas andam por demais negligenciadas.
Entretanto, eu dei a sorte e tive o imenso privilégio de
receber uma ligação de São Paulo, do engenheiro que tornou o 70 mm possível na
maioria dos cinemas que eu freqüentei: o próprio Orion de Faria. Então eu me
propus a visitá-lo, mesmo não morando em São Paulo, onde ele reside. Para isto,
eu tive que ir preparado, e um grande amigo logo me sugeriu carregar no bolso
um desses gravadores digitais, que acabou me salvando a vida, pois é impossível
guardar ou anotar tudo, depois de umas três horas de conversação.
A VISITA
Eu me encontrei com Orion de Faria no dia 15 de maio deste
ano, às 09h00min, e este encontro foi especialmente registrado numa página
escrita para o in70mm, site especializado e dedicado a todas as atividades
relativas ao formato.
Chegando lá, eu me deparei com uma pessoa extremamente
afável, e com uma enorme paixão pelo cinema, e só isso me deixou totalmente à
vontade. E quando falo em cinema, eu preciso incluir tudo, desde o projeto
original no estúdio, até a projeção do filme. Orion conhece tudo e fala com
proficiência sobre isso, uma coisa rara, mesmo entre os vários experts e
scholars que eu tive a chance de conhecer na minha vida de cinéfilo.
É claro que a gente quando encontra alguém nesta estatura de
conhecimento quer logo saber como isso foi possível. Orion é filho de engenheiro
diplomado, Alysson de Faria, com largo background em mecânica e eletrônica, e
que se tornou empresário de uma firma fornecedora e instaladora de equipamentos
de cinemas, atravessando alguns períodos de transição no processo de exibição,
como por exemplo, o início do cinema falado. E foi através da firma do pai e da
curiosidade que lhe é natural, sobre a parte técnica que o cercava, que ele deu
os seus primeiros passos para conhecer o que seria depois a peça mais
importante da sua indústria: o projetor de cinema profissional sonoro!
Mas, foi depois de ter feito um curso técnico na Western
Electric, que os seus passos mais importantes foram dados. Aliando teoria e
prática, Orion se tornou auto-suficiente para, em 1959, montar a sua própria
indústria: aIndústria Cinematográfica Orion Limitada, ou simplesmente INCOL.
O APARECIMENTO DO FORMATO DE FILME EM 70 MM NO PAÍS
Segundo seu relato, em 1958, Orion de Faria viajou para os
Estados Unidos, para estudar o projetor Philips DP-70. Alguns anos antes, o
produtor Michael Todd, proponente do Cinerama de uma só câmera e projetor,
processo conhecido depois como Todd-AO, encomendou à Philips holandesa a
construção de um projetor para este sistema. Fruto de um trabalho inovador
nesta área, nasceu o Philips DP-70.
O DP-70 é considerado até hoje um projetor revolucionário,
no que tange à exibição de filmes, porque ele contempla todas as possibilidades
da época: a máquina pode projetar 70 mm e também 35 mm, e faz isso com cadência
de 30 ou 24 quadros por segundo. Os visionários do Todd-AO achavam, e com
razão, que com 30 qps uma série de artefatos de movimento era totalmente
eliminada. O formato só não foi adiante por causa do custo, tendo sido usado
nos dois primeiros filmes em Todd-AO, e em alguns poucos documentários, e nos
projetos seguintes voltou-se à cadência padrão de 25 qps do cinema
convencional.
Orion me contou que ficou entusiasmado com o projeto do
Philips e do Todd-AO. Até então, a produção americana para 70 mm tinha se
restringido ao projetor Simplex para o formato Grandeur, na década de 1930, e
que acabou não dando certo. O DP-70 traz modificações principalmente ao nível
da janela de projeção, com um design das guias curvo, terminando de vez com o
estresse da passagem do filme diante do obturador, em qualquer das duas
bitolas.
Além disso, Orion me chama a atenção que, bem em frente à
janela, foi usado um par de molas, cujo objetivo é manter a película de cinema
totalmente plana, evitando assim a chamada “canoagem” (deformidade em forma de
canoa), e otimizando a passagem do filme, com um reflexo imediato na
estabilização do foco do mesmo na tela. Esta melhoria é tão importante, que
foram feitas molas separadas para 35 mm também.
A parte superior do projetor, a partir das cabeças
magnéticas e principalmente o conjunto janela e lente, foram parcialmente
copiadas, no projeto do Incol 70/35. Alguns detalhes foram mantidos, e outros
extensamente modificados.
No que tange às cabeças magnéticas, por exemplo, Orion
preferiu usar pick-ups magnéticos separados, para 70 e 35 mm, e então invés de
usar um conjunto de cabeças fixas, como o DP-70, ele as encapsulou uma de
costas para a outra, num invólucro rotativo. Com isso, o processo de
alinhamento se tornou mais flexível e os ajustes de zênite e azimute mais
finos, e específicos para cada bitola. Neste ponto, eu posso afirmar que sou
testemunha da qualidade do som que eu ouvi nos cinemas, e desnecessário dizer,
fiquei encantado em saber como ele foi possível com tanta fidelidade e
dinâmica.
