Archimedes Lombardi, mentor do Cineclube Ipiranga. (Foto: Nabor Jr. -- Flickr)
Cinema à moda antiga
Por Júlio Simões *
É noite e a porta de vidro que dá acesso à uma sacada está
aberta, mostrando a luz de um trem que faz barulho no horizonte. Venta, e o
vento levanta a cortina, lambendo os objetos situados em um criado-mudo ao lado
da porta. O interior do quarto ao qual pertence a porta de vidro também sente
sua presença leve, assim como o restante da mobília e um papel com os recados
anotados pela mulher para o marido, que se ausentou sem dar explicação. O
silêncio do vento só é interrompido pelo som da campainha da casa. A mulher,
uma inválida que permanece a maior parte do dia sentada na cama, se assusta e
coloca rapidamente um lenço na boca, como se tentasse conter o grito de horror.
O desespero se justifica porque ela havia acabado de ouvir dois homens
planejarem pelo telefone a execução de um crime para aquela noite, perto dali.
A campainha segue tocando. Uma, duas, três vezes. A casa
está vazia, e o centro da sala de entrada, iluminado apenas pelos feixes de luz
incidentes da área externa, indica isso. As enormes escadas em círculo, também
mal iluminadas, formam um caracol que liga a sala de entrada aos quartos, onde
está a única habitante da casa no momento.
Com a campainha tocando cada vez mais forte, ela decide
deixar a cama e caminha com dificuldade (sua invalidez está nas pernas), se
equilibrando na mobília até chegar à porta do quarto. “Quem é? Quem é? Espere
um minuto, eu estou indo! Você pode me ouvir? Estou sozinha aqui!”, grita ela,
enquanto caminha com dificuldades. “Quem é, pelo amor de Deus, quem é? Eu não
posso ir até aí embaixo. Eu estou no último andar, e eu estou doente”,
completa, aumentando a aflição na voz.
De repente, sem qualquer motivo aparente, a campainha cessa.
A mulher diminui os gritos, mas segue falando sozinha, desta vez como se
tivesse certeza de que algo está acontecendo. “Oh, espere um minuto, não vá
embora. Preciso de ajuda. Por favor. Por favor, não vá. Não pode me ouvir? Não
pode me ouvir?”, prossegue o apelo, sem sucesso.
Alguns segundos depois, o silêncio volta a dominar
completamente o ambiente. Pelo menos até o primeiro toque do telefone, que faz
a mulher voltar às atenções novamente para dentro do quarto. O rosto permanece
assustado, o som da música de suspense sobe. Até que...
Em um movimento brusco, porém silencioso, o velho pula de
uma das poltronas azuis e, ainda no escuro, alcança as cortinas pretas e a
porta fechada. Ultrapassa o obstáculo num instante e logo aperta o passo até o
pequeno cubículo de dois metros quadrados, cujo acesso é por uma meia-porta e
uma escadinha tortuosa. Lá dentro, em segundos, sobe em um pequeno banco de
madeira e puxa com força um rolo do tamanho de uma pizza, trocando-o por outro
aparentemente idêntico.
Na platéia, a meia-dúzia de presentes permanece estática, em
silêncio, como se estivesse em pause. A luz da sala segue apagada e apenas uma
ou outra sombra é vista pela fresta da cortina e da porta entreaberta. A cena,
do suspense “Uma Vida Por Um Fio”, de 1948, certamente prendeu a atenção dos
espectadores. Pelo menos enquanto o primeiro rolo de 16 mm estava rodando no
velho projetor Kodak Pageant 120M, “provavelmente de 1965”, como arrisca
Archimedes, o responsável pela exibição naquela noite.
É ele, um senhor alto, com poucos e desarrumados cabelos
brancos, nariz bastante rechonchudo, olhos pequenos e uma imponente barriga que
estica as camisas sociais claras ao limite, quem cuida dos filmes exibidos ali.
Bem-humorado, daqueles que perde o amigo, mas não desperdiça a piada,
Archimedes Lombardi é o senhor do Cineclube Ipiranga, que há 17 anos resiste no
bairro, grande parte deste tempo na Biblioteca Roberto Santos, onde até hoje
funciona todo santo sábado.
