Publicado originalmente no Jornal ZH, em 23/05/2014.
Fim da fita
Expansão da projeção digital consolida o esperado fim da
centenária película.
Exibidores brasileiros acelaram conversão em meio à dicussão
sobre mecanismos de financiamento estatal e preocupação com os cinemas de
pequeno porte voltados à programação menos comercial
por Marcelo Perrone *
Com a bola em campo e o tempo se esgotando, a conversão dos
cinemas brasileiros à exibição digital corre contra o relógio ainda discutindo
as regras do jogo. A partir de julho, os estúdios não têm mais compromisso de
oferecer lançamentos em película 35mm. Como o Brasil recém se aproxima do
índice de 50% da digitalização de seu parque exibidor, a oferta deve ser
prolongada em quantidade progressivamente menor, o que faz acelerar o processo
— especialistas do setor estimam que o 100% devem ser atingidos até o final de
2014.
Se os grandes exibidores estão mais adiantados na transição,
os pequenos e médios encaram a adaptação com urgência. Mais do que modernização
tecnológica, trata-se da sobrevivência no negócio. No Brasil, a transição conta
com apoio do governo federal, via uma linha de financiamento disponibilizada
pelo BNDES e gerenciada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Para o
exibidor ter acesso ao crédito, criou-se a figura do integrador, pessoa
jurídica que faz a ponte entre o interessado, o banco e os fabricantes de
equipamentos. O modelo de financiamento adota a VPF (Virtual Print Fee, a “taxa
de cópia virtual”), repasse ao exibidor do valor economizado pelo distribuidor
na confecção das cópias em película.
— Quem não digitalizar morre — diz o advogado e cineasta
Henrique de Freitas Lima, representante regional do consórcio encabeçado pela
Quanta DGT, que tem a maior carteira de clientes entre as duas integradoras em
operação no país. — Já fechamos com 30 salas no Estado. As distribuidoras vão
começar a exigir a projeção DCP — complementa, referindo-se ao Digital Cinema
Package, o "pacote" de dados encriptados em um HD que assume a função
da cópia, dentro dos padrões técnicos estabelecidos.
Testada de forma efetiva desde 1999, a tecnologia de
projeção digital só ganhou impulso em 2005, quando os grandes estúdios de
Hollywood lançaram as diretrizes do Digital Cinema Initiatives (DCI), que vem
ser a padronização dos equipamentos que garantem a distribuição e a projeção
digital de alta performance.
Segundo Freitas Lima, o sistema formado por um projetor com
resolução 2K, som 5.1 e servidor sai por cerca de R$ 120 mil, rateados em 72
parcelas a juro zero para exibidores com até quatro salas. Incluindo royalties
do software, seguro e manutenção, o custo mensal do exibidor fica entre R$ 2,5
mil a R$ 3 mil por sala. A dívida é amortizada com o repasse de VPF e outros
subsídios estatais. Para quiser incrementar sua sala com o 3D, o investimento
extra é de R$ 50 a R$ 100 mil, conforme a tecnologia adotada, operação não
contemplada no financiamento.
Afora dúvidas quanto a viabilidade do negócio e defasagem
tecnológica, inquieta os pequenos e médios exibidores o regramento da VPF. O
contrato prevê um repasse ao exibidor de até US$ 650 (cerca de R$ 1,5 mil) por
título exibido por três semanas em 60% das sessões apresentadas pela sala. O
valor diminui proporcionalmente ao tempo em cartaz e ao número de projeções.
— Esse sistema vale a pena para quem exibe blockbusters e
tem condições de obedecer às regras do VPF, que estabelece um mínimo de semanas
em cartaz daquele título — diz Gustavo Leitão, editor do Filme B, portal
especializado no mercado cinematográfico. — Os que passam conteúdo alternativo
precisam da diversidade para sobreviver. Esses filmes são distribuídos por
empresas que não têm condições de arcar com os gastos do VPF. Esse tipo de
exibidor está numa espécie de limbo entre o 35mm e o digital de ponta.
Concentração de blockbusters é um risco
Entre as salas com perfil mais alternativo de Porto Alegre,
só o Guion tem a digitalização no horizonte próximo.
— É um caminho sem volta. Já estou empacando por falta de
filmes em 35mm – afirma Carlos Schmidt, proprietário das três salas localizadas
na Cidade Baixa. — Preciso diminuir custos para absorver novos. E uma coisa é
garantir agora que terei o filme que quiser exibir, outra é a lógica das
distribuidoras na hora de decidir quem exibirá determinado filme em cada praça.
