sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

'Cinema com cheiro', por Rafael Urban

Texto publicado originalmente no site da FOLHA DE LONDRINA, em 18 de agosto de 2008

 

Cinema com cheiro 

Por Rafael Urban (Equipe da Folha)  

 
Quando atende o telefone, Harry Luhm não fala ''Oi'', ''Alô'', ''Harry'' ou qualquer coisa que o valha. Ele diz ''dois, dois, dois, cinco'', os últimos números do seu telefone. Se você liga para ele e ouve barulho de choro de criança, o som não é de um bebê, mas de um dos dois ou três materiais em película que ele trabalha por semana em sua casa. Luhm, 78 anos, faz telecinagem: grava de película 8, super-8 e 16mm (''Com bons resultados'') e em 35mm (com um projetor tão antigo que, segundo ele, compromete) para vídeo (VHS ou DVD). A pequena sala no fundo de seu quintal está repleta dos mais diversos aparatos de cinema. Formado em Ortodontia pela UFPR, em 1954, trabalhou até o começo dos anos 1990 em um consultório em um dos cômodos da frente - espaço hoje ocupado por seu filho e sua nora. Da profissão, guarda, em sua oficina cinematográfica, um molde de uma arcada dentária em gesso que utiliza como porta buchas de Super-8. 
 
Sobre uma prateleira estão suas raridades. Em VHS, por costume e praticidade, 46 fitas formam um acervo de imagens que vão desde a neve de 1928 em Curitiba às cenas gravadas por Anníbal Requião durante o Carnaval de 1910 na cidade. De muitas delas não restam cópias em nenhum outro espaço, seja público ou privado. Desde 1981, quando deixou de ser um mero espectador e passou a ser parte da memória viva do Estado, ele se apaixonou tanto pela ideia de telecinagem que jamais aceitou ter um assistente. ''Gosto muito do que faço e sou egoísta demais para aceitar dividir isso com alguém'', explica. Aos sábados reúne para o almoço os amigos de sua geração, que apelidou de ''Turma do Cotonete'', devido aos cabelos brancos de seus membros. 
 
O início de sua paixão pelo cinema tem data marcada: 19 de dezembro de 1939, na inauguração do Cine Luz. Foi levado pelo seu pai, então dono de uma perfumaria, que, em uma estratégia de marketing, borrifou a fragrância ''Flor de maçã'' por todo cinema. Luhm guarda na memória os aromas da data, mesmo dia em que entrou pela primeira vez em uma cabine de projeção. Um mundo que, tal como o de Totó, personagem do filme ''Cinema Paradiso'' (1988), e como ele conta na entrevista a seguir, passou a ser seu. 
 
FOLHA DE LONDRINA - Você tem um baita estúdio em sua casa, hein? 
HARRY LUHM - Isto aqui é tudo improvisado, tudo coisa velha. A coisa mais nova é aquela câmera digital (de 1996), que foi uma das primeiras em MiniDV. Com ela, faço telecinagem, gravo os filmes. A película passa pelo projetor, que projeta na tela ali atrás, onde a câmera grava. Ao mesmo tempo, eu controlo no monitor (uma televisão colorida, 14 polegadas). 
 
FOLHA - De que ano é esta televisão? 
LUHM - Ela é antiga, de 1979. Eu uso ela porque tem uma característica que as de hoje já não tem. É o vertical, que me permite rolar a imagem (para cima e para baixo) e que me possibilita regular o limite do quadro. Detalhe que é pequeno, mas importante para mim, pois com isso consigo abranger todo o quadro do filme. 
 
FOLHA - E quando você começou a montar esta oficina? 
LUHM - Acontece que eu me amarro em cinema desde os nove anos de idade, quando inaugurou o Cine Luz (neste momento ele mostra um artigo de jornal que sugere que o espaço para ele foi ''o próprio Cinema Paradiso'', em uma referência ao filme italiano). 
 
FOLHA - E foi mesmo como a história do filme? 
LUHM - Foi parecido. Ele me lembra muito a minha infância. Na inauguração do Cine Luz, no dia 19 de dezembro de 1939, o diretor do cinema foi fazer o teste final e eu estava na cabine de projeção, boquiaberto, achando uma maravilha. Era o ''À meia-noite'' (1939), um drama. Até aquele dia eu queria ser maquinista de estrada de ferro. Coisa de guri. A partir daquele momento, eu passei a sonhar em ser projecionista. Mais tarde, eu pagava entrada e ia trabalhar lá em cima, na cabine de projeção, de duas a três vezes por semana. E eu não ia ver um filme, pois quem está lá assiste apenas a trechos. Era uma fixação: aquele cheirinho do celulóide novo, tudo aquilo para mim era um perfume. O Cine Luz tinha um cheiro próprio. E todo cinema de Curitiba tinha o seu cheiro. O mesmo com os bondes, andei muito de bonde na cidade. 
 