A saga do colecionador, porém, começa muito antes do
intervalo entre a primeira e segunda parte do filme. Ainda durante a tarde,
Archimedes separa alguns rolos e duas caixas pretas com as alças já surradas em
um canto de seu bagunçado escritório, localizado no coração do bairro do
Ipiranga, em São Paulo. Às cinco e meia, recolhe todo este material e o coloca
no porta-malas de um velho Fiat Uno Mille branco, que quase sempre precisa de
uma ajuda para ligar. Porém, nada que o faça chegar com menos de uma hora de
antecedência no compromisso marcado religiosamente para as 19 horas.
Archimedes quase sempre viaja sozinho, mas vez ou outra tem
a companhia do discípulo Vinícius ou de algum convidado especial para a sessão.
Na chegada à biblioteca, relembra em voz alta a rotina: “E lá vamos nós
novamente. Já se vão 17 anos...”, resmunga, como se comentasse consigo mesmo,
enquanto carrega com dificuldade os materiais para a exibição. Este jeito
saudosista de comemorar a chegada ao destino, porém, não carrega qualquer
sentimento ruim ou de obrigação, como pode parecer. Pelo contrário. O prazer de
Archimedes é exibir seus filmes antigos para quem quiser ver.
Tanto que costuma pedir sugestões aos próprios espectadores
antes de levar uma lista de possibilidades à Secretaria da Cultura, que fica
responsável por programar os filmes do mês. Muito destes já fazem parte da
própria coleção do cinéfilo, mas outros tantos são cedidos pelo discípulo
Vinícius ou por outros colecionadores da rede de amigos, a “Associação
Brasileira de Colecionadores de Filmes 16 mm” (ABCF), fundada em 1992.
A bitola, criada em 1923, foi bastante utilizada por
amadores até o começo dos anos 1990, mas acabou perdendo espaço para o VHS, que
era mais prático, popular e de fácil conservação. Hoje, em tempos de DVDs e
Blu-rays, o 16 mm é um artigo raro fadado à extinção.
A própria coleção de Archimedes foi diminuindo ao longo dos
anos. No auge, o cinéfilo chegou a ter aproximadamente 800 filmes empilhados em
casa, 10 vezes mais do que a quantidade que acumula atualmente. Além da
degradação de muitos rolos, que facilmente se deterioram devido à dificuldade
de conservação e a baixa qualidade do material (a simples umidade do ar pode
comprometer a integridade deles), a decisão de se desfazer de grande parte da
coleção também teve um lado filosófico.
“Tem gente por aí que não empresta e nem exibe, gosta apenas
de dizer que tem 500 filmes na coleção. Mas adianta alguma coisa ter um monte
de rolo empilhado, sem qualquer utilidade?”, questiona Archimedes, antes de
admitir outro “inimigo” de suas fitas. “E também minha mulher reclamava muito.
Ela odeia cinema”, conta, sem esclarecer se a posição da esposa foi
determinante ou não na decisão de se desfazer da coleção.
O fato é que boa parte de seus rolos acabaram sendo vendidos
à Vinícius, colecionador mais jovem do que ele e, segundo o próprio Archimedes,
com maior vontade e competência para preservar os filmes. “Ele é muito mais
organizado do que eu. Além de conservar melhor os rolos, tem todos cadastrados
no computador, tudo organizadinho”, explica o velho, revelando as práticas do
amigo, que acredita ter aproximadamente 700 filmes, quase todos catalogados.
A amizade entre os dois e o conseqüente envolvimento do discípulo
com as sessões de sábado começou quando Vinícius descobriu que era mais
interessante colecionar rolos de 16 mm do que Super-8 ou VHS. “Eu nunca
imaginei que existissem tantos filmes antigos e completos disponíveis. Em
Super-8 eram apenas trechos curtos, um resumo do filme em 20 minutos. Um saco
de assistir”, conta o jovem de apenas 34 anos, aproximadamente 10 dedicados a
coleção.
Desde então, Vinícius começou a juntar filmes e mais filmes,
até que um dia sua busca por novos títulos esbarrou em Archimedes. “Nós dois
queríamos uma fita italiana que eu acabei comprando. Não me lembro qual era o
nome dela, só sei que eu acabei emprestando para ele e depois troquei por duas
preto e branco, já que aquela valia mais por ser colorida e legendada. No
final, acabou voltando tudo para mim quando eu comprei quase todos os filmes
que ele tinha”, sorri.
Apesar da afinidade, Vinícius Del Fiol é, em muitos
aspectos, diferente de Archimedes. Franzino e baixo, sempre mantêm os cabelos
negros minuciosamente arrumados e o tom de voz bastante calmo, características
que denunciam seu jeito metódico e introspectivo. É do tipo de colecionador que
prefere acumular títulos, daqueles que exibe apenas para dar “ritmo de jogo” ao
filme, evitando que o rolo se deteriore rapidamente.
No entanto, quando está responsável pela sessão do dia, o
cinéfilo se mostra bastante dedicado na função, mesmo que ela só renda R$ 100
por exibição, valor que pouco ajuda na compra de novos filmes e nos custos de
manutenção das máquinas. Para se ter uma idéia, os rolos custam de R$ 100 a
R$200, enquanto o conserto pode chegar até a R$ 400, preço de um novo projetor.
Ainda assim, Vinícius vê alguma vantagem em deixar sua casa
em Santo Amaro para exibir filmes no Ipiranga. “Eu faço disso aqui o meu momento
de lazer. Durante a semana é impossível tirar a máquina do guarda-roupa para
projetar. Por isso é que eu digo que isso é uma obrigação que se torna lazer”,
arremata Vinícius, que atua como professor universitário do curso de
Publicidade na Faculdade Anhembi-Morumbi. “Embora agora tenha o lado
financeiro, já que somos fomentados pela Secretaria da Cultura, isso aqui é
apenas uma brincadeira. O meu trabalho de verdade é a faculdade”.
Por isso mesmo, Vinicius não vê o que faz todo sábado como
um ato de resistência. “Vejo como uma brincadeira mesmo. É aquela coisa: a hora
que enjoar e der na telha isso aqui acaba. Só acho que seria interessante
tentar atrair outro público, mais jovem do que esse. Falta sermos mais
conhecidos, embora seja complicado para qualquer programa cultural de São Paulo
concorrer com a divulgação que acontece aí fora. É engraçado porque geralmente
a pessoa vem e diz ‘puxa, que legal, não sabia que isso existia’”, divaga.
A necessidade de renovação levantada por Vinícius se
justifica pelo fato de a maioria do público já ter mais de 60 anos de idade. O
grupo cativo é formado por aposentados e moradores da região, embora haja
exemplos de gente que atravessa a cidade apenas para assistir aos filmes
antigos exibidos por Archimedes e Vinícius. É o caso de José Maria Passalaqua,
que mesmo aos 71 anos ainda tem fôlego para deixar sua casa na região central e
partir rumo ao Ipiranga todo sábado.
Disposto e falante, Zé Maria é daqueles que não mede
esforços para assistir um filme. Freqüenta tanto o Centro Cultural São Paulo e
a Cinemateca, localizados em regiões mais centrais, quanto cinemas distantes,
como o do Shopping Metrô Itaquera, na Zona Leste. Em poucos minutos de
conversa, é possível concluir que aquele senhor de aparência frágil, rosto fino,
bochechas levemente flácidas e olhar caído é um cinéfilo compulsivo. Pelas suas
próprias contas, assiste a mais de 10 filmes por semana, de todos os gêneros
possíveis e nas mais variadas salas. Reluta em listar seus gêneros preferidos,
mas admite que detesta documentários por serem “chatos demais”.
Outra figurinha carimbada do cineclube é Cândido Martinez.
Embora tenha origem espanhola e seja natural do interior de São Paulo, o senhor
de 77 anos e pouco mais de 1,60m de altura poderia facilmente ser confundido
com um típico italiano, dada a baixa estatura, o bigode ralo, o forte sotaque
paulistano e a presença constante de uma boina encobrindo seus fios
completamente brancos.
Por ser morador do Ipiranga há muitos anos, Cândido também
acompanhou o auge e decadência dos cinemas do bairro. Entre as décadas de 1950
e 1980, funcionaram na região salas importantes como Sammarone, Maracanã e
Anchieta. O primeiro ficou aberto até 1969, enquanto o segundo esteve em
atividade até meados da década de 1970. Já o terceiro resistiu até 1982, quando
fechou as portas e deixou bairro conhecido como cenário do grito da
independência de Dom Pedro I sem qualquer cinema.
Quem também freqüentava as enormes salas de cinema do bairro
e agora não perde uma exibição de Archimedes e Vinícius é Maria Mendes Martins
Centoamore, de 71 anos. Apesar do jeito acanhado, a senhorinha de ombros
curvos, cabelos longos sempre presos e roupas tão comportadas como as de uma
beata admite a preferência por filmes românticos e musicais, especialmente os
do ídolo Elvis Presley.
O músico norte-americano, que atuou em mais de 30 filmes,
também já foi tema de algumas sessões no cineclube. Para atrair o público,
Archimedes divulgou a programação especial aos freqüentadores por carta, e-mail
e telefone, além de ter convidado imitadores do cantor para se apresentarem
antes da sessão e assistirem ao filme, em um evento que lotou a biblioteca de
fãs de Elvis, inclusive dona Maria.
Outro evento que agitou o cineclube foi a exibição de
episódios do seriado “O Vigilante Rodoviário”, popular nos anos 1960, que
contou com a presença do ator Carlos Miranda e do diretor Ary Fernandes. Até
hoje, Archimedes mantém no escritório, entre pilhas de papel da gráfica da qual
é dono e onde se ocupa durante a semana, uma foto tirada com o Inspetor Carlos,
que compareceu caracterizado com o vistoso uniforme bege da Polícia Rodoviária.
Sucesso de público.
Quem também já visitou o Cineclube Ipiranga foi Anselmo
Duarte, diretor do único filme brasileiro vencedor da Palma de Ouro no Festival
de Cannes, o clássico “O Pagador de Promessas”, de 1962. Archimedes lembra que
a presença do ator, diretor e roteirista surpreendeu aos espectadores e até a
si mesmo. “Eu mandei um e-mail para ele falando sobre a exibição do filme, mas
não tinha ideia de que ele poderia aparecer. No fim, ele acabou vindo, assistiu
ao filme, deu autógrafo, foi atencioso”, relembra o cinéfilo, contando
orgulhoso dos “feitos” alcançados.
Em 17 anos de cineclube, muitas outras sessões especiais
foram programadas e encheram a pequena sala de projeção da biblioteca (que
atualmente comporta 101 pessoas), assim como o arejado salão de entrada, onde
os freqüentadores costumam se reunir para conversar antes do início da sessão.
É comum ouvir discussões acaloradas que vão de opiniões sobre o filme
programado para o dia até perguntas complexas que desafiam o cérebro de
qualquer cinéfilo, quase sempre ao estilo “qual era mesmo aquele filme lá com aquele
ator?”.
Mesmo que a presença do público não seja equivalente a de um
cinema comum, as sessões comandadas por Archimedes e Vinícius costumam
registrar números muito melhores do que as outras realizadas pela Secretaria da
Cultura na própria biblioteca. A exibição de “Uma Vida Por Um Fio”, por
exemplo, contou com 18 pessoas na platéia, número um pouco abaixo do comum, mas
ainda assim muito maior do que o único herói registrado algumas horas antes, na
exibição do documentário “Rolling Stones - Gimme Shelter”. Sim, apenas um
espectador acompanhou o filme sobre a banda naquela tarde.
Por tudo isso é que Archimedes não mede esforços para levar
adiante o compromisso. Quando começou, o cinéfilo tinha mais de 800 fitas,
morava num sobrado pequeno que hoje pertence a filha e sofria muito de rinite.
“Olhei para tudo aquilo e pensei: ‘isso é muita coisa só para mim, isso é
loucura’. Foi aí que dei a ideia para o Leão [Antônio Leão da Silva Neto,
pesquisador de cinema] de montarmos um esquema para exibir nossos filmes”,
conta.
