segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ivan Cineminha faz 80 anos, ainda na plateia


Memorabilia de Ivan Cineminha abrange
 foto com  Jô Soares e Anthony Quinn
 Fotos: Marcelo Abreu

Artigo compartilhado do site REVISTA CONTINENTE, de 28 de Novembro de 2025

Ivan Cineminha faz 80 anos, ainda na plateia
Por Marcelo Abreu*

Cinéfilo e colecionador paraibano, com memória prodigiosa para fatos e fichas técnicas de produções cinematográficas, mantém, há décadas, memorabília dedicada ao cinema

Num pequeno apartamento no andar térreo de uma rua tranquila do centro de João Pessoa, vive um fanático por cinema. A sétima arte é parte essencial na experiência de muita gente que vivenciou o século XX, mas, para uns poucos, torna-se a própria vida. Esse parece ser o caso de Ivan Araújo Costa, conhecido como Ivan Cineminha. Conversar com ele é como mergulhar num mar de informações, memórias, fichas técnicas, estúdios, datas, salas de cinemas, curiosidades em geral.

Memórias que vêm desde o primeiro filme que lembra ter assistido, aos 7 anos de idade, O intrépido General Custer, de Raoul Walsh, com Errol Flynn e Olivia de Havilland. E que prosseguem até as fitas mais recentes, que vê ainda no cinema ou pela televisão, nos serviços de streaming.

Ivan nasceu na pequena cidade de Picuí, na fronteira entre Paraíba e Rio Grande do Norte. O pai era dono de uma sapataria e de uma fazenda. Um dia chegou alguém na cidade com um projetor de cinema para vender. Na época, a cidade não tinha diversões. O pai decidiu comprar o projetor de 16 milímetros e alugou uma sala onde cabiam umas 300 pessoas. “Sou do tempo em que você levava cadeira para assistir ao filme”, lembra Ivan. Depois que uma igreja fechou, o pai comprou os bancos e, posteriormente, adquiriu mais cadeiras em Campina Grande, que fica a cerca de 120 quilômetros. Os filmes eram alugados também na cidade vizinha.

Picuí nem tinha energia elétrica. O projetor funcionava impulsionado por um motor a gasolina. À noite, a cidade ficava no escuro, mas com o cinema funcionando às sextas, sábados e domingos. Havia uma sessão somente, às 20 horas, divulgada por um carro de som. Anunciava-se o começo com uma valsa de Johann Strauss, “Danúbio Azul”, no sistema de som. Imagine-se o deslumbramento daquelas imagens em movimento para uma população do interior do Brasil nos anos 1950, sem acesso nem à luz elétrica.

Ivan viveu em torno desse cinema, o Guarany, de 1952, aos 7 anos de idade, até 1956, quando foi morar em João Pessoa. O pai decidiu mudar-se para a capital com parte da família. O cinema ficou com um irmão mais velho e funcionou até os anos 1990. “Quando você chegar na capital vai acabar com essa mania de ver filmes”, dizia o pai, esperançoso.

Ao chegar em João Pessoa, no entanto, aos 11 anos, Ivan deparou-se com nada menos de 13 salas de cinema diferentes. “Aí a coisa enlouqueceu. Tinha dia que eu via três filmes”, conta. No centro, cinemas como Plaza, Brasil, Rex e depois o Municipal. Nos bairros, o Metrópole, Torre, Santo Antônio e Jaguaribe. O menino circulava pelas salas com desenvoltura. O que lhe distinguia dos outros era a mania de anotar em cadernos as fichas técnicas dos filmes, hábito que mantém até hoje.

Faltava sempre às aulas no Liceu Paraibano nas quartas-feiras, dia em que o Cine Brasil exibia, à tarde, uma sessão dupla: dois filmes pelo preço de um. Na chamada de presença nas aulas de Desenho e Trabalhos manuais, a chamada do nome “Ivan” era sempre respondida por algum colega: “Está no cinema”. Daí veio o apelido de “Cineminha”. Acabou sendo reprovado. Não concluiu o que hoje se chama de Ensino Médio. “Só me interessava por cinema e depois também por motos e namoradas”.

Uma visita ao pequeno apartamento em que mora sozinho na área central de João Pessoa é uma entrada num universo de recordações ligadas ao cinema: revistas, cartazes, fotos de divulgação, recortes da imprensa, cadernos de anotações. Pilhas de revistas do passado como Cinemin, Cinelândia e Filmelândia. Uma infinidade de discos de vinil, fitas cassete e CDs com trilhas sonoras. E, claro, cópias de centenas, talvez milhares de filmes em VHS e DVDs. As prateleiras circundam a sala de estar onde tem uma cama de dormir e uma TV de 65 polegadas. O material prossegue em todos os espaços, em um quarto e nos armários da cozinha. Tem também inúmeros aparelhos antigos para tocar discos e CDs, ouvir fitas cassetes, assistir vídeo e DVDs e ouvir rádio.

Ivan Cineminha não é um colecionador sistemático, organizado, apesar de ter um arquivo precioso. Nesses 73 anos de cinefilia, além de colecionar objetos e anotações, cultivou sobretudo uma memória prodigiosa que lhe faz lembrar de muitos filmes com riqueza de detalhes que envolvem direção, elenco e enredo.

Ele é uma metralhadora giratória ao exibir seu arquivo mental com nomes de atores, atrizes, diretores e estúdios. Nunca pretendeu trabalhar com cinema. Sempre quis ser espectador. Não gosta de filmes sobre religião e de filmes infantis. Pelos pôsteres nas paredes, pelos livros e anotações, ficam claras as suas paixões: Alain Delon, Charles Bronson, Jece Valadão, entre os homens (Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone estão presentes em muitas fotos também). Entre as atrizes, Demi Moore, Jodie Foster, Olivia de Havilland, Grace Kelly. Os diretores preferidos são Alfred Hitchcock, Steven Spielberg, Arthur Penn, Roman Polanski (“só os primeiros filmes”) Costa-Gavras e Anthony Mann.

