domingo, 1 de outubro de 2023

Projecionista da Sala Ulysses Geremia, em Caxias, Jones Rodrigues

Legenda da foto: Jones Rodrigues: de aprendiz que apenas rebobinava filmes, aos 14 anos, a uma vida toda dedicada a projetar filmes nos cinemas de Caxias

Legenda da foto: Jones em 2004, já na sala de projeções da Sala de Cinema Ulysses Geremia, porém ainda trabalhando com rolos de filmes

Legenda da foto: Jones em frente ao monitor, na Sala Ulysses Geremia. A cabine é a mesma, mas a tecnologia mudou radicalmente

Publicação compartilhada do site GAUCHAZH, de 8 de setembro de 2023  

MEMÓRIAS DE CABINE

Projecionista da Sala Ulysses Geremia, em Caxias, Jones Rodrigues tem quatro décadas dedicadas ao cinema

Caxiense construiu grande parte da sua trajetória no antigo Cine Imperial, mas passou também pelo Cine Ópera

Por Andrei Andrade

Hábito que já foi tão presente no cotidiano das cidades quanto ir ao futebol ou descontrair no balcão do bar, o cinema, em seu auge, também se misturou à paisagem das cidades, especialmente quando as salas de rua interagiam com o cenário urbano. É com olhar nostálgico, mais do que crítico, que o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho revisita este passado glorioso em "Retratos Fantasmas", documentário que está em cartaz até domingo na Sala de Cinema Ulysses Geremia, em Caxias do Sul.

Coincidência ou não, as sessões de 'Retratos Fantasmas" em Caxias do Sul _ assim como todas as outras no cinema do Centro de Cultura Ordovás _ foram exibidas por um projecionista cuja trajetória se mistura com a das principais salas de cinema da cidade, há quase 40 anos. Jones Paulo Rodrigues da Silva, 70 anos, viu o auge e o declínio do Cine Imperial, onde trabalhou por mais de 15 anos; além de ter assistido, em dezembro de 1994, ao fatídico incêndio do Cine Ópera, onde também comandou a sala de projeção por um período menor.

- Sempre conciliei o trabalho no cinema com o dos correios, que foi onde me aposentei. Saía da última sessão e ia para o correio passar a madrugada trabalhando. Naquele dia eu estava saindo da agência com alguns colegas, quando vi aquela claridade forte, que na hora já deu pra perceber que era um incêndio. Quando chegamos e vi que era no (Cine) Ópera, foi de partir o coração - recorda. 

Antes de ser projetista, Jones entrou pela primeira vez na cabine como auxiliar, aos 14 anos, sendo responsável por rebobinar os filmes exibidos no Imperial, que ficava na esquina das ruas Visconde de Pelotas e Sinimbu (onde hoje há uma farmácia). Naquele período, entre 1966 e 1968, não era contratado pelo cinema, mas sim pelo projecionista, como um aprendiz. Ao completar 18 anos, serviu ao exército no 3º GAAAe, mas nem no quartel se afastou do cinema.

- Tinha lá a Sala Castelo Branco. Nos dias de chuva, em que não dava pra fazer exercícios na rua, eu passava os filmes que me emprestaram na TV Caxias. Passava faroeste, "bang bang", coisas mais antigas - conta.

Foi após deixar o serviço militar que Jones ingressou no Cine Ópera, mas apenas por alguns meses. Quando surgiu a oportunidade de retornar ao Imperial, o qual considerava sua segunda casa, não hesitou. E lá ficaria até 1993, quando, já cansado do ofício, achou que não voltaria mais à cabine. 

Foi nas décadas de 1970 e 1980, especialmente, que Jones vivenciou o cinema como parte do cotidiano dos caxienses. Guarda na memória exibições históricas, como a do filme Dança Com Lobos, que ficou em cartaz por quase seis meses em Caxias. 

- Eu já sabia a hora de trocar o rolo do filme pelo uivo do lobo, pelo relinchar do cavalo, pelo barulho do tiro - diverte-se.

Devido ao tamanho das salas (a do Imperial comportava mais de 600 pessoas), em algumas comédias Jones saía da cabine e ia para a rua, de onde conseguia escutar as gargalhadas em comédias como Loucademia de Polícia. E em filmes de terror, como Sexta-Feira 13  ou O Exorcista, era o projecionista quem ria com a pegadinha que fazia com público, quando já conhecia os filmes de cor:

- Naquelas partes em que eu sabia que vinha o susto maior, aumentava o volume para o impacto ser maior ainda. Na primeira fila tinha gente que pulava da cadeira (risos). Mas tinha que aumentar e baixar na hora certa, pra ninguém perceber.