Os responsáveis por espaços como Cine Bancários, Cine
Santander, Cinemateca Paulo Amorim e Sala P.F. Gastal reconhecessem a
necessidade de adaptação, mas colocam o investimento sob a perspectiva de essa
necessidade ser imediata, diante do perfil da programação, a possível redução de
custos, a criação de linhas específicas de financiamento e os entraves
burocráticos daquelas atreladas ao poder público.
Nestas, a programação vai sendo tocada com filmes 35mm de
acervo e liberados por grandes exibidores, Blu-ray (que tem ótimo resultado em
telas menores), sistemas digitais alternativos e até mesmo DVD.
— Esse tipo de exibidor está em uma espécie de limbo entre o
35mm e o digital de ponta, com modelos de projetores de resolução inferior,
conhecidos como e-cinema. O problema é que esses modelos estão ao mesmo tempo
abaixo da qualidade de imagem do 35mm que eles antes exibiam e distantes do
padrão do digital que o espectador está se acostumando a experimentar no
multiplex. Em certo sentido, o 35mm unificava o padrão de exibição entre o circuito
de arte e o circuito comercial. Agora, com o digital, essa distância está
gritante. Ao mesmo tempo, o espectador conta com equipamentos de audiovisual
cada vez melhores em casa. Dificilmente os exibidores de arte conseguirão
sobreviver por muito tempo usando o e-cinema. Eles terão que achar uma solução
para se aproximar outra vez do padrão de ponta.
Em razão de dúvidas e reparos de exibidores e distribuidores
de pequeno e médio portes às complexidades que regram o repasse da VPF e do
receio de que a digitalização estimule a concentração ainda maior de
blockbusters no circuito, a Ancine abriu uma consulta pública até 20 de junho.
Discutem-se também formas de se apoiar salas geridas pelo poder público, ONGs e
associações com perfil de difusão cultural.
Um novo subsídio anunciado pela Ancine para os pequenos
exibidores resulta desse movimento aponta Freitas Lima. A reformulação do
Programa de Adicional de Renda (PAR) para os pequenos exibidores, em 2014,
permite que os recursos liberados sejam aplicados para amortizar os valores não
cobertos pela VPF, repasse que será encerrado em 31 de dezembro de 2019.
— Os valores e a forma de acesso serão definidos nas
próximas semanas. Este subsídio se juntará ao já existente no programa oficial,
de R$ 15 mil por sala para empreendedores com até quatro salas. Como o juro do
financiamento é zero, este segundo subsídio é um grande avanço para financiar
totalmente a digitalização dos pequenos exibidores.
Dono do cinema Santa Isabel, única sala de Viamão, Arnaldo
Henke diz não ter condições de assumir o financiamento da Ancine:
– Vou tentar outras vias para não fechar. Paguei R$ 20 mil
por um aparelho alemão de 35mm em 2007. Vai tudo pro lixo. Cobro ingresso de R$
5. Se botar o digital, vou ter que dobrar o preço.
Conversão a passos rápidos no Interior
Proprietário do Cine Cisne, com duas salas em Santo Ângelo,
Flávio Panzenhagen não esperou financiamento oficial e há um ano e meio opera
com o digital 3D:
— Como ex-presidente do sindicato dos exibidores, estava por
dentro do que aconteceria. Investi cerca de R$ 400 mil, com recursos próprios e
financiamento bancário. Eu levava cinco semanas para estrear um filme. Hoje,
sou lançador de filme. Temos que ir atrás.
A corrida de exibidores do Interior indica a urgência da
conversão. Janete Jarczeski, do Cine Dunas, com uma sala em Rio Grande e outra
no Cassino, deve assinar contrato entre junho e julho.
— O circuito em Rio Grande está se expandindo com dois
shoppings e promessa de duas grandes redes. Digitalização não é opção, é
imposição – afirma Janete.
Roberta Gorniski, diretora do Movie Arte, diz que vai
digitalizar as salas de Santa Maria, Bento Gonçalves e Erechim até outubro, e
com 3D. Roberto Levy, do Cine Globo, de Três Passos, reforça o grupo:
– Se não entrar nessa, não poderei mais exibir filmes. Com o
digital, poderemos fazer coisas como a transmissão de jogos. Nossa região tem
170 mil pessoas. Vou tentar, né?