GUERRA E AMOR

Ivan diz acompanhar o cinema brasileiro, mas não gosta da produção atual. Acha que o cinema, em geral, está dominado pelos super-heróis e pela temática da identidade sexual. Protocolarmente, diz gostar de cinema francês e italiano. Mas, pelas referências que cita, seu mundo é mesmo a Hollywood clássica, o cinemão norte-americano das décadas de 1940 até a década de 1990 do século passado. Filmes de ação, filmes de guerra e de amor. Não perde tempo com teorias e apreciações estéticas. Seu orgulho é ser um colecionador, um espectador, e ter uma grande memória. Sua obsessão mesmo são as fichas técnicas. Insiste em comprovar tudo o que diz com os objetos colecionados em casa.

O crítico de cinema João Batista de Brito conta um episódio curioso. Certa vez, conversando com Ivan, fez referência a um filme obscuro que pensou ter sido o único a ver em João Pessoa, numa noite chuvosa de segunda-feira, num cinema de bairro, o Bela Vista. O filme era intitulado Meu coração tem dois amores. Ivan interrompeu a conversa e passou a dar a ficha do filme, com Susan Hayward e Stephen Boyd (“que trabalhou em Ben Hur”), direção de Henry Hathaway, de 1959. “Como é que você viu esse filme? Não tinha quase ninguém no cinema”, perguntou Brito. “Isso é porque você não olhou bem. Se tivesse se virado, veria que, lá atrás, eu estava também”, respondeu Cineminha.

Além do cinema, Ivan tem paixões na música, como o cantor Elvis Presley e os Beatles. Ganhou a vida como comerciário, trabalhando na então melhor loja de discos de João Pessoa, a Eletropeças, de 1967 a 1995, o que lhe ajudou a acompanhar de perto o mundo da música, sobretudo as trilhas sonoras do cinema.

Aos três filhos do primeiro casamento, deu os nomes de Elvis, Maximillian (inspirado no ator Maximillian Schell) e Vanessa (por causa da atriz Vanessa Redgrave). O quarto filho, chama-se simplesmente Felipe (o nome foi dado pela mãe), mas este gosta de cinema e motos, como o pai.

BEATLES NO RECIFE

Quando atuava no comércio de discos, viajava com os donos da loja ao Recife para fazer compras, semanalmente, e aproveitava para ver mais filmes. Cineminha tem uma longa relação com a cidade. Décadas atrás, muitos filmes demoravam para estrear em João Pessoa. Basta lembrar que os padrões de exibição eram bem diferentes: os cinemas de rua tinham sessões das 14h até as 22h, de um único filme, para plateias quase lotadas nas cidades maiores. As cópias, pouco numerosas, viajavam depois de cidade em cidade em latas com as películas. No interior, às vezes chegavam somente anos depois. Então Cineminha não se continha. Vinha ao Recife ver os filmes dos Beatles e de Elvis, assim que estreavam. Em um de seus cadernos de anotações, por exemplo, está escrito com canetas coloridas, em letras grandes: “Art-Palácio - 17 de julho de 65, Os reis do Iê-iê-iê”. Trata-se do título em português para o primeiro filme dos Beatles, A hard day’s night.

Ainda hoje gosta de assistir tudo, logo que pode. Na pré-estreia para convidados de Elvis, filme de Baz Luhrmann, lançado em 2022, Cineminha veio ver o filme no cinema do Shopping Tacaruna acompanhado de seis imitadores de Elvis provenientes de João Pessoa. No Recife, encontraram-se com outros covers do cantor para a sessão inaugural do filme.

O cinéfilo foi tema de um folheto de cordel intitulado Uma carta a Ivan Cineminha, de autoria de Janduhi Dantas, no qual está escrito: “Como assistidor de filmes / és primeiro sem segundo / Falou-se em fã de cinema / Tu és o maior do mundo”. Também foi tema do documentário O contador de filmes, de Elinaldo Rodrigues, lançado em 2010. O filme tem uma reconstituição, com atores, das primeiras experiências no cinema, quando criança. No filme, Ivan refaz, de moto, uma viajem a Picuí para relembrar a infância.

Cineminha deu duas entrevistas importantes na televisão: uma no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1995, no SBT, e outra no Programa do Jô, em 2000, na Globo. Numa das vezes, teve a oportunidade de conversar, diante e fora das câmeras, com um dos atores de sua preferência, Anthony Quinn, que ficou impressionado com a memória do cinéfilo sobre sua própria carreira.

Sobre o melhor filme já visto, Ivan Cineminha hesita: “Muito difícil dizer. Talvez A lista de Schindler, de Steven Spielberg (1993), Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore (1990) ou Em cada coração uma saudade, de Allen Reisner (1957).

 * MARCELO ABREU, jornalista e escritor, autor de Viva o grande líder

Texto e imagens reproduzidos do site: revistacontinente com br

sábado, 29 de novembro de 2025

Quem somos? A projeção, o projetor ou o projecionista? - Ensaio

Artigo compartilhado do site O UNIVERSO OCULTO

Quem somos? A projeção, o projetor ou o projecionista? - Ensaio

Antonio Carlos Jorge

Memórias e reflexões.

Recordo com saudade de minha infância nos anos dourados (fins da década de 50 até meados dos 60), onde morava com minha família na pequena Mongaguá (litoral sul de São Paulo), na ocasião um lugarejo ligado à São Paulo pelo ramal da antiga Estrada de Ferro Sorocabana e desprovido da “modernidade” existente na época, como telefonia e TV, por exemplo.

