Publicado originalmente no site MÍDIA NEWS, de 2 de julho de
2017
Ícone cultural de Cuiabá por décadas, Cine Bandeirantes vira
ruína
Reportagem teve autorização para entrar no imóvel, que está
fechado há cerca de 15 anos
Por Vitória Lopes (da redação)
Ao caminhar pela Rua Pedro Celestino, que atravessa o Centro
Histórico da Capital, um pedestre atento percebe que algumas lojas ainda mantêm
a antiga fachada de locais que anteriormente abrigaram casas ou
estabelecimentos comerciais.
O imóvel nº19, decaído pelo tempo, só não passa despercebido
porque artes de grafite estão estampadas em sua fachada, cujo interior
abandonado guarda cinco décadas de história.
O letreiro caído, com a inscrição Cine Bandeirantes, ainda
reacende a nostalgia naqueles que puderam vivenciar sua ascensão e glória.
Nesta semana, a reportagem conseguiu autorização dos
proprietários para visitar o interior daquele que um dia foi um dos principais
programas culturais do cuiabano.
A inauguração foi um sucesso! Deu muita gente. Só que
tivemos um problema técnico, porque aqui em Cuiabá, na época, a luz elétrica
era horrível
Além da estrutura já deteriorada pelo tempo, pouca coisa ali
lembra um cinema. Já não há poltronas, já não há projetores, nem tela ou
bomboniere. No lugar, há detritos, mato, madeira danificada. Até uma árvore
nasceu em um dos cômodos do imóvel.
O escritor e geógrafo Aníbal Alencastro, de 73 anos (fotos), esteve
na inauguração em 1963 e foi responsável por reproduzir o clássico “Candelabro
Italiano” da estreia. Com 21 anos na época, Aníbal conseguiu um emprego no
Bandeirantes como projetista, após passar uma temporada em São Paulo se
especializando em cinema.
Ele conta que a inauguração foi sucesso de bilheteria e que,
mesmo com uma falha técnica, o cinema impressionou pelo excelente e moderno
sistema audiovisual.
Como já havia outros três cinemas na Capital – Cine
Tropical, na Barão de Melgaço; Cine São Luiz, no Porto; e o Cine Teatro, na
Avenida Getúlio Vargas –, muitos deduziram que ele poderia falir. Mas foi o que
mais resistiu entre os três.
“A inauguração foi um sucesso! Deu muita gente. Só que
tivemos um problema técnico, porque aqui em Cuiabá, na época, a luz elétrica
era horrível. Nós tínhamos um gerador próprio. Só que ele enguiçou. Então ficou
naquela história de esperar, as pessoas gritando e brincando: 'Que estreia é
essa?' Mas aí arrumamos o gerador e o filme começou”.
“Foi a cidade toda: a elite e a rapaziada também. O Cine
Bandeirantes era uma inovação em Cuiabá. As instalações eram modernas, tinha um
som perfeito. O tratamento acústico era muito bom, o melhor da cidade, até
melhor que o Cine Teatro. Você entendia todas as palavras por conta do material
poroso da acústica. O equipamento também era especial, da marca Simplex modelo
E7, que era avançado pra época”, detalha.
O cinema também era o contato da pequena Cuiabá da década de 60 com o resto do País. Eram exibidos, antes dos filmes, documentários ou reportagens informando a população dos acontecimentos de São Paulo e Rio de Janeiro, através do Canal 100. O futebol de Garrincha e Pelé e os desfiles de moda das grandes capitais encantavam os cuiabanos - muitos iam ao cinema somente para ver os jornais, já que a televisão só chegaria mais tarde.
Aníbal lembra também que o idealizador do cinema, Fernando
Calhao, e seus sócios compravam e escolhiam os filmes a dedo em Botucatu (SP).
Foram exibidas películas épicas, que, conforme o sucesso, eram repetidas a
pedidos dos frequentadores.
Memórias
Mesmo atrás dos projetores - com saídas escusas para namorar
sua esposa -, Aníbal compartilha um momento vivido nos anos em que lá
trabalhou.
“Nesse tempo, o Cine Bandeirantes não tinha ar-condicionado.
Eram ventiladores de parede. Havia umas portas abertas, do lado direito, que
davam para um quintal com vista do Centro. Certa vez, um ventilador pegou fogo
e jorrava as chamas pro povo, foi um pânico. Todos saíram correndo,
arrebentaram a porta e correram pro quintal, que ficou lotado. Depois acendi a
luz com um fumaceiro danado e desliguei o ventilador. Mesmo com o incêndio,
todo mundo voltou pra terminar o filme!”, lembra.
Uma outra sensação, não visual, vem à memória de Aníbal ao
relembrar dos tempos áureos.
“As músicas, chamadas de prefixo, faziam muito sucesso.
Tinha a ‘African Beat’, que quando tocava, todo mundo corria pra dentro! Tinha
as salas de espera e o pessoal ficava ali fora, fumando, na bomboniere. Mas
quando tocava ‘African Beat’, todos entravam, só pra escutar a música até o fim
antes de iniciar o filme”.
Namoro
A engenheira civil Regiane Araújo relata que foi no Cine
Bandeirantes, durante a sessão de “O Quatrilho”, de 1995, que começou a namorar
seu atual marido.
“O momento mais marcante, sem dúvida, foi o início do namoro
e o nosso primeiro beijo, mas vivemos sem dúvida muitos momentos alegres lá com
nossos amigos da época da faculdade”.
“Além deste momento, vivemos duas situações curiosas e, de
certa forma, divertidas. Lembro quando estávamos assistindo a um filme de ação
e justamente no momento em que na tela era projetada uma cena de incêndio,
começamos a ver um pouco de fumaça dentro do cinema. Todos se olharam, mas logo
notamos que não era nada. Então não houve tumulto e até hoje não sabemos de
onde veio a fumaça de fato. Hoje em dia pensaríamos que poderia se tratar de um
filme 4D, mas isto não existia na época. Vi pela primeira vez um filme queimar
durante a exibição. Pensei no momento que a sessão seria encerrada, mas
rapidamente o filme foi substituído e a sessão prosseguiu”, conta.
Outra frequentadora assídua era Lusmarina Barbosa, de 58 anos, que subiu a rampa de acesso do Cine Bandeirantes pela primeira vez aos 8. A artesã conta que a família, moradora do Bairro do Porto e de origem humilde, nunca deixou de fazer programas culturais, como ir a teatros, cinemas e circos.
Ela lembra que, naquela época, saía a pé do Porto até o
Centro, andando em torno de 10 km só para assistir os filmes.
“A gente ia com a maior alegria ao cinema. A criançada fazia
cota pra comprar sorvete e era exatamente assim, saíamos do Porto a pé, em
turma de 10 a 15 crianças, atravessando a cidade todinha. Pra nós era comum
andar assim e era tão bom andar em grupo”, conta.
O último filme a que viu foi Titanic, de 1997. Lusmarina
protagonizou diversas cenas fora da tela que, para ela, foram inusitadas.
“Perto de mim havia dois rapazes e uma moça, que eram de
Goiás. No filme, quando o homem [Leonardo DiCaprio interpretando Jack Dawson]
morreu, o rapaz sentado ao meu lado desandou a chorar! Olha, eu não aguentei,
fiquei solidária ao choro dele (risos)”.
“Eu tinha um companheiro que era caminhoneiro. Então vivia
cansado das viagens. Um dia, inventei de levá-lo para assistir Duro de Matar 3,
um filme com muita bomba, ação e tiro. Passamos na Praça, comemos um
cachorro-quente e fomos. Chegamos lá, em pouco tempo de filme, ele dormiu na
cadeira. De repente, começaram as explosões, bombas, ônibus entrando num metrô...
Este homem levou um tremendo susto, gritou dentro da sala!”, relembra.
Ela ainda descreve detalhadamente como era o interior do
cinema que, agora, permanece apenas registrado na memória daqueles que o
visitaram e em fotografias.
“Naquela porta que você passa ali, como se fosse de correr,
tinha uma passarela, com um piso diferente. Logo nesta entrada, bem no meio,
ficava a bilheteria e você andava por ela pra chegar na portaria. Nesta
portaria ficavam as pessoas, todas bem vestidas, para receber seu bilhete. E aí
você entrava no hall do cinema, onde ficava muita gente. Depois deste hall de
entrada, existia uma cortina fechada, marron e de veludo. Neste cinema,
predominava o marrom, tanto nos móveis, cortinas, carpete... Era essa
tonalidade entre marrom e mostarda. Quando você abria esta cortina de veludo,
havia uma rampa que você subia e já dava de cara no meio do cinema",
recorda, em detalhes.
Cena final
A última sessão foi exibida em 2001, projetando “Entrando
Numa Fria”, com Robert De Niro e Ben Stiller, dirigido por Jay Roach. Mesmo com
capacidade para abrigar 800 espectadores, o público que assistiu ao fim do Cine
Bandeirantes foi pequeno.
Neste cinema, predominava o marrom, tanto nos móveis,
cortinas, carpete. Era essa tonalidade entre marrom e mostarda
Aníbal Alencastro, como muitos outros, avalia que a
motivação para a decadência foi a falta de estacionamento no Centro. A cidade
cresceu, o acesso à cultura e o poder aquisitivo aumentaram e as pessoas
começaram a frequentar os shoppings centers, onde a comodidade é bem maior.
“O cinema acabou porque, com a chegada do shopping e seus cinemas, passou a haver estacionamentos. Naquele tempo, não existia isso, as pessoas iam de ônibus, a pé. E, pelo menos nos anos 70, ninguém tinha carro, só os ‘doutores’. E o que aconteceu foi que, com os shoppings, as pessoas vão de carro, estacionam e assistem aos filmes, com conforto e segurança. Já no Centro, se fosse deixar o carro na porta do cinema, voltava com ele roubado”, explica.
Parte 2 (?)
O imóvel, que está dentro de uma área tombada pelo
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foi vendido em 2014 pelo
valor de R$ 2,5 milhões. Ainda sim, sua estrutura permanece abandonada.
O atual dono, a Conenge Construções, informou que já
apareceram interessados pelo imóvel, como por exemplo, pastores com intenção de
ali construir uma Igreja. Mas a destinação para aquele espaço visa algo de caráter
cultural. Como observou Lusmarina, questionada sobre o que ela gostaria que
fosse reconstruído ali.
“Seria muito bom se fosse algo referente à cultura, porque
um espaço deste, não que eu tenha discriminação - muito pelo contrário -, mas
se fosse por exemplo uma igreja, uma loja, sairia do foco. Porque, por exemplo,
o Cine São Luiz, lá do Porto, virou uma loja. O Cine Tropical, que era a coisa
mais linda do mundo, se tornou um banco. É algo que fugiu do seu propósito
inicial”, analisa.
Um projeto da Prefeitura de Cuiabá pretende reaproveitar o
espaço para abrigar o “Museu Digital 300 Anos”, que seria um museu tecnológico,
com a proposta de contar histórias dos 300 anos da Capital, utilizando recursos
da era digital, de maneira interativa. Mas até agora, a ideia não saiu do
papel.
Regiane Bianchi avalia que a proposta do Museu seria
interessante para o reaproveitamento do Cine Bandeirantes.
“Eu gostaria que, da mesma forma que ocorreu com o Cine
Teatro, o Cine Bandeirantes também fosse restaurado e voltasse a viver seus
dias de glória. Mas sei que hoje vivemos um tempo diferente onde as pessoas são
expostas a mais violência do que na era dourada deste cinema. Além disto, a
região central de Cuiabá fica abandonada à noite e nos fins de semana, o que
desestimula as pessoas a frequentarem. E também não tem estacionamento. Mas a
ideia de implantar um espaço cultural, como o museu digital, é uma boa
iniciativa”, comenta.
Sala vazia
Hoje em dia, a vegetação naturalmente deu um jeito de
crescer e invadir o Cine Bandeirantes.
O local onde funcionava a bilheteria agora não acumula
nenhuma fila, a não ser degraus e caibros de madeira caídos.
Um banco de cimento ainda permanece no saguão vazio. “African Beat” não toca mais e não chama as pessoas, que ali passam depressa pensando em seus compromissos.
No andar da projeção, ainda há os suportes dos projetores e
um móvel abandonado que aparentemente era onde se guardavam os rolos antigos e
a escada que Aníbal descia para depois namorar.
Por fim, a única coisa que se preservou da sala de cinema
foi o escuro.
Texto e imagens reproduzidos do site: midianews.com.br
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