Ao longo da trajetória como projecionista, Jones acompanhou diversas mudanças tecnológicas, que melhoraram a qualidade de exibição e facilitaram o seu trabalho. Hoje, com a tecnologia digital, o profissional considera que está fácil até demais:

- Era na época dos filmes em rolo que o nosso trabalho aparecia. Tinha dois projetores na sala e precisava trocar os rolos na hora certa, porque se deixasse aparecer um rabicho do filme, a vaia pegava. Teve uma vez que peguei no sono e acordei com as vaias. Foi quando aprendi a sempre levar um livro ou uma palavra-cruzada pra fazer.

FINALMENTE CINÉFILO 

Já faz mais de 20 anos que Jones deixou a aposentadoria em segundo plano para voltar à sala escura, contratado pela Secretaria Municipal de Cultura para comandar a cabine da Sala de Cinema Ulysses Geremia. Já tendo assistido a tantos filmes que marcaram a história da sétima arte e os maiores sucessos de bilheteria, o caxiense comenta que nesta fase mais recente, podendo assistir a produções mais alternativas, pôde também refinar o seu conhecimento sobre a sétima arte:

- Foi aqui que aprendi a ver o trabalho dos atores, a diferença que faz. Se fosse antigamente, eu não ia suportar ver. Gostava daqueles filmes que se tu chegasse perto demais da tela respingar sangue em ti, sabe? Mas aqui aprendi a ver o trabalho do ator, do diretor, a fotografia, a trilha sonora. A ver o cinema como a arte que é.

Além do Cine Imperial e do Cine Ópera, onde Jones Silva trabalhou como projetista, outros cinemas marcaram a história de Caxias do Sul, sendo a maioria deles instalada no entorno da Praça Dante Alighieri, mas alguns também em Lourdes e São Pelegrino. 

Inaugurado em 1921, numa edificação toda em madeira, com alicerce de alvenaria e cobertura de zinco, deu início à era de ouro das salas de cinema em Caxias do Sul. Sofreu um incêndio em 1927 e foi reinaugurado no ano seguinte, já como o prédio que abrigaria o Cine Ópera, nas esquinas da Rua Dr. Montaury e Pinheiro Machado. Comportava até 1,2 mil pessoas, com poltronas fixas e camarotes. Por boa parte da década de 1930, dividiu público com o Cine Central. Funcionou até meados dos anos 1950, quando perdeu espaço para o seu maior concorrente, o Cine Guarany.

Localizado na Rua Marquês do Herval, no entorno da praça Dante, o Cine Guarany provocava filas com suas concorridas matinês, entre os anos 1940 e 1980. Nos anos 1930 funcionou em uma sede acanhada, que durou até 1939, quando o prédio foi demolido para dar lugar a uma nova edificação, maior e mais moderna. Parte da memória afetiva da cidade, o Guarany teve suas últimas sessões entre o final de julho e o início de agosto de 1985. Após o fechamento, o prédio serviu para a ampliação da agência do Banrisul vizinha. Posteriormente foi destino de diversos comércios e redes de varejo. Hoje, é ocupado pela loja Deltasul.

Inaugurado em 1950, em plena Festa da Uva, funcionou até 1983 no bairro São Pelegrino, sendo o primeiro cinema a ser instalado fora do quadrilátero mais central da cidade, embora ficasse na Avenida Júlio de Castilhos. Foi vítima da decadência dos cinemas de rua, quando o prédio foi vendido para dar lugar a uma filial da Lojas Brasileiras. Àquela altura, a equação entre os altos custos de projeção e manutenção e a diminuição de público não fazia a conta fechar. No seu auge, porém, recebeu foi um símbolo do bairro, chegando a receber apresentações de Chico Anysio e de Elis Regina. A sessão derradeira exibiu o filme "Pânico no Atlantic Express".

Localizado de frente para a Praça Dante Alighieri, na Avenida Júlio de Castilhos, o Cinema Central foi inaugurado em 1928 e era também a casa de espetáculos e atividades culturais do clube Recreio da Juventude. teve sua sessão derradeira em 1990, com a exibição da comédia Os Safados. Voltaria a reabrir em 1994 como uma casa de bingo.