Assim, vivíamos isolados, com o imenso oceano de um lado e de outro a alta Serra do Mar que se precipita sobre a faixa litorânea, inserindo-nos em uma atmosfera de proteção e aconchego pela exuberante natureza virgem da bela Mata Atlântica, o nosso ninho, o nosso paraíso na Terra.

Às noites nossas diversões, além das conversas e brincadeiras intermináveis entre os amigos, era o Cinema, nosso ponto de encontro obrigatório na praça central, onde nos reuníamos para nos conectar com o que havia de novo através dos filmes. Era essa a nossa única janela para o mundo.

A programação semanal do cinema incluía 4 longas. Com raras exceções, eram películas produzidas nas décadas de 40 e 50, além dos seriados dos anos 30 e Cinejornais, como os de Primo Carbonari, Canal 100 e os belos documentários de Jean Mazon, sempre nos deixando ansiosos, pois esses antecediam a atração principal anunciada pelo serviço de auto-falantes do próprio cinema.

Meu irmão José Moacir Jorge, junto com o Luiz Solha, eram os projecionistas do cinema e isso era muito importante para mim, pois garantia minha entrada franqueada ao cinema e à própria sala de projeção, lugar místico e sagrado, cujo acesso era reservado a poucos “eleitos”.

Como os filmes eram exibidos duas vezes, em dias diferentes, exceto os dos domingos que eram exclusivos, nos dias de estréia eu os assistia da platéia e no segundo dia de exibição, eu ajudava na sala de projeção, rebobinando os rolos dos filmes já processados, deixando-os prontos para serem despachados no dia seguinte. Um longa de acetato é constituído em geral de 5 a 7 rolos, então tinha muita tarefa a ser feita.

Esse era o ambiente em que vivia, rodeado de um mundo imaginário a alimentar meus devaneios infantis, com imagens, cores e sons, compondo sonhos de fantasias, a lembrar muito o poético e belo filme “Cinema Paradiso”, que conta a estória de infância narrada pelo personagem Salvatore di Vita (Totó), que assim como eu, era o ajudante do projecionista Alfredo e que posteriormente se tornaria um cineasta italiano de grande renome (a identidade, naturalmente, para por aí).

Foram sonhos de uma infância perdida mas que continuam a inspirar a minha imaginação de sempre, pois as aspirações são sempre movidas por sonhos.

Assim sempre ficou a indagação: O que é sonho, o que é realidade!

Passados mais de 50 anos, ainda me vem à mente sobre o que de fato somos nós:

O projecionista, o projetor ou a projeção (que é a película exibida na tela ou ecran)?

À primeira vista pode ser uma indagação amalucada, pois como podemos nos comparar uma pessoa àquela que está a projetar, ou a uma máquina, ou ainda a uma simples cena que não tem consistência palpável e material?

No entanto, parece-me ser pertinente esse exercício.

Vejamos:

O projetor é um mecanismo dotado de um sistema onde giram dois carretéis que acondicionam uma bobina de fita com fotogramas que se movimentam a uma velocidade onde são enquadrados contra uma luz projetada a partir de dois carvões de polaridade elétrica opostas, que não se tocam, mas que ficam a uma distância tal que entram em fusão. Essa luz de intenso fulgor é capaz de transferir as imagens estáticas capturadas pelo obturador contra lentes, mas que pela sequência com que passam no obturador se tornam dinâmicas (24 fotogramas por segundo), conduzindo a imagem em aparente movimento à tela de exibição. É uma mera ilusão, pois não percebemos os intervalos das projeções dos quadros.

Assim é o nosso corpo físico, dotado de recursos capazes de fazer com que nos projetemos neste mundo. A capacidade com que exerceremos a projeção depende do bom funcionamento do mecanismo, principalmente no conjunto luz e lentes que garantirão a clareza das imagens obtidas. A luz não pode ser tão intensa a ponto de provocar um curto circuito (quando os dois carvões positivo e negativo se encostam), levando a uma pane. Há a necessidade de estarem a uma distância tal para promover a luz, mas não tão distante, pois não haverá a projeção. Esse é o conjunto corpo físico e corpo vital que interage com o mundo das projeções.

A película por sua vez, constituída por uma sequência de imagens estáticas, ganham, pela dinâmica do movimento, aparente “vida” ao se projetar na tela, com os personagens e roteiros pré-definidos e é aí que nosso mundo se revela, dando falsas aparências de realidade. É justamente neste ambiente que nós acreditamos nos encontrar, onde nos confundimos com as imagens e as representações dos meros personagens (protagonistas ou coadjuvantes) de uma tragicomédia ou drama que transformamos nossas próprias vidas.

Porém, embora não percebamos, somos de fato o projecionista.

O projecionista é aquele que personifica o espírito que nos rege, executando o script escolhido, com a responsabilidade de que esse seja levado a um bom termo até o fim do filme da vida.

Fico a me perguntar se é mero acaso que o fictício protagonista do filme “Cinema Paradiso” que é o próprio projecionista é chamado “Salvatore Di Vita”.

Traduzindo literalmente para o português Salvatore Di Vita é o “Salvador de Vida”, que rege, vive e atua no idílico paraíso, como nós o fazemos na vida real e não nos damos conta dessa realidade.

Somente seremos Seres plenos quando, pelo autoconhecimento, fizermos a união de nossa real identidade (projecionista) com os transitórios papéis que exercemos, servindo de fonte de experiências para o enriquecimento da alma, ainda que sejam sonhos.

Parece-me que se continuamos a nos confundir com a nossa personalidade, como meros personagens com os quais nos identificamos (eu sou isso ou aquilo, eu fiz isso, eu tenho...), continuaremos em devaneios infantis sonhando falsos sonhos sonhados.

Fernando Pessoa, está a nos inspirar em Poesias Inéditas em Nada que sou me interessa:

Nada que sou me interessa.

Se existe em meu coração

Qualquer coisa que tem pressa

Terá pressa em vão.

