Publicação compartilhada do Facebook/Gente de Atibaia, de 19 de setembro de 2019
Tite Zambelli: ele guarda as belezas do passado de Atibaia
Quem compra na tradicional Loja Gimenes, localizada na rua que fica à esquerda de quem sobe para a Rodoviária de Atibaia sabe que por lá pode-se encontrar de tudo. Desde um prego até um fogão industrial. A tal loja é famosa por sua variedade de ofertas em matéria de ferragens e ferramentas, noves fora uma infinidade de utilidades domésticas. Das mais modernas que fazem parte das exposições das feiras de UD (Utilidades Domésticas lá do Anhembi) até algumas que já foram parar nos museus.
Os mais antigos dizem, inclusive, que o Gimenes substituiu, e bem a Casa Rosa, histórico comércio que fechou suas portas em 1976, depois 83 anos de atividade na cidade. (Leia a história da Casa Rosa através do livro Atibaia & Sua Gente https://bit.ly/2ZrH70F, do jornalista Edgard de Oliveira Barros que entrevistou Plácido Rosa, filho do fundador do armazém).
O que pouca gente sabe, no entanto, é que a loja Gimenes guarda também um importante acervo de memórias de Atibaia ao alcance de todos. Ele costuma ficar atrás do balcão e muitos conhecem pelo nome de Tite Zambelli. Zambelli é um senhor de 75 anos, cabelos brancos, pele clara, olhos azuis e de conversa calma. Mas muito objetiva. Funcionário mais antigo do armazém viveu sua juventude como operador do projetor cinematográfico nos famosos Cine Ita e Cine Theatro República. Mais que isso, mantém em sua casa o mais valioso arquivo de fotos e negativos capazes de levar qualquer pessoa a um melancólico passeio numa pacata Atibaia do início do século XX. E mais: Tite possui também uma das maiores coleções de máquinas fotográficas do país (são mais de 200 unidades). Entre os seus xodós estão vários daqueles modelos de fole que acompanharam grandes nomes da fotografia mundial no começo de carreira de artistas como Henri Cartier Bresson e Pierre Verger. E, no entanto, tem um especial apreço por um modelo que conseguiu comprar de um vizinho, isso depois de muita persistência. Trata-se de uma Speed Graphic - 1920 igual à que Jacqueline Kennedy usava como repórter e fotógrafa do jornal americano Time Herald.
Tite Zambelli nasceu em Atibaia em 1944. Segundo filho do casal Tito Zambelli, à época funcionário do setor de alvejamento da antiga Companha Têxtil Brasileira de Atibaia, e de dona Angelina. Começou a trabalhar bem cedo, aos 12 anos já andava pela Fecularia José Soldera. “Eu canjicava o milho (canjicar é debulhar os grãos da espiga), para deixa-lo de molho, e depois secava pra moer e fazer farinha”, lembra. Aos 14 anos soube de uma vaga para serviços gerais no Cine Itá e não pensou duas vezes. “Não que o emprego na fábrica de farinha fosse ruim, é que eu era fascinado por cinema. Gastava meu suado dinheirinho nas matinês de domingo quando o cinema mostrava Flash Gordon, Falcão da Floresta, Deusa de Jobá e jogos da seleção brasileira.”
Ele não esconde que trabalhava o dia inteiro na fábrica de farinha e no fim da tarde corria para fazer limpeza no cinema. “Lembro que quando comecei o cinema estava exibindo o jogo da final do mundial de futebol de 1958. O rolo do filme só chegou no cinema de Atibaia um mês depois. Mesmo assim o público lotou a sala para assistir e vibrar com os gols de Vavá, Pelé e Zagallo naquele 5 x 2 histórico quando a seleção brasileira foi campeã em cima da Suécia. O público congelava a cada jogada e chute. Quando a bola entrava no gol era a maior festa e alegria. Parecia que tudo era ao vivo!”, recorda cheio de entusiasmo.
Quando Tite assumiu a tal vaga do emprego no cinema, tinha como uma de suas obrigações varrer a sala de exibição. Algumas vezes fazia as vezes de porteiro recolhendo bilhetes enquanto o amigo Péricles, o “Peca”, estourava e vendia pipoca. Mas seu desejo mesmo era aprender como operar o projetor e ser o responsável por aquele feixe de luz mágico capaz de atravessar a fumaça dos cigarros e charutos que eram frequentes e permitidos naqueles tempos nas salas de cinema. A beleza daquilo tudo aquilo hipnotizava as pessoas. Diante de tantos sonhos, tratou logo de fazer amizade com o “gigante” João Ganancio, um negro forte e cabeludo que trabalhava como projetista cinematográfico oficial.
Na verdade Ganancio foi contratado porque era eletricista e ajudou na montagem dos equipamentos. Tite sempre dava um jeito de ir até cabine para aprender um pouco por vez. Enquanto ajudava a enrolar os filmes, ficava impressionado com a habilidade de Ganancio em manter tudo funcionando dentro da perfeição. Difícil explicar, mas a luz que saía de dentro do projetor era causada pela faísca do “curto” entre os bastões de carvão que projetava o filme até o telão na parede.