 A edificação, elegante, chama atenção até hoje pelas esculturas de Estácio Zambelli. O prédio é tombado pelo Patrimônio Histórico de Caxias do Sul e abriga, atualmente, uma filial das Lojas Americanas.

Caçula entre os antigos cinemas de rua de Caxias, o Cine Vêneto até hoje desperta lembranças e saudades entres seus antigos frequentadores - especialmente os do bairro Lourdes. Inaugurada em 24 de novembro de 1977, com o clássico 007 - O Espião que me Amava, a sala teve sua exibição derradeira, em 26 de fevereiro de 1997, que exibiu o filme de aventura A Sombra e a Escuridão para apenas oito pessoas. A capacidade total da sala era de 400 lugares.

Localizado na Avenida Júlio de Castilhos, na divisa entre o Centro e Lourdes, o Cine Vêneto foi fundado pelo empresário Firmino Pelini, na época também proprietário do prédio onde funcionava a sala. Passados alguns anos, Pelini alugou o espaço e transferiu-o para a Distribuidora de Filmes Wermar. 

Após o breve período áureo, com filmes alternativos e ciclos - entre 1979 e 1988 -, a direção começou a exibir produções mais comerciais e títulos pornôs. Nessa época, os letreiros permaneciam vazios, e os cartazes eróticos eram afixados em cavaletes na recepção. A estratégia, porém, não evitou a tendência que atingiria praticamente todos os cinemas de rua do país a partir dos anos 1990: migração das salas para os shoppings, baixa procura do público, prejuízo e consequente fechamento.

Em 2007 as pesquisadoras Loraine Slomp Giron e Kenia Pozenato lançaram o livro “Cinemas: Lembranças” (Ed. Letra e Vida, 184 páginas), no qual abordam os cinemas de Caxias do Sul e da região de colonização italiana. Em diversos trechos do estudo, as autoras comentam sobre a ligação intrínseca entre a sétima arte, seus espaços de exibição e as mudanças de comportamento na sociedade.

“O espaço do cinema propiciou uma nova forma de reunião para as famílias, antes restrita às igrejas ou aos clubes sociais. O cinema foi aceito de forma imediata e integrado aos costumes não só da população urbana, como até da rural”, diz um trecho da obra.

No resgate histórico, as autoras destacam que O cinema em Caxias começa com o Teatro Velho, do qual há poucos registros, mas que funcionou no final do século 19 e início do século 20, na esquina das ruas Visconde de Pelotas e Os Dezoito do Forte.

“ Nos primeiros tempos as máquinas de projeção eram transportadas de um lugar para outro no lombo de mulas, e os espetáculos cinematográficos eram apresentados em várias cidades, sempre em locais que abrigassem grande número espectadores. Em Caxias, o Teatro Velho era o local apropriado para passar as fitas de cinema. Músicos locais eram contratados para animar a apresentação dos filmes mudos e a população acorria em peso às apresentações. Eram dias de festa e animação para a então pequena Vila” destacam as autoras, em trecho disponível em um blog que Loraine, falecida em junho de 2021, mantinha na internet.  

Também em trecho disponível em no mesmo blog, as autoras apontam como a imprensa caxiense retratava episódios e boatos que se passavam nas salas escuras, rendendo histórias saborosas:

“O jornal A Encrenca apresenta pequenas notas sobre o que acontece nos cinemas da região, que trazem informações interessantes sobre as relações entre as casas de espetáculos e a vida social da cidade e sobre as péssimas condições da exibição. Segundo o jornal, chegaram a ocorrer dezesseis interrupções numa única projeção, devido à falta de habilidade do operador. Em outra nota, encontra-se a alusão a um namoro no interior da cabine de projeção do cinema, onde uns "noivinhos" não deram atenção ao filme, "trocando beijinhos".·

A coluna Estão dizendo, de 1º de janeiro de 1915, informa que o Cine Ideal é o “paraíso terrestre para conquistar, já que é ponto delicioso para esse esporte". Outras afirmações revelam mudanças no namoro, com liberação nos costumes, já que um jornal alerta que as sessões com fitas duplas "estão prejudicando a zona". (...) A palavra zona é uma clara menção à zona do meretrício, que existia em Caxias, naquela época”.

Texto e imagens reproduzidos do site: gauchazh clicrbs com br

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