***

Nada que sou me pertence.

Se existo em quem me conheço

Qualquer coisa que me vence

Depressa a esqueço.

***

Nada que sou eu serei.

Sonho, e só existe em meu ser,

Um sonho do que terei.

Só que o não hei-de ter.

- - - -

Que a paz esteja nos corações.

Texto reproduzido do site: ouniversoculto wixsite com

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Geraldo Pinho (1950-2021)




Artigo compartilhado do site CINEMA ESCRITO, de 9 de novembro de 2021

Geraldo Pinho (1950-2021)

Feliz daquele que conheceu o “cinemêro” mais amoroso do Recife.

Por Luiz Joaquim 

Quando ele atendia o telefone, com a sua voz de trovão, dizia alto, assim: “LUIZ JOAQUIM!”, como quem diz um “SIM”, com uma convicção de quem convenceria o mais cético. Não credito tal convicção à minha pessoa. Sei que Geraldo Pinho atendia prontamente a todos (e não apenas por telefone) com o mesmo carinho e com a mesma assertividade. Isso era ele.

A partir dessa lembrança, é um tanto perturbador ter de me habituar com a ideia de falar sobre ele no tempo passado. Antes de continuar, digo que escrevo essas palavras agora quase sem conseguir processá-las coerentemente. E, ainda que tente aqui redigir um texto jornalístico, com dados precisos e honrando a memória desse lindo ser-humano e competentíssimo profissional do cinema que nos deixou hoje, aos 70 anos de idade, após passar mal enquanto dormia, já peço licença ao leitor para colocá-las na primeira pessoa do singular, porque é do amigo Geraldo que irei falar.

No início de 2020, fiz uma última entrevista, de maneira mais formal, com Geraldo Pinho, para um projeto paralelo, e dela tive o desejo de desdobrar em algo mais específico, sobre a própria trajetória de Geraldo no cinema. Não consegui. Mas trago aqui algumas de suas memórias que ajudam a rascunhar essa paixão pelo cinema, que lhe “salvou” quando chegou ao Recife ainda criança.

Geraldo chegou na capital pernambucana do Sudeste, veio da cidade de Santos. Lá no litoral paulista, perto de onde morava, a cerca de 50 metros, havia um cinema, e sempre que saía de casa, obrigatoriamente, passava na frente da porta dessa sala. Não apenas passava. Entrava lá. Vivia dentro daquele espaço o máximo de tempo que lhe deixassem ficar.

Já no Recife, com 10, 11 anos de idade, foi aprovado na seleção da Escola Industrial Professor Agamenon Magalhães (hoje Escola Técnica Estadual Prof. Agamenon Magalhães, no bairro da Encruzilhada) e lá acompanhava as sessões de cineclube da escola, todos os sábados, por cerca de três anos.

Quando adolescente, tornou-se um frequentador assíduo das sessões do chamado Cinema de Arte, que Fernando Spencer e Celso Marconi promoveram em diversas salas da cidade. Delas, Geraldo guardava diversas recordações. Umas divertidas, outras orgulhosas.

No seu cinema preferido, o gigantes Coliseu, com seus cerca de 2.000 lugares, antigamente localizado no número 2467 da Estrada do Arraial (bairro da Tamarineira), Geraldo pôde acompanhar pela primeira vez, no final dos anos 1960, uma mostra de cinema dedicada integralmente a um país estrangeiro, o que lhe marcou bastante.

Fiel ao espaço, ia a todos os lançamentos do Coliseu. Era o seu cinema obrigatório. Certa vez, ocupou sozinho o auditório do seu templo para ver A última sessão de cinema (1971), do Peter Bogdanovich. Geraldo contou que caía um temporal inacreditável sobre o Recife naquela noite de sábado, mas mesmo assim seguiu para a Estrada do Arraial. Atravessando a rua alagada, chegou lá e perguntou ao bilheteiro: “Vai ter sessão?”, o bilheteiro olhou desconfiado, mas confirmou que sim. Geraldo pagou, entrou, e, na gélida temperatura do ar-condicionado do gigante cinema, viu sozinho o drama estrelado por Jeff Bridges e Cybill Sheperd.

De tanto ir ao Coliseu, tornou-se amigo de outros frequentadores que moravam em frente ao cinema, na Vila do Comerciários.

Já no Cine Trianon, no Centro do Recife, em 1968, não perdia as sessões no sábado às 10h. Naqueles dias e horários, precisava burlar o trabalho na Imprensa Oficial do Estado (depois Companhia Editora de Pernambuco – CEPE). O endereço era ali próximo do cinema, na rua da Concórdia. Como o serviço era pouco no sábado, Geraldo fazia tudo rapidinho e fugia pro Trianon. Certa vez, ao entrar no auditório da Av. Guararapes, deu de cara com o diretor da Imprensa Oficial. O que vale, contava Geraldo, é que o outro era também um apaixonado por cinema, e perdoava a falta de seu funcionário.

Dali, Geraldo recordava de um bang-bang exibido com os rolos fora de ordem, e com a plateia aos berros reclamando da aparição, no final, de um personagem que já havia morrido no “início” da história; e também da sessão de Encurralado (1971), de Steven Spielberg, sessão da qual, nas palavras de Geraldo, saiu “empenado”.

Do vizinho Cine Art-Palácio, o “cinemêro” Geraldo nunca esqueceu de uma mostra de cinema cubano programado em plena época da linha dura da ditadura militar.

Durante os anos 1970, assim como todos entusiastas do cinema no Recife, se aproximou da possibilidade de fazer filmes pela tecnologia do Super-8. Até que, em 1978, foi premiado no 2º Festival de Cinema Super-8. As sessões ocorreram no Instituto Interescolar Luiz Delgado, na praça 13 de Maio, de onde saiu com o título de melhor filme do júri popular e o 2º lugar do júri oficial pela sátira A batalha dos Guararapes II, codirigido com Fredi Maia e Ricardo Antunes.

Antes do filme ser projetado, a tensão era enorme. Geraldo e os amigos não sabiam se a plateia iria assimilar a ironia que o filminho propunha sobre o fiasco que foi a megaprodução A batalha dos Guararapes (1978), rodada no Recife sob direção do mineiro Paulo Thiago. Mas a sessão foi inesquecível, com o auditório inteiro vibrando com a brincadeira. No filme coassinado por Geraldo, a batalha se referia ao pesado trabalho dos garis do Recife em limpar a Av. Guararapes na quarta-feira de cinzas.

Como a justiça social sempre esteve em pauta na vida de Geraldo, por essa época ele se envolveu com o assunto de maneira mais afirmativa, e foi um dos diretores – ao lado do professor Paulo Rubem Santiago (conforme este registrou em seu Facebook) –, da então Apenope (hoje Sindicado dos Trabalhadores em Educação do Estado). Ainda conforme Paulo Rubem, Geraldo esteve à frente, ao seu lado, numa greve estadual de ensino, em 1979, em pleno governo do presidente Figueiredo.

Mas o cinema não deixava Geraldo, e ele voltou a participar de um outro cineclube, o “Leila Diniz”, em Olinda. A homenagem à atriz brasileiro se deu porque questões feministas já estavam na pauta do grupo que criou o cineclube. E, na ocasião, Geraldo foi tomando conhecimento sobre os meandros de uma programação cinematográfica. Ali, nos primeiros três anos da década de 1980 – tempo de existência do cineclube -, entendeu os princípios que o norteou como grande programador que viria a se tornar.

Ao final do “Leila Diniz”, a mesma turma do cineclube criou a Spia Vídeo, que, conforme conta Geraldo, “durante dez anos, foi a maior produtora daqui do Recife”. Geraldo também se ocupava em dar aula de fotografia, na Escola Técnica Estadual, a mesma na qual estudou. Nos anos 1980, sua atuação fazendo cinema passava principalmente pela fotografia e um dos destaques daquela década foi o média-metragem de 59 minutos, em 16mm, Acredito num mundo melhor (1981-82), de Jussara Queiros, no qual coassinou a assistência de direção de fotografia.

O documentário discorria sobre as várias formas de organização comunitária e a respeito das condições de vida dos camponeses no Brasil, além da participação da Igreja na luta pela terra no Nordeste. O filme trazia depoimentos de gente como Dom Helder Câmara e foi vencedor de melhor fotografia no festival de curta e média-metragem de Niterói (1983), do prêmio de melhor roteiro no RioCine Festival (1983), além de ter recebido a Margarida de Prata da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o título de melhor filme no Festival de Cinema de Mannheim-Heidelberg (1986), na Alemanha.

No ano de 1992, uma curiosidade. Geraldo foi visto muitas vezes na televisão dos pernambucanos, numa certa publicidade produzida pela agência Itaity para as Casas José Araújo. A situação mostrava um bando de marmanjos no carnaval, vestidos de mulher, fazendo uma, digamos, “serenata” para a musa Davanira. Geraldo aparece empunhando um pandeiro e com um biquini azul. Impagável.

No ano seguinte, ele era convidado a assumir, em abril de 1993, a programação do Cineteatro do Parque e ali faria história. Abriu com Rádio Auriverde, de Sylvio Back, e, depois, fez do espaço notícia nacional particularmente por aliar uma tripla combinação difícil: atrair um bom público popular para acompanhar uma programação inteligente ao módico preço de R$ 1,00.

Lá no início da retomada do cinema brasileiro, por exemplo, Carla Camuratti fez questão de exibir seu já histórico Carlota Joaquina: A Princesa do Brazil (1994) no cinema da rua do Hospício.

Após nove anos no Parque, tendo também assumido o Cineteatro Apolo entre 2000 e 2002, Geraldo passou a gerenciar o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe), ao qual agregou a função de programador do Cinema São Luiz, na segunda quinzena de março de 2011, a convite da Secretaria de Cultura do Estado.

Nessa última década, o “cinemêro” Geraldo Pinho fez o que mais gostava – e fazia bem, como poucos – que era pensar a programação de uma sala de cinema (e não, qualquer cinema) a longo prazo. Sem Geraldo, o Cinema São Luiz não teria o respeito e o reconhecimento conquistados após o Governo do Estado de Pernambuco comprá-lo do Grupo Severiano Ribeiro em 2008. Geraldo trabalhou pesado nos bastidores, mas também com amor pelo simples fato de estar numa sala cinema, que vem a ser, para quem ainda não sabe, a essência de um “cinemêro”.

Geraldo, meu amigo, vá em paz e obrigado, obrigado, obrigado.

Texto reproduzido do site: www cinemaescrito com

Lembro sempre daquele setembro de 1914

Legenda da foto: Severino Alexandre, pioneiro do cinema, Patrono da Academia Paraibana de Cinema.

Artigo compartilhado do blog COISAS DE CINEMA, de 21 de September de 2024

Lembro sempre daquele setembro de 1914
by Alex Santos

Dia 17 de setembro do ano de 1914, “amarcord” (eu me lembro) muito bem. Data em que nascia um dos pioneiros do Cinema Paraibano, que agora estaria completando 110 anos. 

Decerto, existem memórias que são legitimamente indeléveis. Por isso, mais do que qualquer outro dia desta semana, despertei logo cedo com uma saudosa lembrança daqueles tempos. E como se isso não bastasse, recordei até de minha lúdica juventude, quando brincava de super-herói com amigos da mesma idade, imitando os filmes que víamos nos cinemas do meu pai.

“Seu” Severino do Cinema, como era bem conhecido pela população de Santa Rita, cidade onde nasci, sempre foi uma pessoa altamente querida. Influenciou gerações com os filmes e seriados que exibiu em seus cinemas – Santa Cruz, São João e Cinerama, todos construídos por ele próprio (dublê de arquiteto-construtor e exibidor cinematográfico), tanto na cidade em que viveu, como no municipal distrito de Várzea Nova. Salas de projeção, que sempre nos foram “palácios de sonhos”.

Foram com as exibições, ainda na época do celuloide, que o meu pai tão bem soube distribuir as quimeras à toda uma geração, durante mais trinta anos. Geração essa da qual faço parte, orgulhosamente – época dos anos 50/60/70 –, tendo o privilégio de adquirir conhecimentos, que me fizeram uma pessoa consciente, política e culturalmente. E reportando-me àqueles tempos, percebo que a saga vivida pelo meu pai não foi em vão. Legado por mim e família preservado, que guardamos afetuosamente como uma mostra viva de sua existência. E como bem afirma o meu filho Alexandre, seu avô “Ainda hoje é nossa referência de valores humanos e de retidão. Um homem que na grandeza de sua simplicidade construiu, com as próprias mãos, os alicerces de toda uma família.”

Por tudo isso, neste final de semana, saudosas lembranças fizeram-me buscar, célere, o meu teclado. São “recuerdos” que se revestem de grande significado para mim, e como se toda a verve desse mundo fosse incapaz de traduzir a tamanha admiração que sempre mantive por aquele que, através do Cinema de toda sua existência, soube repassar para mim o muito do que lhe foi essa arte, além de um mero entretenimento: uma verdadeira lição de vida, da qual possamos extrair o que de melhor ela possa oferecer.

Buscarei honrar esse seu legado, meu Pai!

À guisa de informação: “Amarcord” é um vocábulo que nos leva a uma memória nostálgica do passado. Igualmente, representa o título de um dos filmes mais autobiográficos do diretor italiano Federico Fellini.

Texto e imagem reproduzidos do blog: alexsantos com br/blog

domingo, 2 de novembro de 2025

Pelo amor a quem somos: o exemplo de Cosme Alves Neto



Artigo compartilhado do site [medium com], de 13 de fevereiro de 2025

Pelo amor a quem somos: o exemplo de Cosme Alves Neto

Por Gabriel Brito

De vez em quando, ao visitar a casa dos meus pais, tenho a curiosidade de abrir caixas antigas com as memórias da minha família. As fotos impressas e fitas magnéticas atravessam algumas décadas e vão até meados dos anos 2000, o meio da minha infância, quando essas lembranças migraram para o meio digital. Agachado diante daquelas caixas empoeiradas eu viajo no tempo passando páginas de álbuns que registram a juventude dos meus pais ou o nascimento dos meus irmãos. Algumas páginas tem legendas escritas com capricho pela minha mãe enquanto não tomávamos seu tempo.

Hoje, com quase 30 anos, me pergunto como seria a nossa família sem aquelas memórias. Concluo que a consciência da minha própria origem e papel no mundo seriam tão diferentes a ponto de afetar a minha própria noção do espaço que ocupo dentro da família, afetando a minha noção dos rumos que posso tomar na minha vida e carreira. Talvez este seja um exercício interessante a se fazer sempre que eu me sentir desmotivado e sem rumo.

Essa noção de memória coletiva é um conceito que pode se estender para além do meu núcleo familiar, compreendendo um contexto muito mais amplo, como o país em que vivemos: a nossa produção cultural constitui a nossa identidade como povo, e preservá-la nos ajuda a contar a nossa própria história, revelando quem somos, nos guiando, mesmo que involuntariamente, para seguir adiante.

É claro que a metáfora familiar tem seus limites: um país precisa de mais do que boa vontade e altruísmo para construir e preservar sua memória, mas principalmente de políticas públicas sérias e consistentes, o que infelizmente não é o caso no Brasil, que se acostumou a depender das ações de pessoas que, vistas com a distância do tempo, agiram quase que como super-heróis diante de tantas dificuldades. Ao me voltar para o cinema, minha área de formação, encontro uma destas pessoas: Cosme Alves Neto.

Poucos foram tão influentes na preservação e na memória do cinema brasileiro quanto Cosme, que começou sua trajetória na década de 60 em diferentes frentes, como a organização de cineclubes e a atuação na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Movido sempre pelo seu amor ao cinema e pelo seu genuíno interesse em garantir acesso ao audiovisual brasileiro, Cosme enfrentou até mesmo a Ditadura Militar no Brasil, permitindo que a enorme família formada pelo povo brasileiro tivesse acesso às suas próprias memórias. A partir desta trajetória, reflito neste artigo o contexto da preservação fílmica no Brasil.

Os Cineclubes e a Nova História

A jornada de Cosme Alves Neto começa ao final da década de 50, ao fundar o Cine Clube da Glória. Motivado pela preocupação com o destino dos filmes antigos que assistia na infância, também participa do Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC). No entanto, é importante considerar que a atuação de Cosme não é guiada somente por suas convicções pessoais, mas por um contexto histórico rico, marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Como explica Hernani Heffner em uma de suas análises sobre preservação fílmica, ascendeu neste período a chamada "Nova História":

“(…) que propunha estudos menos oficiais e ligados às classes dominantes, valorizando assim atividades distantes da política, do comércio e da guerra, como por exemplo o lazer e seu papel junto às classes trabalhadoras.”

Em outras palavras, ali ganhava força a noção de que a preservação de o que se produzia no cinema servia como documento histórico, permitindo a criação de processos e instituições que pudessem atuar de forma profissional e responsável para proteger as películas da ação humana, como a reciclagem para de prata, e da ação do tempo, causada pela natureza das próprias matérias primas das películas. O pesquisador Luiz Nazário em seu texto “O Buraco da Memória” também destaca que a Nova História colocou a “memória como instância formadora da identidade de indivíduos e grupos” permitindo a “criação, entre 1945 e 1955, das cinematecas do Leste Europeu, da Ásia, da América Latina”.