O Philips DP-70 é dotado de uma mecânica invejável, o que
não quer dizer que para o Incol ela tenha sido transposta integralmente. Na
verdade, todo o design mecânico do Incol 70/35 foi feito a partir do zero, e
Orion se orgulha, com toda a razão, do projetor ter sido um dos únicos no mundo
dotado de apenas três conjuntos de catracas, banhados em óleo, e em constante
lubrificação, praticamente dispensando manutenção por anos a fio.
Este mesmo transporte foi desenhado de modo a contemplar o
formato de 70 mm com 30 quadros por segundo. Orion me contou que, sendo um
grande amigo de um alto executivo da Fox de então, ele foi presenteado com um
documentário feito com esta cadência, e que ele usou várias vezes, para mostrar
a capacidade e as virtudes técnicas do seu projetor. Muito justo!
É importante ressaltar que o projeto do Incol 70/35 não
estaria completo, se não fosse contemplada uma solução moderna para a
amplificação do áudio. Orion de Faria desenhou e fabricou seis amplificadores
transistorizados, com potência musical contínua de 200 watts RMS cada um.
A Incol também importou alto-falantes para design e
fabricação própria de caixas acústicas pelo princípio de cornetas, usadas com
sucesso nos grandes cinemas. Em algumas instalações, disse-me ele, o exibidor
preferia manter as caixas originais previamente instaladas, quando então apenas
as partes de amplificação eram instaladas.
Orion enfatiza, e com toda a razão, que a potência alta não
é necessária para este tipo de instalação, já que o sistema de cornetas
favorece a uma pressão sonora elevada em potência baixa. Porém, e mais uma vez
acertadamente, ele diz que potências mais altas, aliadas à maneira como o
circuito amplificador é feito, ajudam a manter o som linear nas faixas de
freqüência onde há maior necessidade de se manter a dinâmica do programa
original.
Para completar, e tratando-se de projeção em bitola de filme
mais larga, os Incol 70/35 foram providos de lanterna dotadas de arco voltaico
a carvão capazes de sustentar até 140 ampères de carga. No caso de um cinema
como o Roxy, que projetava Cinerama, as lanternas operavam com corrente de 130
ampères, dando à imagem uma clareza extraordinária.
Entretanto, Orion orgulha-se de ter sido também o pioneiro
do uso de lâmpadas Xenon de alta potência, que eventualmente acabaram por
substituir o arco voltaico nas lanternas.
AS INSTALAÇÕES NOS CINEMAS
A Incol, em toda a sua existência, fabricou cerca de 1000
projetores para uso profissional, sendo 178 do modelo 70/35, instalados no
Brasil e exportados para outros países. A fabricação do Incol 70/35 começou em
1968. O primeiro deles foi instalado no cine Scala, em São Paulo. O cinema
abriu a exibição em 70 mm com a cópia ampliada de “O Vento Levou”, da M-G-M.
Eu perguntei a ele como os seus projetores vieram parar no
Rio, e a história que ele me contou é a seguinte:
O grupo Luiz Severiano Ribeiro se interessou em instalar o
formato de 70 mm em vários de seus cinemas. Mas, a empresa enfrentava problemas
financeiros, e por consequência impedida de importar equipamento
cinematográfico. Acabou então por comprar um par de Philips DP-70 de um
exibidor em Porto Alegre e os instalou no Vitória, que abriu com a exibição de
“My Fair Lady”, em 1965. Depois, sabendo da existência dos Incol, a empresa
mandou o seu técnico sênior a São Paulo, para ver os Incol.
Depois de um acordo de financiamento feito diretamente com a
Incol, o grupo instalou os 70/35 no cinema Roxy, que abriu com o filme “Uma
batalha no Inferno” (“Battle of the Bulge”), em Cinerama 70. Em seguida, como é
de seu feitio, o grupo Severiano Ribeiro resolvera padronizar a instalação do
formato nos outros cinemas, e assim foram instalados mais projetores nos cinemas
Palácio, Rian, Madrid (retirados após o incêndio), Tijuca, Leblon e Veneza,
sendo que no próprio Vitória os Philips DP-70 foram retirados pela Incol e
substituídos por suas unidades, abrindo as exibições com “Sweet Charity”, filme
de Bob Fosse anteriormente mostrado na tela de Cinerama do Roxy.
DECLÍNIO DO FORMATO 70 MM E FECHAMENTO DA FÁBRICA
A chamada loucura da moda do formato 70 mm (referida pelos
americanos como “70 mm craze”) foi repetida no Brasil e durou enquanto as
cópias podiam ser distribuídas regularmente. Durante esta época, muitos filmes
em 35 mm foram ampliados, para exibição neste formato, e isto ajudou a manter
os cinemas com 70 mm funcionando a pleno vapor.
Depois, com o declínio das salas maiores de exibição, a
ausência de cópias e principalmente o fechamento das grandes salas, o 70 mm
desapareceu por completo.
Por volta de 1980, a Incol havia comprado parte e depois o
total da Empresa Cinematográfica Triumpho, fabricante dos projetores de 35 mm
do mesmo nome, e antes, quando a Inbelsa (Philips) fechou, Orion ficou com
todos os moldes para projetores e os maquinários, usados nos Philips FP-5 e
outros modelos, montados no Brasil. Orion me contou que vários desses moldes
desapareceram, quando a Incol se transferiu para São Paulo, e acredita-se terem
sido roubados. As dificuldades de mercado, entretanto, fizeram a Incol fechar
as portas da Triumpho e depois a sua própria, no início dos anos 90.
O SHOW DE TV E O LIVRO
Orion Jardim de Faria escreveu um livro chamado “Cinema,
escalada pela existência, das sombras à realidade”, e o levou para a
apresentação no “talk show” da TV Globo “Programa do Jô”, com o popular
escritor/ator/comediante Jô Soares. Curiosamente, o livro fala pouco sobre os
Incol, preferindo se concentrar na paixão do autor pelo cinema.
Orion de Faria, junto com o apresentador Jô Soares.
Durante o show, o projetor Incol 70/35 foi exibido para a
platéia:
Um técnico da Incol mostrou aos espectadores detalhes do
mesmo. Começou abrindo a lanterna, para mostrar detalhes da modificação para
lâmpada Xenon, do qual Orion havia sido um dos pioneiros:
Lâmpada Xenon instalada em frente ao seu espelho refletor,
na lanterna do Incol 70/35.
Em seguida a uma explicação de como o filme é iluminado para
a projeção, e a troca do arco voltaico pelas novas lâmpadas, o técnico mostra
detalhes de como o filme é colocado no corpo do projetor:
O livro mostrado por Orion no show ainda vai sofrer uma nova
revisão, segundo ele mesmo me prometeu. Eu, por outro lado, espero que a nova
edição esteja ao alcance do público e com a divulgação adequada, quando ela for
lançada.
UMA VIDA TODA DEDICADA AO CINEMA
Apesar do relativo pequeno número de contatos que eu tive
recentemente com pessoas ligadas ao cinema, em vários dos seus segmentos, me
parece patente que muito pouco se tem feito para se preservar a memória.
Orion Jardim de Faria, do alto de sua idade biológica,
conhecimento e experiência de vida, poderia ser olhado como um ícone do nosso
despreparo em tratar com a preservação de valores culturais, sejam eles quais
forem.
Eu não sei bem quanto à situação em outros estados e
cidades, mas não é possível que em pleno século XXI, uma cidade como o Rio de
Janeiro não seja capaz de achar um espaço para um museu de cinema, tanto do
lado técnico quanto artístico. Aqui se produziram muitos filmes, e o número de
salas era um dos maiores do país, isso sem falar na presença das cinematecas e
cineclubes, durante décadas.
Neste lugar, poderiam ser exibidos, por exemplo, todos os
projetores de cinema fabricados no Brasil. Com isso facilitar-se-ia o acesso ao
público do conhecimento da vida desses pioneiros.
Como ainda não existe nada disso, para mim foi uma honra
imensa ser recebido por um deles. E que se trata de uma pessoa com a qual eu
poderia facilmente me identificar, quando o assunto é cinema e projetores,
sobre os quais ele me falou com grande entusiasmo.
Orion Jardim de Faria é, com toda a justiça, o personagem
que nos liga ao formato de 70 mm no país. Com ele e por causa dele foi possível
que várias gerações de espectadores e cinéfilos descobrissem as grandes
produções do gênero, em salas dotadas do melhor equipamento técnico possível. A
nós nos resta lhe agradecer por isso, e esperar que o seu nome seja sempre
lembrado junto com o do cinema pelo qual nos apaixonamos. [Webinsider].
Sobre o autor
Paulo Roberto Elias é
bioquímico em ciências médicas, cientista e professor aposentado da UFRJ. É
também Mestre em Ciências (M.Sc.), pelo Departamento de Bioquímica, do
Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica pela Cardiff University,
País de Gales, no Reino Unido.
Fotos e texto reproduzidos do site:
Parabéns pelo post! Cheguei a conhecer o sr. Orion e seu filho no festival cinemúsica de Conservatória e trabalhei fazendo folga em cinemas da Baixada Fluminense com os projetores Incol 70x35, tenho um blog: "Cine fechado para reforma" la publiquei uma cabine com os 70 mm.
ResponderExcluirCaro Renato, obrigado pela visita e parabéns pelo seu blog de memórias cinéfilas. Um abraço, Armando.
Excluir