Publicado originalmente no site OUNIVERSOCULTO, em 29.07.2018
Memórias e reflexões - Quem somos? A projeção, o projetor ou o projecionista?
Por Antonio Carlos Jorge
Recordo com saudade de minha infância nos anos dourados
(fins da década de 50 até meados dos 60), onde morava com minha família na
pequena Mongaguá (litoral sul de São Paulo), na ocasião um lugarejo ligado à
São Paulo pelo ramal da antiga Estrada de Ferro Sorocabana e desprovido da
“modernidade” existente na época, como telefonia e TV, por exemplo.
Assim, vivíamos isolados, com o imenso oceano de um lado e
de outro a alta Serra do Mar que se precipita sobre a faixa litorânea,
inserindo-nos em uma atmosfera de proteção e aconchego pela exuberante natureza
virgem da bela Mata Atlântica, o nosso ninho, o nosso paraíso na Terra.
Às noites nossas diversões, além das conversas e
brincadeiras intermináveis entre os amigos, era o Cinema, nosso ponto de encontro
obrigatório na praça central, onde nos reuníamos para nos conectar com o que
havia de novo através dos filmes. Era essa a nossa única janela para o mundo.
A programação semanal do cinema incluía 4 longas. Com raras
exceções, eram películas produzidas nas décadas de 40 e 50, além dos seriados
dos anos 30 e Cinejornais, como os de Primo Carbonari, Canal 100 e os belos
documentários de Jean Mazon, sempre nos deixando ansiosos, pois esses
antecediam a atração principal anunciada pelo serviço de auto-falantes do
próprio cinema.
Meu irmão José Moacir Jorge, junto com o Luiz Solha, eram os
projecionistas do cinema e isso era muito importante para mim, pois garantia
minha entrada franqueada ao cinema e à própria sala de projeção, lugar místico
e sagrado, cujo acesso era reservado a poucos “eleitos”.
Como os filmes eram exibidos duas vezes, em dias diferentes,
exceto os dos domingos que eram exclusivos, nos dias de estréia eu os assistia
da platéia e no segundo dia de exibição, eu ajudava na sala de projeção,
rebobinando os rolos dos filmes já processados, deixando-os prontos para serem
despachados no dia seguinte. Um longa de acetato é constituído em geral de 5 a
7 rolos, então tinha muita tarefa a ser feita.
Esse era o ambiente em que vivia, rodeado de um mundo
imaginário a alimentar meus devaneios infantis, com imagens, cores e sons,
compondo sonhos de fantasias, a lembrar muito o poético e belo filme “Cinema
Paradiso”, que conta a estória de infância narrada pelo personagem Salvatore di
Vita (Totó), que assim como eu, era o ajudante do projecionista Alfredo e que
posteriormente se tornaria um cineasta italiano de grande renome (a identidade,
naturalmente, para por aí).
Foram sonhos de uma infância perdida mas que continuam a
inspirar a minha imaginação de sempre, pois as aspirações são sempre movidas
por sonhos.
Assim sempre ficou a indagação: O que é sonho, o que é
realidade!
Passados mais de 50 anos, ainda me vem à mente sobre o que
de fato somos nós:
O projecionista, o projetor ou a projeção (que é a película
exibida na tela ou ecran)?
À primeira vista pode ser uma indagação amalucada, pois como
podemos nos comparar uma pessoa àquela que está a projetar, ou a uma máquina,
ou ainda a uma simples cena que não tem consistência palpável e material?
No entanto, parece-me ser pertinente esse exercício.
Vejamos:
O projetor é um mecanismo dotado de um sistema onde giram
dois carretéis que acondicionam uma bobina de fita com fotogramas que se
movimentam a uma velocidade onde são enquadrados contra uma luz projetada a
partir de dois carvões de polaridade elétrica opostas, que não se tocam, mas
que ficam a uma distância tal que entram em fusão. Essa luz de intenso fulgor é
capaz de transferir as imagens estáticas capturadas pelo obturador contra lentes,
mas que pela sequência com que passam no obturador se tornam dinâmicas (24
fotogramas por segundo), conduzindo a imagem em aparente movimento à tela de
exibição. É uma mera ilusão, pois não percebemos os intervalos das projeções
dos quadros.
Assim é o nosso corpo físico, dotado de recursos capazes de
fazer com que nos projetemos neste mundo. A capacidade com que exerceremos a
projeção depende do bom funcionamento do mecanismo, principalmente no conjunto
luz e lentes que garantirão a clareza das imagens obtidas. A luz não pode ser
tão intensa a ponto de provocar um curto circuito (quando os dois carvões
positivo e negativo se encostam), levando a uma pane. Há a necessidade de
estarem a uma distância tal para promover a luz, mas não tão distante, pois não
haverá a projeção. Esse é o conjunto corpo físico e corpo vital que interage
com o mundo das projeções.
A película por sua vez, constituída por uma sequência de
imagens estáticas, ganham, pela dinâmica do movimento, aparente “vida” ao se
projetar na tela, com os personagens e roteiros pré-definidos e é aí que nosso
mundo se revela, dando falsas aparências de realidade. É justamente neste
ambiente que nós acreditamos nos encontrar, onde nos confundimos com as imagens
e as representações dos meros personagens (protagonistas ou coadjuvantes) de
uma tragicomédia ou drama que transformamos nossas próprias vidas.
Porém, embora não percebamos, somos de fato o projecionista.
O projecionista é aquele que personifica o espírito que nos
rege, executando o script escolhido, com a responsabilidade de que esse seja
levado a um bom termo até o fim do filme da vida.
Fico a me perguntar se é mero acaso que o fictício
protagonista do filme “Cinema Paradiso” que é o próprio projecionista é chamado
“Salvatore Di Vita”.
Traduzindo literalmente para o português Salvatore Di Vita é
o “Salvador de Vida”, que rege, vive e atua no idílico paraíso, como nós o
fazemos na vida real e não nos damos conta dessa realidade.
Somente seremos Seres plenos quando, pelo autoconhecimento,
fizermos a união de nossa real identidade (projecionista) com os transitórios
papéis que exercemos, servindo de fonte de experiências para o enriquecimento
da alma, ainda que sejam sonhos.
Parece-me que se continuamos a nos confundir com a nossa
personalidade, como meros personagens com os quais nos identificamos (eu sou
isso ou aquilo, eu fiz isso, eu tenho...), continuaremos em devaneios infantis
sonhando falsos sonhos sonhados.
Fernando Pessoa, está a nos inspirar em Poesias Inéditas em
Nada que sou me interessa:
Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer coisa que tem pressa
Terá pressa em vão.
Nada que sou me pertence.
Se existo em quem me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.
Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
m sonho do que terei.
Só que o não hei-de ter.
- - - -
Que a paz esteja nos corações.
Texto e imagem reproduzidos do site: ouniversoculto.wixsite.com
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