Nilton possui cena em película do filme "Spartacus", com Kirk Douglas, de 1960
O aposentado possui vários projetores de cinema antigos
Publicado originalmente no site DEBATE NEWS, em 22 de março de 2020
Uma paixão pelo cinema
Morador de Ipaussu tem um museu cinematográfico em casa, com direito a uma tela com cortina automática
Sérgio Fleury Moraes (Da Reportagem Local)
Quando assistiu ao filme “Cinema Paradiso”, a obra prima de
Giuseppe Tornatore, o pernambucano Nilton Uchôa Cavalcanti chorou. Afinal, a
história do menino que se encantava pela “sétima arte” era exatamente um
retrato do aposentado. Nilton fez o mesmo pela vida, dormindo e trabalhando em
cinemas do Nordeste e do Sudeste, recolhendo, inclusive, tiras dos filmes para
vender nas manhãs de domingo, quando a molecada costumava trocar gibis ou
figurinhas na frente do cinema. “Eu assisti a este filme mais umas quarenta
vezes”, conta Nilton, hoje morador em Ipaussu e aposentado.
Aos 77 anos, Cavalcanti não vive apenas das lembranças. Ele
transformou sua casa num verdadeiro museu cinematográfico, inclusive com
projetores antigos, alguns da época do cinema mudo. Nas paredes, cartazes de
filmes, principalmente os mais antigos com Errol Flynn, Clark Gable, Rock
Hudson, Charlton Heston e outros. Ele guarda cenas de filmes históricos na
película original, como “Spartacus”, de Stanley Kubrick e com Kirk Douglas no
elenco. Mas possui mais, muito mais.
Nilton Uchôa Cavalcanti, morador de Ipaussu,
literalmente
respira cinema
Nilton Cavalcanti tem uma história rica. Nascido em Águas
Belas-PE, foi criado em Caruaru. A família era numerosa e ele conta ter um
parentesco com o ex-deputado carioca Tenório Cavalcanti, que é alagoano. O
lendário político inspirou o filme “O Homem da Capa Preta”, com José Wiker no
papel principal, e costumava andar com a inseparável “Lurdinha” debaixo das
vestes. “Lurdinha” era como chamava sua submetralhadora.
Um dia, uma tragédia abateu sobre Nilton e seus irmãos. A
mãe morreu e o pai — “irresponsável”, segundo ele — resolveu dar todos os
filhos em adoção. Nilton não aceitou e simplesmente fugiu. Virou um menino de
rua durante anos. Tinha apenas dez anos e nunca havia frequentado uma escola.
Foi parar em Capendi-PE, onde dormia na estação de trem. Um
dia, pediu emprego num cinema, dizendo que podia trocar os letreiros e limpar
os cômodos. “Eu trabalhei algum tempo em troca de um pão doce e um caldo de
cana na hora do almoço. Foi assim que fui aprendendo a sobreviver”, contou.
Ganhou tanta confiança que recebeu a chave do prédio para
trabalhar quando o responsável não estava. Foi aí que, escondido, deixou as
calçadas e passou a dormir perto da telona. Claro que precisava acordar
cedinho, antes da chegada dos funcionários. Nunca perdeu a hora.
Nilton Uchôa Cavalcanti trabalhou nos estúdios de Amácio
Mazzaropi
Sala da residência possui um cinema adaptado
Com os letreiros, começou a aprender a ler e escrever.
Quando conseguiu juntar um dinheiro, partiu para Recife. “Em todas as cidades
por onde passava, eu sempre procurava o cinema. Meu negócio era mesmo este”,
lembra.
Mas o grande centro nordestino foi uma ilusão. Aos 14 anos,
passava fome e voltou para as ruas. Um dia, chegou a desmaiar na rua e quase
foi atropelado. Não comia nada havia três dias. Foi aí que um americano se
comoveu com o garoto e entregou a ele uma nota de 500 mil réis. “Eu nunca tinha
visto uma nota daquela”, disse. A primeira reação foi se alimentar. “Comi um
prato enorme de macaxeira e ainda repeti”, lembra.
