Publicação compartilhada do site CORREIO 24HORAS, de 28 de Julho de 2022
O guardião da memória do cinema baiano
Roque Araújo fala sobre sua história, as mudanças do museu de Cachoeira e o sonho de ter uma sede em Salvador
Corta! Toda aquela cena em Cachoeira, onde boa parte do acervo do Museu do Cinema Roque Araújo estava ao relento, não passou de uma ficção. O próprio Araújo tomou um susto digno de filme de terror quando soube do suposto despejo de suas ricas peças pelas redes sociais. Ele estava em Salvador e não entendeu nada. “Aquilo não fui eu não, cara. Eu nem sabia. A cidade se revoltou, jogou em tudo que foi lugar nas redes sociais. Já sabia que o material seria transportado para outro lugar, mas não me esperaram para fazer a transferência e pegaram de qualquer jeito. Isso me deixou retado, mas não fomos despejados”, disse Roque, pela primeira vez após o episódio.
Na verdade, o filme de Cachoeira já teve um final feliz. Roque Araújo viu que toda revolta nas redes sociais e da população cachoeirense era sinônimo de amor. Ele se sentiu acolhido como nunca sentiu antes. Inclusive, depois de toda polêmica, estudantes, professores e a população em geral da cidade do Recôncavo colocaram a mão na massa para ajudar Roque Araújo a fazer a transferência de todo material que conta a história do cinema. O antigo casarão que abrigava o museu receberá o Memorial da Irmandade Da Ajuda. A nova sede do Museu do Cinema será próximo à Câmara Municipal, mas só ficará pronta para inauguração no dia 25 de junho.
Contudo, não significa que o acervo não poderá ser visitado até lá. O desfecho de toda confusão fez nascer uma exposição com a cara e beleza de Cachoeira. Com previsão de estreia para 20 de abril, boa parte do museu ficará exposto na antiga estação de trem do município para visitação. Na verdade, será uma homenagem ao próprio Roque Araújo, no Festival Internacional de Cinema Finisterra Brasil Afrobarroco: Film Art & Tourism, onde serão expostos câmeras 16 e 35 mm, projetor de manivela, ilhas de corte e edição, além de dispositivos de áudio de diversas épocas. Existe a possibilidade deste acervo permanecer no local até a estreia do local fixo. O material que não for exposto ficará guardado numa escola fechada da cidade até a inauguração da nova sede.
“Estamos aqui na correria para deixar a exposição pronta. Todos ajudando, você precisa ver que coisa linda. Estudantes, professores, funcionários da prefeitura, uma força-tarefa. Todo mundo pegando no pesado. Você quase não me encontra para bater este papo”, disse Araújo, que emenda. “Já que você me encontrou, vou passar a bola para você. Coloca aí no jornal que estou com material pronto e embalado para fazermos um museu do cinema em Salvador. O que está faltando é um lugar para ser a sede. Aí na capital, sim, estou sem lugar para o acervo”, completa.
Segundo o próprio Roque Araújo, ele tem 3.892 peças que contam a história do cinema embaladas em Salvador, precisando apenas de uma sede para que a capital tenha seu próprio museu da sétima arte. Apesar do seu legado estar em Cachoeira, Roque Araújo é soteropolitano, menino da Ribeira, e sonha com seu legado sendo contato também na capital baiana.
“Tenho outras peças raras que ainda não cataloguei que também podem fazer parte do museu de Salvador. Há quatro anos eu espero um lugar para contarmos a história do cinema na capital. Temos museus da música, do samba, mas não temos do cinema. Nossa riqueza cinematográfica é incrível. Nós temos o Glauber Rocha, zorra!”, disse Araújo. “Tantos casarões fechados no Pelourinho, no Comércio… Um poderia ser o museu, né? Me ajudem aí, vá”, disse.
Acervo
Para quem ainda não conhece o Museu de Cinema Roque Araújo, saiba que temos peças únicas na história da sétima arte. O guardião cinematográfico da Bahia elege três como especiais. O primeiro, talvez o mais raro no aspecto histórico, é a segunda versão do projetor dos irmãos Lumière, objeto único que ele adquiriu em Paris, na França.
Os irmãos Auguste e Luis Lumière são considerados os pais do cinema. Eles foram responsáveis pela primeira exibição de imagens animadas, no final de 1895, na França. Foi o primeiro filme exibido em toda história. Eles apresentaram ao mundo o cinematógrafo, que mais tarde ficou conhecido simplesmente como cinema.
“Estava trabalhando na França, na década de 70, e vi esta segunda câmera no Museu dos Irmãos Lumière. Eu já estava juntando coisas para fazer o museu e disse aos administradores que queria uma peça dos irmãos para exibir no Brasil. Eles disseram que iriam pensar e oito dias depois me deram um valor, algo caríssimo justamente para eu não comprar. Aí eu disse: ok, pode fazer o recibo. Eles mudaram de cor [risos]. Trouxe para o Brasil, está aqui em Cachoeira, em solo baiano. Peça única. Pouca gente sabe disso”.
Sua ideia de fazer um museu surgiu por acaso. Ele tinha um projetor para exibir filmes em casa, nos encontros com amigos. Na época ele já era grande amigo de Glauber Rocha. Porém, foi um outro brother, em 72, que o fez pensar num museu. “Enquanto rodava um filme, um amigo disse que seu pai tinha em casa um projetor pequeno que eu poderia projetar filmes nele. Perguntou se eu não queria comprar. Ele disse que era de 1944, mas que estava funcionando. Achei bonito, era todo cromado, comprei”, lembra Roque.
