sábado, 24 de julho de 2021

Ícone cultural de Cuiabá por décadas, Cine Bandeirantes vira ruína

Sala do Cine Bandeirantes

Sr. Aníbal Alencastro

Publicado originalmente no site MÍDIA NEWS, de 2 de julho de 2017

Ícone cultural de Cuiabá por décadas, Cine Bandeirantes vira ruína

Reportagem teve autorização para entrar no imóvel, que está fechado há cerca de 15 anos

Por Vitória Lopes (da redação)

Ao caminhar pela Rua Pedro Celestino, que atravessa o Centro Histórico da Capital, um pedestre atento percebe que algumas lojas ainda mantêm a antiga fachada de locais que anteriormente abrigaram casas ou estabelecimentos comerciais.

O imóvel nº19, decaído pelo tempo, só não passa despercebido porque artes de grafite estão estampadas em sua fachada, cujo interior abandonado guarda cinco décadas de história.

O letreiro caído, com a inscrição Cine Bandeirantes, ainda reacende a nostalgia naqueles que puderam vivenciar sua ascensão e glória.

Nesta semana, a reportagem conseguiu autorização dos proprietários para visitar o interior daquele que um dia foi um dos principais programas culturais do cuiabano.

A inauguração foi um sucesso! Deu muita gente. Só que tivemos um problema técnico, porque aqui em Cuiabá, na época, a luz elétrica era horrível

Além da estrutura já deteriorada pelo tempo, pouca coisa ali lembra um cinema. Já não há poltronas, já não há projetores, nem tela ou bomboniere. No lugar, há detritos, mato, madeira danificada. Até uma árvore nasceu em um dos cômodos do imóvel.

O escritor e geógrafo Aníbal Alencastro, de 73 anos (fotos), esteve na inauguração em 1963 e foi responsável por reproduzir o clássico “Candelabro Italiano” da estreia. Com 21 anos na época, Aníbal conseguiu um emprego no Bandeirantes como projetista, após passar uma temporada em São Paulo se especializando em cinema.

Ele conta que a inauguração foi sucesso de bilheteria e que, mesmo com uma falha técnica, o cinema impressionou pelo excelente e moderno sistema audiovisual.

Como já havia outros três cinemas na Capital – Cine Tropical, na Barão de Melgaço; Cine São Luiz, no Porto; e o Cine Teatro, na Avenida Getúlio Vargas –, muitos deduziram que ele poderia falir. Mas foi o que mais resistiu entre os três.

“A inauguração foi um sucesso! Deu muita gente. Só que tivemos um problema técnico, porque aqui em Cuiabá, na época, a luz elétrica era horrível. Nós tínhamos um gerador próprio. Só que ele enguiçou. Então ficou naquela história de esperar, as pessoas gritando e brincando: 'Que estreia é essa?' Mas aí arrumamos o gerador e o filme começou”.

“Foi a cidade toda: a elite e a rapaziada também. O Cine Bandeirantes era uma inovação em Cuiabá. As instalações eram modernas, tinha um som perfeito. O tratamento acústico era muito bom, o melhor da cidade, até melhor que o Cine Teatro. Você entendia todas as palavras por conta do material poroso da acústica. O equipamento também era especial, da marca Simplex modelo E7, que era avançado pra época”, detalha.

O cinema também era o contato da pequena Cuiabá da década de 60 com o resto do País. Eram exibidos, antes dos filmes, documentários ou reportagens informando a população dos acontecimentos de São Paulo e Rio de Janeiro, através do Canal 100. O futebol de Garrincha e Pelé e os desfiles de moda das grandes capitais encantavam os cuiabanos - muitos iam ao cinema somente para ver os jornais, já que a televisão só chegaria mais tarde.

Aníbal lembra também que o idealizador do cinema, Fernando Calhao, e seus sócios compravam e escolhiam os filmes a dedo em Botucatu (SP). Foram exibidas películas épicas, que, conforme o sucesso, eram repetidas a pedidos dos frequentadores.

Memórias

Mesmo atrás dos projetores - com saídas escusas para namorar sua esposa -, Aníbal compartilha um momento vivido nos anos em que lá trabalhou.

“Nesse tempo, o Cine Bandeirantes não tinha ar-condicionado. Eram ventiladores de parede. Havia umas portas abertas, do lado direito, que davam para um quintal com vista do Centro. Certa vez, um ventilador pegou fogo e jorrava as chamas pro povo, foi um pânico. Todos saíram correndo, arrebentaram a porta e correram pro quintal, que ficou lotado. Depois acendi a luz com um fumaceiro danado e desliguei o ventilador. Mesmo com o incêndio, todo mundo voltou pra terminar o filme!”, lembra.

Uma outra sensação, não visual, vem à memória de Aníbal ao relembrar dos tempos áureos.

“As músicas, chamadas de prefixo, faziam muito sucesso. Tinha a ‘African Beat’, que quando tocava, todo mundo corria pra dentro! Tinha as salas de espera e o pessoal ficava ali fora, fumando, na bomboniere. Mas quando tocava ‘African Beat’, todos entravam, só pra escutar a música até o fim antes de iniciar o filme”.

Namoro

A engenheira civil Regiane Araújo relata que foi no Cine Bandeirantes, durante a sessão de “O Quatrilho”, de 1995, que começou a namorar seu atual marido.

“O momento mais marcante, sem dúvida, foi o início do namoro e o nosso primeiro beijo, mas vivemos sem dúvida muitos momentos alegres lá com nossos amigos da época da faculdade”.

“Além deste momento, vivemos duas situações curiosas e, de certa forma, divertidas. Lembro quando estávamos assistindo a um filme de ação e justamente no momento em que na tela era projetada uma cena de incêndio, começamos a ver um pouco de fumaça dentro do cinema. Todos se olharam, mas logo notamos que não era nada. Então não houve tumulto e até hoje não sabemos de onde veio a fumaça de fato. Hoje em dia pensaríamos que poderia se tratar de um filme 4D, mas isto não existia na época. Vi pela primeira vez um filme queimar durante a exibição. Pensei no momento que a sessão seria encerrada, mas rapidamente o filme foi substituído e a sessão prosseguiu”, conta.

Outra frequentadora assídua era Lusmarina Barbosa, de 58 anos, que subiu a rampa de acesso do Cine Bandeirantes pela primeira vez aos 8. A artesã conta que a família, moradora do Bairro do Porto e de origem humilde, nunca deixou de fazer programas culturais, como ir a teatros, cinemas e circos.

Ela lembra que, naquela época, saía a pé do Porto até o Centro, andando em torno de 10 km só para assistir os filmes.

“A gente ia com a maior alegria ao cinema. A criançada fazia cota pra comprar sorvete e era exatamente assim, saíamos do Porto a pé, em turma de 10 a 15 crianças, atravessando a cidade todinha. Pra nós era comum andar assim e era tão bom andar em grupo”, conta.

O último filme a que viu foi Titanic, de 1997. Lusmarina protagonizou diversas cenas fora da tela que, para ela, foram inusitadas.

“Perto de mim havia dois rapazes e uma moça, que eram de Goiás. No filme, quando o homem [Leonardo DiCaprio interpretando Jack Dawson] morreu, o rapaz sentado ao meu lado desandou a chorar! Olha, eu não aguentei, fiquei solidária ao choro dele (risos)”.

“Eu tinha um companheiro que era caminhoneiro. Então vivia cansado das viagens. Um dia, inventei de levá-lo para assistir Duro de Matar 3, um filme com muita bomba, ação e tiro. Passamos na Praça, comemos um cachorro-quente e fomos. Chegamos lá, em pouco tempo de filme, ele dormiu na cadeira. De repente, começaram as explosões, bombas, ônibus entrando num metrô... Este homem levou um tremendo susto, gritou dentro da sala!”, relembra.

Ela ainda descreve detalhadamente como era o interior do cinema que, agora, permanece apenas registrado na memória daqueles que o visitaram e em fotografias.

“Naquela porta que você passa ali, como se fosse de correr, tinha uma passarela, com um piso diferente. Logo nesta entrada, bem no meio, ficava a bilheteria e você andava por ela pra chegar na portaria. Nesta portaria ficavam as pessoas, todas bem vestidas, para receber seu bilhete. E aí você entrava no hall do cinema, onde ficava muita gente. Depois deste hall de entrada, existia uma cortina fechada, marron e de veludo. Neste cinema, predominava o marrom, tanto nos móveis, cortinas, carpete... Era essa tonalidade entre marrom e mostarda. Quando você abria esta cortina de veludo, havia uma rampa que você subia e já dava de cara no meio do cinema", recorda, em detalhes.