O ano era 1992 e o bairro já sofria há 10 sem uma sala de
cinema sequer. Com o apoio de Leão e alguns outros amigos, Archimedes descobriu
que o salão da biblioteca, na época chamada de Genésio de Almeida Moura, estava
disponível. “Tinha quatro dedos de poeira, baratas, ratos, enfim, isso aqui
estava completamente abandonado”, lembra o cinéfilo, que pediu a limpeza da
sala e, como primeira ação, promoveu uma mostra de filmes, que também incluía a
exposição de quadros e alguns eventos musicais.
Com o sucesso da iniciativa, acabou sendo convidado a usar o
espaço para exibir seus filmes semanalmente. Ficou por lá até 2004, quando
deixou a biblioteca para realizar a Sessão Cineclube no Sesc Ipiranga, que
oferecia melhor infra-estrutura. Em meados de 2007, a sessão foi cortada da
programação e só voltou no ano seguinte, já novamente na biblioteca onde tudo
havia começado. Hoje, 17 anos depois, Archimedes mantém o cineclube e até cuida
de uma nova programação, a Sessão Nostalgia, que acontece sempre às quartas-feiras
e exibe filmes clássicos em DVD.
Já sobre o futuro, seja seu, da coleção ou até do cineclube,
Archimedes se mostra passivo e até um pouco conformado. “O dia em que eu
fritar...”, inicia Archimedes, antes de ser interrompido pelo repórter, que não
entende a metáfora. “O dia em que eu morrer, ‘fritar’, sabe?”, esclarece em
seguida, com um tom natural demais para quem está comentando o próprio fim.
“Quando isso acontecer, eu já disse para a minha filha que
ela tem que pegar todas as coisas e ver o que ainda tem valor no mercado. Aí,
como ela conhece um pouco disso, falei para ela reunir aquele pessoal que gosta
e “quebrar” [dividir] tudo para fazer dinheiro. Se quiser guardar uma máquina
ou um rolo de filme para mostrar que um dia isso tudo existiu, tudo bem”, prevê
Archimedes, que silencia após a frase. Segundos depois, decreta: “Agora, se
deixar na mão da minha mulher, ela vai jogar tudo isso no lixo”, complementa o
cinéfilo de 67 anos, agora já em tom menos sério e confessional, provocando risos.
A seriedade só retorna quando o assunto é novamente o
cineclube. “O Vinícius pode até tocar isso aqui lá para frente, mas o problema
é que ele não é do bairro e precisa vir de longe para exibir. Eu já conheço
muita gente, inclusive dos jornais onde eu sempre divulgo as sessões. Para ele,
ficaria mais difícil tocar essa parte...”
“Posso interromper para guardar a máquina?”, pede
Archimedes, já se levantando da cadeira e seguindo para o cubículo onde o
aguarda o velho Kodak Pageant. A segunda parte do filme já havia acabado há
algum tempo e nenhum outro espectador permanecia na biblioteca àquela hora. A
conversa animada com o repórter havia quebrado a rotina do cinéfilo, que quase
sempre recolhe os materiais e segue para casa, embora algumas vezes prolongue
as discussões sobre cinema com algum amigo na pizzaria mais próxima.
Enquanto desmonta a máquina, com movimentos rápidos que
exigem força e experiência adquirida nos anos que observou o trabalho de amigos
no Cine Anchieta, Archimedes se abre. “Sabe... Eu ainda não desisti porque tem
muito filminho que a gente tem e que não saiu em DVD. Só que o projetor de 16
mm você precisa ficar atento com as trepidações, com possíveis problemas,
enquanto com o DVD é só por o disquinho lá e o filme já está na tela”, compara.
“Por isso eu digo que já estou meio cansado...”, admite,
enquanto se prepara para carregar o material trazido para a sessão. Apesar da
dificuldade, Archimedes nega ajuda e leva sozinho o pesado projetor em uma das
mãos e dois rolos de filmes embaixo do braço. Alguns metros depois, troca as
últimas palavras com o porteiro e o repórter, entra no carro que novamente
custa a ligar e, antes de se perder no horizonte de ruas altas e baixas do
bairro do Ipiranga, se despede: “Até sábado que vem”.
*Reportagem produzida no segundo semestre de 2009 durante o
curso de pós-graduação em Jornalismo Literário na ABJL. Foi publicada na
Revista Up! #19, em outubro do mesmo ano.
Texto e imagem reproduzidos do site: chamaojulio.com
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