“A luz era tão forte que a gente não podia ficar olhando direto para ela, queimava a vista. Mais ou menos igual àquela faísca de máquina de solda, sabe como é? Cada bastão durava meia hora e o projetista era responsável pelos rolos dos filmes e pela troca dos bastões. Um trabalho difícil que geralmente acabava em queimaduras, em várias partes do corpo”, lembra.
Só que o seu entusiasmo era tanto que certo dia Ganancio lhe deu um conselho: “Não aprenda essa profissão garoto! Você vai perder sua liberdade. Você vai se machucar, virar escravo disso tudo e nunca mais vai conseguir sair...”. Mas Tite não lhe deu ouvidos. Aquele era o emprego dos seus sonhos. Fazer parte de toda aquela magia e ainda receber salário! Vira essa boca pra lá Ganâncio!”
Décadas depois, no início dos anos 90, Tite se viu voltando ao passado e chorou ao assistir o filme Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, contando a história de amizade entre o pequeno garoto Totó e um velho projetista do cinema da cidade. “Alfredo, va fan cullo!”, Tite cai na risada com os olhos marejados ao recordar a cena memorável. “Me vi na tela daquele filme. As conversas, os conselhos. Tudo igual ao que vivi.”
Mas, nem tudo eram flores no cinema. Certa vez um comissário de menores barrou Tite na porta do cinema porque não se tratava de uma sessão de matinê. Foi preciso que o gerente do cinema, Lázaro Chiochetti, se visse obrigado a correr para explicar ao comissário: “o Tite pode entrar sim, ele trabalha com a gente. É nosso funcionário”.
O Cine Itá possuía dois projetistas. Além de Ganancio, tinha o Vitorino, que, por incrível que pareça, era surdo. Como naquela época não existiam profissionais capacitados era preciso garimpar pessoas na cidade. Apesar de deficiente auditivo, Vitorino mantinha uma oficina de reparos em aparelhos de rádio e tinha bons conhecimentos de eletrônica. Ele era plenamente capaz de realizar as exibições dos filmes além de ajudar na manutenção das máquinas.
Curioso e até engraçado, como não ouvia Vitorino , ficava de olhos vivos nos rolos dos filmes que, claro, conforme rodavam, ficavam menores. Antes que acabasse o primeiro rolo, o segundo já deveria estar pronto para dar continuidade à projeção sem que houvesse cortes. Se ocorresse uma mínima falha o público disparava um festival de vaias e xingamentos. E o que mais se ouvia era o grito: “Projetista navalha!”, querendo se referir ao corte da exibição.
Mas teve um dia que Vitorino faltou ao serviço e não deu notícias. Era a deixa que Tite tanto esperava. Como era o primeiro na “linha de sucessão” e já tinha aprendido bastante, ficou ciscando em volta de Ganancio. Só que o amigo fez o maior suspense, fingiu pensar em outra pessoa qualquer. Tite quase teve um troço. “Venha cá, garoto, só estou brincando. Pegaí, o projetor dois é seu”. Enfim chegara o grande dia, agora tudo estava perfeito. Tite tinha o emprego dos sonhos no Cine Itá, teve 600 cruzeiros de aumento no salário e começou a curtir os encantos das primeiras namoradinhas.
Os funcionários do cinema tinham direito a um descanso por semana. A paixão de Tite pelo emprego era tanta que nos dias de folga fazia questão de levar as namoradas ao cinema. Uma vez o projetista não conseguiu emendar o segundo rolo na hora certa e o filme deu uma parada. Não demorou e os xingamentos ecoaram nos quatro cantos da sala de exibição: “Tite navalha!”, gritaram. “Eu estava na plateia com uma paquerinha e me escondi de tanta vergonha”. Até hoje Tite ri quando se recorda.
Em 1964, aos 20 anos de idade, Tite já não achava tão legal a vida que levava na cabine de projeção, suas prioridades eram outras. Já homem feito estava namorando sério e pensava em noivar, casar e constituir família... Aquele conselho tão importante do Ganancio no sentido de que ele não teria liberdade com a profissão de projetor se repetia em sua memória feito filme bom de bilheteria. Nessa época, além dos filmes, Tite também assistia a decadência do Cine Itá. A televisão tinha chegado para valer. Os televisores invadiram as casas da elite atibaiense trazendo também os primeiros vídeos cassetes que surgiam no horizonte da tecnologia. Para muitos as telas grandes dos cinemas estavam com os dias contados.
Como os pais haviam mudado para Jundiaí, onde a expectativa de emprego era grande, Tite resolveu ir atrás e conseguiu um trabalho como operário numa respeitada fábrica daquela cidade. Teria carteira assinada, plano de assistência médica , pagamento de horas extras, 13º salário e folga nos finais de semana, coisa que até então não conhecia. O emprego era na Krupp Metalúrgica. Caiu do céu.