Acontece que, depois de uma longa pesquisa, a grata surpresa. O projetor vendido pelo amigo, na verdade, foi fabricado em 1910 e só haviam 10 exemplares no mundo. Dois estão no Brasil: um em São Paulo e outro em Cachoeira, considerada a primeira peça do museu. Depois, num trabalho de formiguinha, Roque Araújo começou a adquirir outras raridades para o novo sonho de fazer um museu sobre o cinema.
Onde ele viajava, procurava enriquecer o acervo. Na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, ele adquiriu a terceira peça mais importante de sua coleção. “Passei a ser um caçador de peças raras para este objetivo. Quando fui trabalhar na Copa de 74, consegui um dos primeiros projetores fabricados na Alemanha, uma caixa de manivela, datado de 1896. Temos isto em Cachoeira, peça única no mundo”, conta. Em 1994, segundo o próprio Araújo, após voltar da Europa, onde morou na Itália e França, resolveu colocar em prática seu museu, mais especificamente no Recôncavo.
A escolha de Cachoeira também foi natural e sem planejamento prévio. Sua ideia era abrir em Salvador, inclusive. Porém, ele ministrava cursos na cidade e sempre colocava em exposição algumas peças. “Lembro de uma exposição que acabou ficando cinco meses na universidade de Cachoeira. A Prefeitura começou a pedir para que eu trouxesse mais material. O que seria em Salvador, acabou indo parar em cachoeira”.
A prefeitura acabou convidando para que o museu se tornasse fixo em Cachoeira, no prédio que na última semana gerou toda confusão e mal entendido. Só no município do Recôncavo são mais de 1.900 peças. Em Porto Seguro são 1.300, sem contar os embalados em Salvador.
Glauber
No Museu, as peças relacionadas a Glauber Rocha têm um valor sentimental. Não apenas pelas raridades, mas por ser um material do próprio amigo. Roque participou da produção de todos os filmes do cineasta baiano, incluindo a última obra, A Idade da Terra, de 1980, que depois originou No tempo de Glauber, produzido e dirigido por Roque Araújo.
O documentário, de 1986, é uma seleção de filmagens e registros raros de Glauber, incluindo trechos de Idade da Terra e cenas cortadas do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964. Ele trabalhou com tudo nos filmes de Glauber. Chegou até a ser ator, fazendo um papel rápido de um cangaceiro em Deus e o Diabo. Contudo, a melhor recordação para Araújo é a amizade com Glauber.
“Glauber era uma metralhadora de palavras, mas brincava demais. Uma alegria em pessoa. Nas filmagens, no set, ela transmitia uma energia maravilhosa. Era o dia todo fazendo piada, cantando e brincando conosco. Ele que inventou o dominó cego, sabia? Uma vez também fez um campeonato de pum, onde ele era o juiz. Quem soltasse mais pum nas filmagens, vencia. Ele contava”, lembra Araújo.
Também foi Araújo que ajudou o amigo Glauber nos tempos que morou fora, principalmente no exílio. “Na época ele abriu uma conta, mas nunca assinou um cheque. Eu assinava tudo e cuidava das despesas de seu Adamastor e dona Lúcia (os pais de Glauber)”, lembra. “Herdei muita coisa de Glauber que está em exibição no museu, como películas, câmeras, entre outras dezenas de peças raras do nosso cinema brasileiro. Mas a principal herança foi conviver e ser amigo dele”, completa.
A história de Roque Araújo se confunde com o cinema baiano. O primeiro filme baiano teve a participação dele, nas filmagens de Redenção (1958), filme de Roberto Pires. Não parou mais. Segundo o próprio cineasta, também fez parte de filmes como Grande Feira ( Roberto Pires, 1961) e O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962).
Sem contar que trabalhou em todos os filmes de Glauber Rocha, como os premiados Deus e o Diabo na Terra do Sol (1967), Terra em Transe (1968) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Acabou morando fora da Bahia durante 30 anos, enquanto esteve ao lado de Glauber. Roque teve diversas funções e também produziu diversos filmes e documentários. Ele costuma dizer que só não trabalhou como maquiador e transformista no cinema. Roque também foi Diretor do Sindicato dos Técnicos da Indústria Cinematográfica nos anos 70.
Um pouco da história de Roque Araújo é contada em um dos vídeos da mostra A Origem - Micro Sound Cine, que retorna na segunda temporada, de forma online. O vídeo é o making of do e-book Almanaque Sound Cine, premiado em 2021 pela Lei Aldir Blanc Bahia. A direção geral é assinada pelo desenvolvedor de som e imagem Fabrício Jabar e o vídeo com Araújo está disponível no perfil oficial da mostra no Facebook.
Perto de completar 85 anos no próximo dia 12 de Abril, ele pede apenas um sonho realizado como presente de aniversário. “Não quero dinheiro. Quero apenas o apoio para fazer um museu do cinema em Salvador. Focou na cena? Salvador merece este museu. Já recebi convites de outros estados para expor o acervo, mas quero em Salvador. Só preciso de um lugar”, pede Araújo, que também comemora 65 anos de cinema este ano. "Rapaz, Desconfio de quem diz saber tudo de cinema. Não sabe, pois o cinema não para e se reinventa sempre. Costumo dizer aos alunos que a gente nunca sabe tudo. Eu sou um eterno aprendiz".
Ele também aceita doações relacionadas ao cinema. O material pode ser entregue em Cachoeira. Caso as doações estejam em Salvador, por exemplo, basta entrar em contato com o museu. “Eu me viro pra ir buscar. O importante é preservar nossa memória cinematográfica. Parece que é mais difícil preservar do que fazer cinema”, finaliza. E aí, Salvador. Bora ‘rodar’ este museu?
Texto e imagens reproduzidos do site: correio24horas.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário