Publicado originalmente no Jornal ZH/Blog/Cineclube, em
26/03/2014.
A conversão digital
Vi apenas recentemente o documentário Side by Side, de
Christopher Kenneally, muito elogiado na sua passagem pelo Festival de Berlim
de 2012 por apresentar o primeiro grande painel sobre o irreversível processo
de conversão total do cinema ao suporte digital. O ator Keanu Reeves,
coprodutor do longa, entrevista dezenas de nomes expressivos da indústria,
entre diretores, fotógrafos, montadores, engenheiros e técnicos para traçar um
completo histórico da transição que está sepultando o uso do agonizante filme
em película. O resultado é didático aos não muito íntimos desse artesanato, aos
cinéfilos e também aos que têm conhecimentos mais aprofundados sobre o tema.
Side by Side mostra que os mais de cem anos de bons serviços
prestados pelo celuloide não foram espanados assim tão rapidamente pelo
digital, como indica a velocidade dos avanços tecnológicos da última década. O
ensaio para essa transição, lembra George Lucas, um dos pioneiros mentores do
processo de conversão, teve início com a montagem eletrônica proporcionada, a
partir de 1980, por sistemas como EditRoid e, na sequência, o revolucionário
Avid.
O documentário sublinha a importância do diretor de
fotografia inglês Anthony Dod Mantle. No embalo dos preceitos estéticos do
Dogma 95, movimento lançado por cineastas dinamarqueses, ele “filmou”, para
Thomas Vinterberg, Festa de Família (1998), com uma câmera Sony PC3, no suporte
mini-DV (Akio Morita, fundador da Sony, colaborou muito nesses avanços, em
razão de sua obstinação em colocar a excelência eletrônica a serviço do
cinema).
Empolgado com o resultado de Festa de Família, em especial
pela agilidade e pelos enquadramentos que a pequena câmera de mão permitia no
set, o diretor Danny Boyle chamou Mantle para Extermínio (2002) — Boyle queria
uma forma rápida e barata de captar imagens nas ruas de Londres transformada um
cenário apocalíptico.
O suporte digital foi abraçado pelos realizadores
independentes, que vislumbraram o fim das amarras impostas por grandes
orçamentos e diretrizes de estúdios. Mas havia a resistência dos que não viam o
digital como “cinema de verdade”, em razão, sobretudo, da baixa qualidade da
imagem em relação à película. Esta barreira começou a ser vencida quando a Sony
criou para George Lucas realizar Star Wars: Episódio II — Ataque dos Clones
(2002) a câmera F900, a primeira no suporte HD voltada ao cinema industrial.
A parceria entre realizadores e cientistas no
desenvolvimento de equipamentos, lembra o documentário, foi decisiva nessa
evolução. Limitações como resolução da imagem, profundidade de campo e gama de
cores foram aos poucos sendo superadas com ajuda de diretores como Michael
Mann, que usou uma câmera Thompson Viper em Colateral (2004), alcançando
excelentes resultados em imagens noturnas. Tradicional fabricante de câmeras
analógicas, a Panavision, em parceria com a Sony, criou a Genesis, primeira
câmera “full frame” (sensor no tamanho do quadro do filme 35mm), na qual se
podia ainda usar sua vasta linha de lentes — Mel Gibson fez com uma dessas
Apocalypto (2006).
Um passo ainda mais largo, fundamental para seduzir os que
ainda viam com desconfiança a qualidade da captação de imagem digital, foi dado
por Jim Jannard, milionário dono da fábrica de óculos de sol e equipamentos
esportivos Oakley. Em 2007, ele apresentou a Red One, com resolução de 4K,
equipamento que conquistou realizadores como Steven Soderbergh, usuário de
primeira hora do digital — o resultado está em Che (2008). A pedido da David
Fincher, Jannard desenvolveu modelos leves da Red One, em fibra de carbono, usados
em A Rede Social (2010).
Trabalhando com engenheiros da Silicon Image, Boyle e Mantle
usaram novas câmeras portáteis em Quer Quer ser um Milionário? (2008), que
valeu a Mantle o histórico primeiro Oscar de melhor fotografia para um filme
captado em digital. James Cameron, por sua vez, desenvolveu com a Sony a câmera
F 950, com qual realizou Avatar, filme definidor da nova era do cinema digital.
A corrida entre os fabricantes, levou à criação, pela
Arriflex, outra tradicional fabricante, da Alexia, câmera usada por Martin
Scorsese em A Invenção de Hugo Cabret (2011) e por Lars Von Trier em Melancolia
(2011). A Red respondeu com a geração Epic, usada por Fincher em Os Homens que
Não Amavam as Mulheres (2012) e por Peter Jackson em O Hobbit — Uma Jornada
Inesperada (2012). Tanto uma como outra câmera ganharam a aprovação dos mais
experientes diretores de fotografia, na linha “agora sim”.
Discorrendo sobre o progresso do digital em áreas como
montagem (Scorsese lembra os tempos em que literalmente colocava seu sangue nos
filmes, no processo de corte e colagem na moviola), correção de cor e efeitos
especiais, Side by Side chega a etapa que, em 2012, consolidava o fim do ciclo
analógico no cinema: a distribuição de filmes e a projeção digitalizadas. O fim
do celuloide na indústria, em resumo, é favas contadas. Mas os que seguem
abraçados ao processo fotoquímico defendem com bons argumentos sua
sobrevivência em um novo parâmetro, o da preservação.
Os realizadores que ainda defendiam, em 2012, a superioridade
da película — time pequeno mas reforçado por nomes graúdos, como Christopher
Nolan — falavam de texturas e nuanças ainda não alcançadas pelo digital. São
vozes quase solitárias. Questões mais relevantes dizem respeito à maneira
adequada de se preservar um filme. A cópia em película, defendem especialistas
como Scorsese, ainda parece ser a mais segura, afinal tem sido assim há mais de
cem anos. É lembrado que já foram criados mais de 80 diferentes suportes de
vídeo, muitos deles não tendo hoje equipamentos de reprodução — Fincher, aliás,
diz que junto a todos os trabalhos em variados suportes que guarda desde os
tempos da publicidade encaixota também o respectivo aparelho reprodutor. Tem
ainda a questão da fragilidade dos HDs de armazenamento etc. Mas Lucas e nomes
como os irmãos Wachowski dizem que isso é bobagem, que para cada problema
haverá uma plena solução.
Side by Side ilumina questões muito interessantes nesta
debate tecnológico. Os tempos da película, por exemplo, diante de da liberdade
permitida pelo digital n ato de fazer-apagar-refazer, exigia mais planejamento
e empenho criativo dos profissionais no set e na pós-produção, dado o custo
maior da empreitada com um filme rodando na câmera ? A facilidade e o
barateamento do processo de se fazer cinema traz a reboque, por si só, avanços
de linguagem? Diz David Lynch: “Todo mundo tem papel e lápis a mão. Mas quantas
história grandiosas foram escritas? É o mesmo com o cinema”. Para ele e outros
bons, segue valendo o óbvio: o digital é só uma nova ferramenta; o cinema
sempre dependerá do bom uso que se fizer dela.
E de que vale todo o empenho para se chegar a excelência da
imagem se as novas gerações cometem o sacrilégio de ver filmes em computador e,
pior, na tela do celular? E como encarar a ameaça de o cinema deixar de ser
palco de uma experiência de contemplação e desbunde coletivo na sala escura
para se tornar um prazer solitário? É possível reproduzir esse espírito de
coletividade no ambiente virtual? Como lidar com a enxurrada de filmes ruins
que a democratização da imagem proporciona, infinitamente superior à quantidade
de títulos relevantes? E o uso indiscriminado e injustificado do 3D para
ampliar o faturamento? Essas são algumas das questões lançadas pelo filme que
seguem reverberando e, até aqui, ainda não encontraram respostas.
Para encerrar, uma máxima de Scorsese: “O verdadeiro autor
do filme é o projecionista”. Isso porque, embora seu apego sentimental à
película, o diretor saúda o fato de o suporte digital de alto padrão homologado
pelos grandes estúdios (não confundir com as gambiarras que se tornaram comuns
no Brasil) diminuir os riscos de ocorrer diante do espectador um dos grandes
temores do cineasta: ver o filme que criou com tanto carinho e suor ser
arrasado na tela grande por uma janela errada, uma cópia desgastada, um projetor
capenga e descalibrado ou um som ruim.
Postado por Marcelo Perrone no site
wp.clicrbs.com.br/cineclube.
Texto e foto reproduzidos do site:
wp.clicrbs.com.br/cineclube.
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