Com a segurança que o novo emprego oferecia Tite comprou alianças e pediu a mão da namorada em casamento. Jovem de família tradicional ela aceitou sem titubear. Não demorou e estavam no altar da Igreja Matriz São João Batista. “Ivone Ferraz aceita Tite Zambeli como seu legítimo esposo?”, perguntou o padre. “Sim”, respondeu a noiva. Começavam ali as gravações de um lindo filme romântico estrelado por Tite e Ivone.
Ivone era descendente do Coronel Manuel Jorge Ferraz, influente personalidade de Atibaia no século XIX e proprietário do solar que mais tarde ganharia o nome Casarão Julia Ferraz, imponente ponto turístico da cidade que tristemente hoje se equilibra graças a escoras de madeira.
Vivendo em Jundiaí o casal teve dois filhos: Rodson e Renata, mas Tite não abandonou o Cine Itá, tanto que nos finais de semana vinha para Atibaia para fazer uns “bicos” no cinema, leia-se projetando filmes. Como em uma profecia, viu o amigo Ganancio desligar as luzes do cinema e encerrar a vida do velho projetor para sempre. Chegava ao fim a era do Cine Itá em Atibaia.
Mas Tite não abandonou o seu amor pelas artes. Sem cinema, a fotografia entrou na vida de Tite. Foi por intermédio do primo Augusto Zambelli, que trabalhava no já tradicional laboratório de fotos e revelações São João, propriedade do senhor Carlos, localizado no calçadão da Rua José Alvim. Foi ali também que Hélio Marques, melhor amigo de infância de Tite iniciou uma promissora carreira de fotógrafo. Com o passar do tempo, seu Carlos vendeu o estúdio. Quem assumiu o negócio foi o Hélio que fez questão de manter o mesmo nome deixado pelo ex-patrão e passou, então, a ser conhecido em toda a cidade como Hélinho da Foto São João até hoje.
Para complementar a sua renda e preencher o espaço vazio deixado pelo cinema, Tite passou a fotografar nos finais de semana. Chegou a ser o fotógrafo oficial da Associação Esportiva Jundiaiense cobrindo grandes shows e eventos realizados em Jundiaí. E não era coisa pouca, tinha Roberto Carlos, Ray Conniff, The Platters e muitos outros. Sua câmera também registrava cerimônias e festas de casamentos e batizados até que veio a onda das máquinas portáteis. Tite se arrepiava quando tinha que disputar espaço com aquela turma de parentes e amigos que se empoleirava na sua frente com as minúsculas Yashicas, Kodaks tantas outras.
O tempo passou e Tite se aposentou como supervisor de tratamento térmico na Krupp e voltou com a família para Atibaia aceitando o convite do concunhado José Gimenes para ajudar nas vendas da Gimenes & Ferraz Ltda. A fotografia se transformou em atividade de lazer e distração. Tite passou a integrar o Clube de Fotografia de Atibaia e iniciou efetivamente sua orgulhosa coleção de máquinas fotográficas além de colecionar fotos e negativos antigos de Atibaia, coisas lindas produzidas a partir dos anos 1900. Figuram entre os autores-fotógrafos nomes ilustres de Atibaia como Alfredo André, Ari André e Mario Abramo. Suas obras estão espalhadas pelas paredes de comércios da cidade e prédios públicos. Há alguns anos passaram a fazer sucesso também no universo digital devido às redes sociais.
Tite se considera um homem feliz por ter contribuído com a preservação das imagens, claro, mas, às vezes não esconde uma certa mágoa quando não constata sua presença dos necessários créditos aos autores das fotos e dos trabalhos que são repetidos sem muito respeito. Ele sabe, ele ouve que muita gente já ganhou dinheiro reproduzindo essas imagens tão preciosas sem ao menos pedir autorização para isso. Além da parte financeira, uma questão de justiça. Mas tem outra coisa que aborreceu Tite ao extremo, bastante triste mesmo foi a saída de Dona Ivone, sua esposa, do filme de sua vida. Ela faleceu em 2017, aos 79 anos em consequência de sequelas de um AVC.
Apesar das tantas mágoas e dores Tite segue firme atendendo no balcão da loja Gimenes. Mas não perdeu seu lado artístico. Mantém seu templo particular da fotografia situado na parte de baixo de sua casa. Organiza negativos, mata saudade da Atibaia antiga projetando negativos sob a luz do teto e admira a coleção de máquinas.
Tentou resistir à tecnologia até que ganhou uma máquina digital do amigo de longa data Flávio Pileggi. As fotos que clica são transferidas para um Cd que depois exibe na tela do seu televisor.
“Fotografia sempre foi arte, mas está deixando de ser... a tecnologia está passando por cima de tudo. Sou do tempo em que o encanto de fotografar estava no ajustar da abertura do diafragma, na velocidade do obturador, na regulagem certa do ISO. Parece que isso está acabando. Hoje você aperta o botão e a máquina já faz tudo sozinha”, lamenta. Mas Tite Zambelli pode ter certeza de que a tecnologia jamais será capaz de superar a história de pessoas ilustres de Atibaia, assim como a dele.
Texto e foto: jean takada
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Gente de Atibaia
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