Cena final

A última sessão foi exibida em 2001, projetando “Entrando Numa Fria”, com Robert De Niro e Ben Stiller, dirigido por Jay Roach. Mesmo com capacidade para abrigar 800 espectadores, o público que assistiu ao fim do Cine Bandeirantes foi pequeno.

Neste cinema, predominava o marrom, tanto nos móveis, cortinas, carpete. Era essa tonalidade entre marrom e mostarda

Aníbal Alencastro, como muitos outros, avalia que a motivação para a decadência foi a falta de estacionamento no Centro. A cidade cresceu, o acesso à cultura e o poder aquisitivo aumentaram e as pessoas começaram a frequentar os shoppings centers, onde a comodidade é bem maior.

“O cinema acabou porque, com a chegada do shopping e seus cinemas, passou a haver estacionamentos. Naquele tempo, não existia isso, as pessoas iam de ônibus, a pé. E, pelo menos nos anos 70, ninguém tinha carro, só os ‘doutores’. E o que aconteceu foi que, com os shoppings, as pessoas vão de carro, estacionam e assistem aos filmes, com conforto e segurança. Já no Centro, se fosse deixar o carro na porta do cinema, voltava com ele roubado”, explica.

Parte 2 (?)

O imóvel, que está dentro de uma área tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foi vendido em 2014 pelo valor de R$ 2,5 milhões. Ainda sim, sua estrutura permanece abandonada.

O atual dono, a Conenge Construções, informou que já apareceram interessados pelo imóvel, como por exemplo, pastores com intenção de ali construir uma Igreja. Mas a destinação para aquele espaço visa algo de caráter cultural. Como observou Lusmarina, questionada sobre o que ela gostaria que fosse reconstruído ali.

“Seria muito bom se fosse algo referente à cultura, porque um espaço deste, não que eu tenha discriminação - muito pelo contrário -, mas se fosse por exemplo uma igreja, uma loja, sairia do foco. Porque, por exemplo, o Cine São Luiz, lá do Porto, virou uma loja. O Cine Tropical, que era a coisa mais linda do mundo, se tornou um banco. É algo que fugiu do seu propósito inicial”, analisa.

Um projeto da Prefeitura de Cuiabá pretende reaproveitar o espaço para abrigar o “Museu Digital 300 Anos”, que seria um museu tecnológico, com a proposta de contar histórias dos 300 anos da Capital, utilizando recursos da era digital, de maneira interativa. Mas até agora, a ideia não saiu do papel.

Regiane Bianchi avalia que a proposta do Museu seria interessante para o reaproveitamento do Cine Bandeirantes.

“Eu gostaria que, da mesma forma que ocorreu com o Cine Teatro, o Cine Bandeirantes também fosse restaurado e voltasse a viver seus dias de glória. Mas sei que hoje vivemos um tempo diferente onde as pessoas são expostas a mais violência do que na era dourada deste cinema. Além disto, a região central de Cuiabá fica abandonada à noite e nos fins de semana, o que desestimula as pessoas a frequentarem. E também não tem estacionamento. Mas a ideia de implantar um espaço cultural, como o museu digital, é uma boa iniciativa”, comenta.

Sala vazia

Hoje em dia, a vegetação naturalmente deu um jeito de crescer e invadir o Cine Bandeirantes.

O local onde funcionava a bilheteria agora não acumula nenhuma fila, a não ser degraus e caibros de madeira caídos.

Um banco de cimento ainda permanece no saguão vazio. “African Beat” não toca mais e não chama as pessoas, que ali passam depressa pensando em seus compromissos.

No andar da projeção, ainda há os suportes dos projetores e um móvel abandonado que aparentemente era onde se guardavam os rolos antigos e a escada que Aníbal descia para depois namorar.

Por fim, a única coisa que se preservou da sala de cinema foi o escuro.

Texto e imagens reproduzidos do site: midianews.com.br

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