Publicado originalmente no site Gauchazh Clicrbs, em 26/04/2019
O ofício e a arte da projeção em cinemas veem um mercado
cada vez mais escasso
Por Desiree Rios/The New York Times
NOVA YORK – Para a sessão das 21h20, Jesse Locascio encaixou
o filme no projetor. Isso depois de ter pulverizado ar comprimido nas rodas
dentadas e rolos, eliminando o pó que, de outro modo, seria visto na tela como
pontos pretos. "Não é assim que fazem no multiplex. Nem de longe",
declarou. Não na era digital.
Locascio, de 28 anos, é um projecionista de filmes que pode
trabalhar como antigamente, operando projetores com grandes bobinas de
película. Segundo ele, esse tipo de profissional é uma raça em extinção. Ele
contou que aprendeu muito do que sabe em uma longa e estreita sala de máquinas
barulhentas: a cabine de projeção do Jacob Burns Film Center, em Pleasantville,
New York.
O Jacob Burns, como é conhecido, opera um laboratório de
arte midiática, que ensina alfabetização digital, além de um cinema de arte que
estava exibindo "Como Livrar-me de Mamãe" – uma comédia de 1970
dirigida por Carl Reiner – às 21h20 na sala dois. Mas o local também treina
projecionistas, o que, em um cinema de arte, significa saber lidar com mais do
que arquivos digitais. Significa aprender a manusear a película.
"Foi uma formação completamente diferente", contou
Jesse Modica, diretor técnico do centro e, portanto, chefe de Locascio. Antes
de chegar ao Jacob Burns em 2007, Modica tinha trabalhado em cinemas
comerciais. "As aulas que tive antes não incluíam nenhuma dessas
nuances", disse, mas ele aprendeu com os profissionais do Jacob Burns,
assim como, agora, ensina aos novatos como Locascio os mecanismos de exibição
de um filme.
Treinar um projecionista é "como dar aula particular a
alguém. Grande parte requer memória consolidada. Digo: 'O.k., você deve
inspecionar o filme assim, faça isso para fazer o áudio funcionar, essa é a
maneira de garantir a proporção correta', e eles precisam se lembrar de tudo na
hora do filme. É como alguém que aprende caratê. Você pode aprender todos os
movimentos no treino, mas vai se lembrar deles quando estiver sendo atacado em
um beco?", explicou Modica.
O Jacob Burns tem cinco salas. Todas com capacidade de
projeção digital, três para projetar película. Mesmo os projetores mais
modernos são quase uma antiguidade. Modica insistiu que eles só têm dez anos de
idade, mas a empresa que os fabricava fechou.
Os projetores que rodam "Como Livrar-me de Mamãe"
são mais antigos: originalmente eram usados no Lincoln Center, de acordo com
Modica, e provavelmente datam dos anos 1970.
Durante muito tempo, os cinemas tiveram dois projetores para
cada tela. Os rolos de filme eram cortados em segmentos de aproximadamente 20
minutos e cada pedaço era rodado em uma das bobinas. Passados 20 minutos,
quando uma bobina estava prestes a terminar, o projecionista precisava começar
a próxima do outro projetor.
Havia uma razão para a necessidade de duas máquinas: a vida
útil da lâmpada do projetor não era muito maior do que 20 minutos. O
projecionista tinha de instalar uma nova sempre que ele – na época, esses
profissionais eram, em sua maioria, homens – trocasse uma bobina. Bobinas de
longa duração foram desenvolvidas entre os anos 60 e 70 e, com elas, bandejas
de apoio grandes o suficiente para emendar todos os rolos de um mesmo filme.
Isso mudou a equação do trabalho. Os projecionistas se
transformaram no que Modica chama de "um mercado de nicho". Nos anos
1940, havia mais de 30 mil deles nos Estados Unidos, 2.400 na cidade de Nova
York, mas, com a ascensão da televisão nos anos 1950, "esse número caiu à
medida que mais americanos preferiam ficar em casa e assistir à
televisão", assim descreveram os economistas especializados em mercado de
trabalho Robert D. Atkinson e John Wu em 2017 em um artigo publicado pela
Information Technology and Innovation Foundation.
Em 2015, havia menos de cinco mil no país. "Existe
escassez de oferta para esse trabalho. Não há empregos suficientes. Além disso,
a exibição de filmes está se tornando algo raro, de modo que a mentalidade da
antiga escola de projeção, quando a profissão empregava milhares de pessoas e
as cópias de filmes eram descartáveis, acabou. Surgiu a necessidade de melhorar
a qualidade do trabalho feito pelo projecionista", esclareceu Douglas
McLaren, diretor do Cinema Cornell, programa de exibição de filmes na
Universidade Cornell, em Nova York.