Desafios e Resistência: A Luta Contra a Censura e o Eurocentrismo

O conservador Hernani Heffner também lembra que, no Brasil, as cinematecas surgiram como iniciativas privadas, quase sempre ligadas a cineclubes, associações de críticos e entidades cinéfilas. E é dentro de todo esse cenário histórico e cultural que se insere Cosme Alves Neto, como é retratado no documentário Tudo por Amor ao Cinema (2015). O filme explora sua trajetória e revela como sua atuação refletiu o contexto cultural, social e político do Brasil na segunda metade do século XX.

A incursão mais importante da biografia de Cosme Alves Neto é certamente a Cinemateca do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, espaço concebido com a intenção de preservar o cinema e exibi-lo ao público. Cosme contribuiu com seu tempo, mas também com sua vasta cultura cinematográfica, fazendo desta uma missão bem-sucedida: logo o espaço se tornou um ponto de encontro para cinéfilos e cineastas. Ao enxergar valor histórico e cultural em qualquer obra, incluindo aquelas desprezadas por suas qualidades ditas “inferiores”, evitou o descarte de diversos títulos, tornando-os documentos audiovisuais da História.

Não é exagero afirmar que Cosme Alves Neto dedicou sua vida ao cinema brasileiro através da Cinemateca do MAM. Ele lutou para preservar as cópias e para permitir que o espaço continuasse sendo de livre circulação de ideias, enfrentando até mesmo a ditadura: o governo militar estava à caça de ideias “subversivas”. Ele chegou a esconder filmes, operar em segredo e esconder negativos de filmes censurados como “Cabra Marcado para Morrer” (1984), chegando a ser preso e torturado.

Cosme Alves Neto assumiu a Cinemateca do MAM em um dos períodos mais sombrios da história do Brasil e os cineclubes (aliás, todo o fazer cinematográfico) se tornaram espaços de debate político. O momento, marcado pelo auge do AI-5, não representou apenas uma caça ao considerado subversivo ou imoral, mas o desapreço ao livre exercício da cultura. Em sala de aula, a pesquisadora Milene Gusmão, minha professora, lembrou que existiram exceções: membros do governo chegaram a liberar algumas das obras por reconhecer a importância político-cultural delas, revelando um contexto histórico cujos critérios de censura e tinham nuances do que um simples sim ou não com base nas leis vigentes.

O Panorama Brasileiro e os Obstáculos Estruturais

A realidade e as dificuldades enfrentadas por Cosme na Cinemateca do MAM não eram exclusivas daquela instituição, daquele governo e daquele período: o panorama da preservação cinematográfica no Brasil foi e ainda é preocupante. Ao contrário de países como a antiga União Soviética, cuja cinemateca, a Gosmofilmfond, era financiada pelo estado, no Brasil o apoio estatal sempre foi inconsistente, tornando as ações de preservação incertas, carentes de recursos e legislação específica. Tudo isso levou a incêndios devastadores, condições de armazenamento precários e a falta de profissionais capacitados no mercado. Todos estes obstáculos tornam ainda mais impressionantes as ações de Cosme Alves Neto em relação ao seu trabalho no resgate e preservação do cinema.

A atuação de Cosme Alves Neto inspirou e influenciou na formação de novas gerações de cineastas e cinéfilos. O documentário dá como exemplo a participação na Jornada de Cinema da Bahia, onde atuou mobilizando jovens cineastas, o que prova o seu interesse e compromisso com o desenvolvimento do cinema brasileiro e com a popularização do acesso aos acervos. Aliás, como mostra Nazário, esta popularização poderia ser alcançada de forma efetiva se a Cinemateca Brasileira tivesse adotado o sistema cooperativista da Cinemateca Uruguaia, mais aberto aos cinéfilos.

Cosme Alves Neto também teve um papel crucial na exportação do cinema brasileiro. O documentário Tudo por Amor ao Cinema (2015) destaca, por exemplo, a exibição clandestina de Blá, Blá, Blá, de Andrea Tonacci, no Festival de Locarno, na Suíça. O filme, proibido pela ditadura militar, foi resgatado por Cosme e levado ilegalmente para a Europa em um período em que o impacto do cinema brasileiro ainda era limitado pelo eurocentrismo dominante.

Hernani Heffner explica que os critérios de preservação cinematográfica eram pautados por uma suposta “evolução estética”, fortemente influenciada pelas produções do chamado Primeiro Mundo, que sempre esteve na vanguarda da tecnologia, do comércio e da ideologia cinematográfica. Já Nazário aponta outro viés dessa influência eurocêntrica: o próprio modelo da Cinemateca Brasileira seguiu padrões elitistas importados dos mercados norte-americano e europeu, determinando quais obras deveriam ou não ser preservadas.

Na prática, isso impacta diretamente a memória do cinema brasileiro. Mesmo com esforços como os de Cosme, que recuperou filmes esquecidos — como Rio de Janeiro em 1923, vindo da Finlândia — , esses resgates ainda são exceções. O histórico descaso com a preservação cinematográfica nos países do chamado “Terceiro Mundo” privou gerações do acesso à sua própria história nas telas.

A atuação de Cosme vai além de suas motivações políticas, como mostra o documentário, e só pode ser explicado pelo seu genuíno amor ao cinema. No entanto, ele é apenas um exemplo notável de uma geração de defensores da preservação do cinema brasileiro e da memória audiovisual do Brasil. Luiz Nazário dá como exemplo o colecionador Antônio Leão, que é consciente de que a classe dos colecionadores preserva mais que o Estado, o que me faz refletir sobre como as demandas citadas por Cosme não se extinguiram, apenas acompanharam as transformações tecnológicas: a comunicação é mais fácil, o acesso do público também, mas arquivos em película seguem em condições precárias aguardando por políticas públicas constantes e compromissadas com a cultura brasileira, o que permitiria não só melhor condições de arquivamento, mas que o acesso aos filmes seja ampliado.