Com o dinheiro que sobrou, comprou uma roupa decente e
partiu para a rodoviária. Mostrou no guichê o dinheiro e perguntou se dava para
viajar até o ponto final do ônibus mais bonito. “Eu nem sabia o destino.
Parou em Caruaru. E, claro, foi procurar um cinema. Antes,
porém, foi trabalhar num bar e conseguiu um local para dormir. “Era um banquinho
do salão de sinuca. Dormi quatro anos naquele banco”, disse.
Já tinha quase 18 anos quando fazia letreiros para um cinema
de Caruaru. Uma pessoa o reconheceu pelo nome e avisou que um dos irmãos estava
em São Paulo. Trocou correspondência e, pouco tempo depois, estava na capital
do Estado mais rico do Brasil.
Depois de trabalhar com Mazzaropi em Taubaté (leia abaixo),
Nilton ficou 27 anos no Cine Banco do Brasil. Já com família, uma das filhas
também se casou e veio morar em Ipaussu. Numa das visitas, gostou da cidade. “É
calma, lembra minha terra em Pernambuco”, pensou. Já aposentado, decidiu ficar.
Museu do cinema
Na residência em Ipaussu, Nilton resolveu não apenas viver
de memórias, mas encher a casa com peças e filmies que fizeram parte de sua
vida. Hoje, a moradia é praticamente um museu cinematográfico.
Numa sala especial, por exemplo, há uma réplica de tela de
cinema em miniatura. Ao comando de botões e no apagar das luzes, soa uma música
e, automaticamente, as cortinas se abrem para o início de um filme. Não é uma
TV, mas uma projeção que ele construiu. Na semana passada, durante a
entrevista, a sessão foi “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.
O “museu” particular tem, ainda, antigos projetores —
inclusive um da época do cinema mudo —, películas e mais de 7.000 títulos em
DVD. Ele busca tudo através de contatos com colecionadores.
Em algumas ocasiões, teve sorte. Ele conseguiu comprar três
rolos de filmes originais de Carlos Miranda, o lendário “Vigilante Rodoviário”,
astro do primeiro seriado da televisão filmado em película de cinema.
Há cartazes de filmes espalhados pela casa, bonecos de
personagens de filmes antigos — como os de “Os Dez Mandamentos”. O interessante
é que cada peça tem uma história, que é apaixonadamente contada por Nilton
Uchôa Cavalcanti, que também virou artista plástico e mágico. Mas, como num
filme, fica para a segunda parte.
PRESENTE — Nilton ganhou chapéu do astro de “O Cangaceiro”,
de 1953
‘O Mazzaropi foi meu melhor patrão’
Nilton Uchôa Cavalcanti trabalhou nos estúdios de Amácio
Mazzaropi, até hoje cultuado no cinema e considerado um dos maiores atores
cômicos da história. O ator e produtor montou um estúdio cinematográfico numa
fazenda em Taubaté, que era o cenário de seus principais filmes. Para se ter
uma ideia de sua fama, em Santa Cruz do Rio Pardo os filmes de Mazzaropi
costumavam provocar filas de dois quarteirões no antigo Cine Pedutti.
Nilton era responsável pela montagem de cenários. “Ele
sempre foi humilde. Eu conversava toda hora com ele, que era muito amável”,
conta. Ficou quatro anos no emprego, mas aprendeu, inclusive, a projetar
filmes. Na verdade, Nilton se especializou até em mecânica de projetores.
Conheceu muitos artistas do cinema, inclusive Milton Ribeiro,
o ator de “O Cangaceiro”, filme de 1953 de Lima Barreto que venceu o Festival
Internacional de Cannes e ficou em cartaz em 80 países — cinco anos na França.
Nilton, aliás, ganhou de Ribeiro um chapéu de cangaceiro,
que, orgulhosamente, está pendurado na sala de cinema de sua casa.
A caixa de papelão, ainda intacta, foi um projetor
construído na infância
Texto e imagens reproduzidos do site: debatenews.com.br
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