A massa da audiência dos cinemas não está mais assistindo a
filmes. Os grandes sucessos de bilheteria são representações digitais. (TAL MARKS gerente técnico de audiovisual do Museu de Arte Moderna
(MoMA)
Isso tem acontecido enquanto a película desaparece de quase
todos os cinemas. Entre as grandes redes, a maior parte "não possui
película", alegou Tal Marks, antigo chefe de projeção do Museu de Arte
Moderna (MoMA), que hoje é gerente técnico de audiovisual do museu. "A
massa da audiência dos cinemas não está mais assistindo a filmes. Os grandes
sucessos de bilheteria são representações digitais."
E, em grande parte das salas tipo multiplex, são os gerentes
do cinema que operam os projetores, que foi como Modica começou, aos 16 anos,
como lanterninha de um cinema de rede em Bronxville, Nova York. Era 1995, ano
em que foram lançados "Toy Story", "Duro de Matar 3: A
Vingança" e "Apollo 13".
A primeira vez que ele entrou em uma sala de projeção e viu
o rolo de filme no projetor, "fiquei maravilhado, fiquei com medo, não
queria tocar nele, não queria ser responsável por nada que desse errado".
O gerente do cinema fazia as vezes de projecionista. Modica aprendeu o básico
da função ao ser promovido a subgerente em outro cinema da rede alguns anos
depois.
Locascio também começou como lanterninha quando era
adolescente e começou o curso de cinema na Escola de Artes Visuais de Manhattan
(SVA). Após graduar-se em 2012, o Jacob Burns o contratou como projecionista,
oferecendo treinamento no local de trabalho, mesmo tendo ele aprendido a editar
filmes na SVA.
"Realmente, sinto que é um campo em extinção",
lamentou Locascio. Mesmo assim, completou, "a cópia digital ainda requer
alguém presente para controlar a qualidade e assegurar que o volume e o brilho
estão perfeitos".
Quando não está atrás dos projetores do Jacob Burns, ele
trabalha em equipes de filmagem como foquista, ou seja, é responsável por
manter a câmera focada quando o diretor grita "Ação". Ele trabalhou
no filme produzido pela Netflix "White Girl", no documentário
"The Hunting Ground" e no filme de terror adolescente "The
Ranger" (os três conhecidos no Brasil pelo título original em inglês). Ele
é escalado como projecionista no Jacob Burns três ou quatro vezes por semana.
Filmes como "Como Livrar-me de Mamãe" são enviados
por uma cinemateca e tratados com muito cuidado. "Eles não são mais
produzidos em massa. Não podemos dizer: 'Ei, distribuidor, me dê outro rolo',
porque não existe outro rolo", relatou Modica. Quando um filme chega de um
arquivo, "precisamos assinar um termo nos comprometendo a devolver a cópia
nas mesmas condições recebidas, e, se algo der errado, assumimos a
responsabilidade sobre ela. Isso nos deixa muito pressionados".
E a cópia digital, causa menos estresse? Sim e não, ponderou
Modica. "No mundo da película, um bom projecionista consegue dar um jeito
em qualquer problema técnico e mecânico enquanto o filme corre." Já com a
projeção digital, as funções do projecionista estão migrando "para o
trabalho de TI, em vez do mecânico".
Ele continuou: "Da maneira como as coisas funcionam
agora, se um software estiver corrompido, um projecionista não vai ser capaz de
consertá-lo em poucos minutos." Será necessário ligar para algum sistema
de suporte. "Se a reinicialização do servidor da máquina não resolver o
problema que você está enfrentando, será preciso interromper a projeção até a
chegada do técnico."
Às 21h20, Locascio acionou um interruptor onde se lia
"motor do projetor". A máquina começou a estalar. Na tela, os
créditos subiam.
Na sala, não havia tempo para seguir a história ou rir das
cenas engraçadas. Modica tirou da frente um projetor digital para que pudesse
acessar o outro projetor bobina a bobina e carregou o segundo rolo de
"Como Livrar-me de Mamãe".
Na tela, George Segal tomava banho e fazia a barba. Alguns
minutos depois, um homem com uma fantasia de gorila aterrorizava Ruth Gordon,
mas Locascio não prestou atenção. Ele tinha outra preocupação em mente.
"Quando é a próxima sessão?", perguntou.
Por James Barron
Texto e imagem reproduzidos do site: gauchazh.clicrbs.com.br
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