Segundo Freitas Lima, a entrega dos equipamentos e sua
instalação só se dá após um período mínimo de 90 dias após a assinatura dos
contratos. Este prazo se deve aos mecanismos burocráticos de importação e
regularização no país dos equipamentos:
— O prazo coincide com a previsão do fim das cópias em 35mm.
Expansão e transição
— O parque exibidor brasileiro tem ritmo de crescimento
constante nos últimos anos. Encerrou 2013 com 2.679 salas em 721 complexos.
— No primeiro trimestre de 2014, este número subiu para
2.738 salas em 732 complexos.
— Cerca de 1,5 mil salas estão se digitalizando via
BNDES/Ancine. Ao menos 900 investiram ou investem recursos próprios. Outras 300
estão fora do processo neste momento.
— Apesar do crescimento, em 2013 o Brasil tinha uma sala de
cinema para cada 75 mil habitantes, menos do que Argentina (51 mil habitantes
por sala) e México (21 mil por sala) – estes em 2012.
— 392 municípios (7%) contam com sala de cinema e
compreendem 53,3% da população brasileira.
— A rede mexicana Cinépolis (no RS, com salas em Caxias) é a
única 100% digitalizada. A americana Cinemark tem índice de 58,7%, atrás das
brasileiras Cineflix (66,6%) e Cinesystem (60,4%).
— 1,7 mil (64%) das salas ainda contam com projeção em
película 35mm, parte delas em operação conjunta com o suporte digital
Fontes: Ancine e Filme B (março de 2014)
A transição digital
– No final dos anos 1990, a indústria cinematográfica
começou a levar mais a sério a tecnologia digital para uso em escala comercial.
Em 1999, a exibição da animação da Disney Fantasia 2000 empolgou os executivos
dos estúdios, até então insatisfeitos tanto com a qualidade da imagem quanto
com os custos da mudança radical de um sistema em bom uso há mais de cem anos.
– A tecnologia utlizada à época foi a DLP Cinema, que tinha
como sistema de compressão de vídeo o MPEG-2. Este exibia problemas de
composição da imagem, sobretudo na reprodução de cenas de movimento com borrões
e rastros. A conclusão foi a de que essa melhor qualidade da imagem dependia de
avanços tecnológicos, como processadores mais rápidos. Mas estava claro, ao
menos, qual o caminho a percorrer. Alguns cinemas exibiram neste formato
embrionário filmes como Matrix e Colateral – inclusive no Brasil, onde Cidade
de Deus foi uma das produções nacionais pioneiras convertidas ao digital.
– Nessa mesma época, experiências de exibição digital se
davam em múltiplas plataformas (como Betacam Digital, DVCAM e Mini-DV), com
desempenho razoável em telas de pequenas dimensões. O problema da perda da
qualidade decorrente da compressão da imagem, em especial daquela captada
originalmente em película 35mm, começou a ser solucionado com a aplicação do
sistema JPEG 2000.
– Diante da viabilidade da distribuição e projeção de filmes
no suporte digital de alta performance, os grandes estúdios de Hollywood
criaram uma padronização com o fim de garantir o desenvolvimento de tecnologia
e equipamentos comuns, diminuir custos e garantir que suas produções chegassem
aos cinemas com os parâmetros de qualidade estabelecidos por seus realizadores.
Em 2005, Fox, Columbia, Disney, Warner, Universal, MGM e Paramount firmaram o Digital
Cinema Initiatives (DCI), protocolo que estabelece as rigorosas normas técnicas
do cinema digital.
– As diretrizes do DCI determinam o sistema de compressão
(JPEG 2000), padrões de áudio e cor, velocidade de projeção, proteção de
conteúdo e até especificam detalhes como luminosidade da lâmpada de projeção e
temperatura de operação da cabine. O padrão DCI dita como resolução de imagem
os chamados 2K (1998 X 1050 pixels ou 2048 X 858 pixels, conforme a proporção
da tela) e 4K (4096 X 2160 pixels). Quanto mais pixels (pontos preenchidos na
tela), melhor a qualidade.
– A projeção DCI encontra-se em um estágio de igual
qualidade à da projeção em 35mm.
– As projeções digitais alternativas, fora do padrão DCI,
que usam a compressão MPEG, exemplo do sistema Auwe, tendem a desaparecer.
– A produção de cada cópia de filme em película custa, entre
US$ 1 mil e US$ 2 mil, diante dos US$ 100 da cópia digital.
* Colaborou Rodrigo Azevedo
Foto: Júlio Cordeiro / Agencia RBS
Texto e imagem reproduzidos do site: zh.clicrbs.com.br
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