FOLHA - Realmente muito parecido com a história do filme ''Cinema Paradiso''. 
LUHM - É aquela história. Tem muita analogia com meu passado. O guri, uma hora, subia no caixote para conseguir alcançar a bobina do filme. Eu também subi em um caixote do Cine Luz para fazer isso. Eu tocava disco e o gongo que anunciava o começo da sessão (ele aponta para o lado, onde guarda um que ainda funciona, fazendo um barulho como um toque de relógio de parede). Dava várias badaladas, podia brincar à vontade com isso. Depois de encher muito o saco do pai, ele me deu um projetor de brinquedo (do qual guarda uma réplica), e com ele, aos 12 anos, eu passava cineminha em casa, com pedaços de filme. Eu estudava no Santa Maria, na Praça Santos Andrade, e morava na Riachuelo. E descobri que o lixo da Paramount era na Rua XV, perto do Correio Velho, em que eles faziam revisão dos filmes lá e jogavam muita coisa fora. Ia lá todo dia depois da aula para catar cacos de filme. Em casa, girando a alavanca do projetor de brinquedo rapidinho parecia filminho. 
 
FOLHA - Você já fez um filme? 
LUHM - Fiz um vídeo a propósito de um concurso da Fundação Cultural sobre a cidade, em 1993. Tinha 15 minutos e chamava-se ''Curityba, Curitiba'', baseado em imagens que tenho aqui, da cidade de antigamente, e peguei os mesmos ângulos e fui nos mesmos lugares filmar o novo. Depois, coloquei eles intercalados. O prêmio era para ser uma viagem a Nova York, mas, depois, cancelaram o concurso todo. Várias pessoas vieram me falar, uma delas o Valêncio Xavier, que o meu vídeo ganharia. 
 
FOLHA - E como começou a fazer telecinagem? 
LUHM - Primeiro, eu era um telespectador normal. E então achei que era hora de criar alguma coisa. Pensei na telecinagem, para conjugar filme com cinema. E comecei a brincar com os meus filmes antigos, em 1981. Depois, a telecinar para locadoras e, hoje, faço diretamente para amadores. 
 
FOLHA - E qual a importância desse trabalho? 
LUHM - Primeiro de tudo, é a conservação da obra. A média de idade dos filmes que eu gravo é de mais de 30 anos. Logo, os trabalhos mostram imagens do primeiro banho de um menino que hoje é um homem crescido. Também faço um acordo com pessoas que vão filmar casamentos e peço para eles perguntarem aos pais dos noivos se eles têm rolos de filmes em casa. Cansei de conjugar o filme do casamento do filho com o dos pais. Isso mexe com as emoções das pessoas. Tem o caso de um agente da polícia que veio aqui e me trouxe uns rolinhos em Super-8 e me pediu para sonorizar. Ele achava que o pai, falecido, aparecia em um dos filmes. Localizei um velhinho que me parecia ser o pai e coloquei uma música um pouco mais emocional. Quando o filho, um armário de grande, viu a imagem, desabou em um choro que parecia de criança. 
 
FOLHA - E que história é essa da cintilação? 
LUHM - A cintilação é o seguinte. Um filme 16 ou 35mm é 24 quadros, frames, por segundo. E a televisão é 30. Para você compatibilizar um com o outro, eu descobri um segredo. Quando o pessoal faz a telecinagem fica parecendo um ventilador em marcha lenta, piscando a imagem. Fiz um sistema que, na passagem de cada quadro, cobre a passagem da luz diversas vezes. Com isso, no fim, dá um movimento harmônico que evita a cintilação da imagem. 
 
FOLHA - É verdade que você fez as primeiras legendas para VHS no Brasil? 
LUHM - No começo dos anos 1980 todos os filmes em vídeo não tinham legendas. Ou você sabia inglês ou lia a sinopse. Um dia conversando com o Luiz Renato Ribas, da Vídeo 1, comentei com ele que seria bom colocar legendas nos filmes. E ele me disse que seria interessante, mas que era impossível. Aluguei o ''Jovem Frankenstein'' (1974) e, na máquina de escrever, fiz a lista de diálogos em um papel que totalizou 15 metros. Depois, criei uma máquina para passar os diálogos em frente à tela. Com uma câmera, gravei a televisão passando o filme com o sistema na frente, em que girava as legendas manualmente em uma bobina. 
 
FOLHA - E como vai o cinema hoje? 
LUHM - Como diz um amigo, antigamente, eles não tinham nada e faziam tudo. Hoje eles têm tudo e não fazem nada. O cinema atual é feito para adolescentes. É ''Batman'', ''Homem-Aranha'', esse troço todo. Nenhum tem uma mensagem. Não precisa ser uma lição de moral. Mas tem de haver um meio termo, você tem que sair da sala lembrando do filme. Só tem filme de bomba, explosão, tridimensional e palavrão em inglês: é só ''shit'' e ''fuck'' a torto e direito. Enquanto os efeitos especiais são aos montes, de cultura não tem nada. Filmes como ''Montanha dos Sete Abutres'' (1951) e ''Casablanca'' (1942) são obras das quais não se esquece, pois ficam na memória. Hoje, dos filmes que tem aí, não fica nada. Essa é a minha opinião. 
 
FOLHA - E vai continuar trabalhando por muito tempo? 
LUHM - Eu estou com 78 anos. O tempo dirá. Mas a disposição existe. Já me disseram que eu deveria ter um assistente. Não quero por dois motivos. Primeiro, porque o espaço é muito pequeno. Segundo, sou muito egoísta: adoro tudo o que eu faço aqui e não quero repartir com ninguém. 
 
Texto reproduzido do site: folhadelondrina.com.br 

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