É preciso ser justo: o governo Lula, hoje e no passado, tem como um dos pilares o apoio à cultura, o que tornou a realidade da preservação fílmica no Brasil um pouco mais esperançosa neste século, através de editais que nos permitiram ter acesso a, por exemplo, às versões restauradas das obras de Glauber Rocha. Outro exemplo, o "Programa de Restauro Cinemateca Brasileira — Petrobras", lançado em 2007, chegou a financiar os próprios colecionadores, reconhecendo a importância destas pessoas. No entanto, a constância segue sendo um obstáculo a ser superado. O incêndio de 2021 na Cinemateca Brasileira, que destruiu parte do acervo histórico do cinema nacional, é um triste lembrete dessa inconstância, como reportou o G1 na ocasião.

Cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", parte do acervo da Cinemateca Brasileia que foi queimado durante o incêncio em 2021. O material já estava danificado por um alagamento em 2020. (foto: Foto: Reprodução / Relatório do MPF via G1)

O Legado de Cosme Alves Neto e o Futuro da Memória Cinematográfica Brasileira

Apesar da importância do trabalho de Cosme Alves Neto, o audiovisual brasileiro não pode depender apenas de esforços individuais. Mesmo que seu legado continue vivo, o acesso pleno e contínuo à memória cinematográfica só será garantido com ações governamentais sistemáticas.

Em junho de 2024 o Governo Federal anunciou um investimento de R$ 1,6 bilhão no audiovisual, incluindo o fomento à produção e um acordo com o Ministério Público Federal para garantir as atividades da Cinemateca Brasileira. Embora represente um avanço em relação à gestão anterior, essa medida ainda precisa de tempo para mostrar seus impactos e não aborda questões fundamentais, como a descentralização. Como destaca Luiz Nazário, descentralizar a preservação não só melhora as condições de conservação, mas também valoriza os cinemas regionais e amplia o acesso às obras.

Diferente das películas de Limite (1931), feitas de nitrato, as memórias da minha família não correm risco de autocombustão. Mesmo assim o tempo é implacável, e temo que as gravações em VHS-C feitas pelo meu pai se deteriorem. Ainda assim, poder acessá-las é um privilégio. E assim deve ser com a memória de um país: disponível para qualquer um que queira revivê-la quando quiser — seja como documento histórico ou como obra de entretenimento.

Somente com cuidado, respeito e consistência garantiremos que as novas gerações tenham acesso às suas próprias memórias. Cosme Alves Neto dedicou sua vida a essa missão porque entendia que só é possível amar algo conhecendo-o. E com o cinema não é diferente. Afinal, como amar alguém sem conhecê-la? Como amar um país sem conhecê-lo?

REFERÊNCIAS

HEFFNER, Hernani. “Preservação”. Contracampo, n. 34, 2001. Disponível em: Preservação Audiovisual. Acesso em: 13 out. 2024.

NAZÁRIO, Luiz. “O Buraco da Memória”. In: Diálogo entre Linguagens. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas; MELENDI, Maria Angélica (orgs.). Belo Horizonte: Editora C/ Arte; UFMG, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, 2009. p. 175–188.

MICHILES, Aurélio (dir.). Tudo por Amor ao Cinema (Filme, 90 min). Produção de André Montenegro e Rui Pires. Brasil: Aurora Filmes, Olhar Imaginário, Imagem Selvagem, 2015. Disponível em: YouTube. Acesso em: 13 out. 2024.

Fogo na Cinemateca: galpão tinha acervo de Glauber Rocha, equipamentos antigos e documentos sobre a história do cinema no Brasil. G1, São Paulo, 30 jul. 2021. Disponível em: G1. Acesso em: 13 out. 2024.

BRASIL. Ministério da Cultura. “No Dia do Cinema Brasileiro, MinC destaca ações para fortalecimento do setor audiovisual”. Agência Gov, Brasília, 19 jun. 2024. Disponível em: Agência Gov. Acesso em: 13 out. 2024.

Justiça Federal homologa acordo para preservação da Cinemateca. Exame, São Paulo, 21 jun. 2024. Disponível em: Exame. Acesso em: 13 out. 2024.

Cosme: por amor ao cinema. Taquiprati, 11 jan. 2021. Disponível em: Taquiprati. Acesso em: 13 fev. 2025.

Texto e imagem reproduzidos do site: medium com

domingo, 5 de outubro de 2025

Película de cinema versus imagem digital dos filmes

Artigo compartilhado do site WEBINSIDER, de 7 de agosto de 2024

Película de cinema versus imagem digital dos filmes
Por Paulo Roberto Elias

A película de cinema e a imagem digital se complementam, com o auxílio luxuoso de softwares de limpeza digital de negativos.

A película de cinema e a imagem digital se complementam, com o auxílio luxuoso de softwares de limpeza digital de negativos.

 Desde a década de 1990 houve um tremendo esforço na conversão da película de cinema, incluindo negativos, para a imagem digital, com o objetivo, naquela época, de lançar videodiscos (Laserdisc, por exemplo) com uma qualidade superior de reprodução.

Os avanços tem sido impressionantes. Já de algum tempo foi possível se lançar mão de um negativo de câmera deteriorado e com ele transferir a imagem para o vídeo de altíssima resolução, algo impensável alguns anos atrás.

Além disso, o tratamento por softwares de limpeza digital competentes deu chance técnica aos restauradores a corrigir falhas na película, antes complicadas de resolver.

Simultaneamente, as telas de televisão e projetores de vídeo também avançaram significativamente. