Foto: Antonio Paz/JC
Publicado originalmente no site do Jornal do Comércio, em 30/10/2012
REGISTRO: Cinema em transição: da película ao digital
Por Priscila Pasko
A luz da projeção de um filme ilumina as poltronas de uma
sala de cinema vazia, quando o Cinespaço Wallig, no Bourbon Shopping Wallig,
ainda não tinha sido inaugurado. Enquanto a imagem é exibida à audiência
inanimada, lá atrás, de onde parte o facho de luz, técnicos em mecânica,
eletrônica e elétrica caminham apressados de um lado ao outro entre as sete
cabines de projeção. Diálogos soltos de diferentes filmes se fundem nos
corredores juntando-se aos ruídos dos últimos ajustes. Um cinema não é feito
apenas de público, filme e pipoca, mas, sobretudo, dos bastidores que fomentam
essa engrenagem.
Em uma das janelas envidraçadas, antes de fazer um reparo,
dois funcionários estão sentados sobre uma maleta de ferramentas. Mas logo
todos voltam ao trabalho. Se é noite ou dia, ninguém sabe, a noção do tempo se
perde no ambiente refrigerado pelo potente ar-condicionado.
São as consequências enfrentadas por equipes de empresas que
montam a estrutura de um cinema. Muitas vezes, a rotina de trabalho ultrapassa
15 horas por dia. “Almoço e janto no
shopping. Só vejo a luz do sol no trajeto até aqui”, conta o carioca Valter dos
Santos, de 48 anos, prestes a se aposentar daqui a cinco.
A rotina deste técnico montador está prestes a acabar, para
a felicidade de sua filha de oito anos, que cobra a presença do pai, afinal,
ele costuma ficar, em média, até um mês fora de casa, montando salas de cinema
pelo Brasil afora. “Comecei como bilheteiro. E, como sempre gostei de máquinas,
acabei gostando da coisa e com isso lá se vão 30 anos. Comi e me vesti por meio
desta profissão. Mas, apesar de curtir, estou me cansando. Mesmo assim, estou
preocupado. Quero parar, mas se eu adoecer por falta disso?”, indaga, aflito,
Santos.
Se depender do avanço tecnológico no segmento
cinematográfico, profissionais como Valter sentirão muitas saudades de casa, já
que a tecnologia está renovando as salas e cabines, o que exige a presença de
profissionais. Um exemplo disso é a sala Imax, que tem previsão de ser
inaugurada em dezembro no Cinespaço Wallig. A tecnologia desenvolvida pela Sony
apresenta ao espectador uma tela com 14m de altura e 21m de largura, tamanho
que equivale a um edifício de cinco andares.
É justamente esta magia que o espectador busca, desde quando
a imagem de uma locomotiva afugentou espectadores durante a primeira exibição
pública dos irmãos Lumière, em 1895. “O público se transforma em função também
desse viés tecnológico”, explica o coordenador do curso de superior de
Tecnologia em Produção Audiovisual da Pucrs, João Guilherme Barone. “A partir
do momento em que o público se acostuma a isso (tecnologia), ele passa a
desenvolver outras capacidades de recepção. O cinema não é mais apenas o que se
vê na sala escura. Isso é um tipo de cinema muito original ainda, mas já se
oferecem outras maneiras de ver o conteúdo audiovisual.” Barone lembra que a
atração do público, ligada à tradição do espetáculo artístico, ainda exerce
atração na natureza humana: “O digital não elimina isso”.
Película com os dias contados
No entanto, não é o protagonismo da tecnologia na projeção
de imagens que incomoda os mais puristas da sétima arte, mas a substituição de
sua fonte que, durante mais de 100 anos, registrou 24 quadros por segundo. Sim,
o fim da película já foi preconizado.
Na opinião do crítico de cinema do Jornal do Comércio, Hélio
Nascimento, se for para mudar, que seja para melhor. “Porque, neste caso, não
faria sentido tirar a projeção de película e inserir a digital. Agora, quando o
equipamento (digital) é bom, é extraordinária a qualidade (da imagem). Até
arriscaria dizer que é melhor do que a projeção de película, mas isso acontece
raramente ainda”, lamenta. Nascimento aponta que alguns equipamentos digitais
ainda encontram problemas, resultando em imagens “sem luz, contraste, quase sem
cor”, o que já não acontece com a película, quando a cópia é boa.
A previsão é de que em 2014 a película não seja mais
distribuída pelos grandes estúdios, mas apenas o formato digital. O coordenador
do curso superior de Tecnologia em Produção Audiovisual da Pucrs, João
Guilherme Barone, salienta que, na França, no ano passado, 52% dos filmes
rodados eram em formato digital, um marco histórico.
Automaticamente, a redução na circulação de filmes em
película implica aumento na produção do formato digital. “A questão do
armazenamento do material digital é dramática, pois a preservação dos arquivos
é muito mais complexa e cara do que película, que tem a garantia de 100 anos,
se armazenada em condições ideais”, adverte o professor.
Atrás da janela de projeção
Para Fernando Costa, magia do cinema está na película.
Foto: Marco Quintana/JC
Considerando o alto custo de conservação dos filmes em
arquivos digitais - cerca de cinco vezes mais do que a película - e os valores
nada modestos de equipamentos que façam tais projeções, as pequenas salas de
cinema temem o futuro. “Inapelavelmente terei que mudar para projeção digital,
porque já não trabalho mais com determinadas distribuidoras em função disso”,
conta o diretor do Guion Center, Carlos Schmidt. “Essa fase de transição não
está me agradando muito. Um projetor hoje custa cerca de R$ 200 mil. Estou ao
sabor do vento”, lamenta.
Na visão de profissionais do ramo, os reflexos já afetam -
mesmo que timidamente - a presença do público nas salas de cinema do circuito
alternativo, por exemplo. “Quando inauguramos este espaço, em 1999, havia forte
presença de universitários. Mas com a possibilidade de fazer download de
filmes, perdeu-se o hábito”, lamenta o programador da Sala P. F. Gastal, Marcus
Mello.
Enquanto o processo de criação, projeção e armazenamento do
cinema sofre as mudanças inevitáveis, na sala de projeção, o som da película
estalando no equipamento ainda é a trilha sonora de muitos projecionistas. “A
condição de eu trabalhar aqui e a minha identificação com o cinema está
justamente em montar um filme de 35 mm”, conta um dos projecionistas da Sala P.
F. Gastal, Fernando Costa, há cerca de dez anos na função.
Neste universo, a tarefa de montar um filme e vê-lo
projetado é transmitida por uma espécie de herança, que alcança bilheteiros,
trabalhadores de serviços e quem mais espiar com certa frequência o que
acontece dentro de uma sala de projeção. “Não existe vestibular para operador
de cinema”, lembra Fernando, que faz questão de exibir à reportagem um trecho
do filme Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988).
Rota alternativa
Até que o projecionista monte e exiba o filme, uma seleção é
feita pelo programador da sala em questão. No caso da Capital, apenas para
citar as do circuito alternativo - são dez no total ,- é preciso manter alguma
identidade para atrair o público e não ter conflito entre os títulos. “Porto
Alegre tem um circuito alternativo muito privilegiado, proporcionalmente, além
de ser a cidade que mais tem salas de cinema por espectadores. Fazendo a
relação entre sala e habitantes, nosso circuito é o mais generoso”, destaca
Marcus Mello, programador da Sala P. F. Gastal, na Usina do Gasômetro.
Por outro lado, o programador do Cine Santander, Glênio
Póvoas, pensa que está cada vez mais complicado programar uma sala de cinema.
“Os custos de distribuição são tão elevados que, às vezes, chegam a patamares
que não damos conta”, lamenta. Quanto ao retorno de público ou bilheteria,
Póvoas concorda com a pluralidade de opções, o que também ajuda a dispersar
espectadores. “Porto Alegre tem muita sala alternativa e uma concentração muito
grande no Centro da cidade”, conclui. Por isso, a sala procura apostar em
pequenas mostras, entre outros eventos, como festivais de cinema, que também
costumam ser exibidos no espaço.
Enquanto a programação das salas comerciais geralmente é pautada
pelo mercado e pelo que as majors oferecem, as salas alternativas procuram
outros requisitos, dependendo do perfil que pretendem apresentar.
No caso do Guion Center, o formato da grade assumiu essa
identidade pela dificuldade em adquirir determinadas cópias comerciais. Mesmo
assim, o diretor do local mostra restrição ao termo: “Nunca quis exibir filmes
de um só gênero. Mas acabei enveredando para um tipo de filme mais alternativo,
palavra muito ruim para qualificar o que é extremamente comercial em seu país
de origem”, afirma Carlos Schmidt.
Outra sala que mantém um conceito forte é a P. F. Gastal,
que procura dar destaque ao cinema brasileiro e latino-americano, além de
trabalhar com a formação do público, dirigida a estudantes da rede municipal,
como explica Mello: “Também damos espaço à cinematografia chamada periférica,
que está à margem do cinemão americano, que ocupa quase 90% do mercado”. O
programador pensa que uma sala pública tem que ser espaço de divulgação de
outro tipo de cinematografia, como as produções europeias e orientais, por
exemplo.
Na verdade, não existe propriamente uma data que marque o
início da função no circuito alternativo, explica o crítico de cinema Hélio
Nascimento. “O termo programador de cinema alternativo está diretamente
relacionado a salas especializadas em uma programação selecionada. Mas,
atualmente, o conceito de cinema de arte perdeu um pouco de sua força, mas
ainda é uma referência e território de resistência.” (PP).
Texto e imagens reproduzidos do site: jornaldocomercio.com
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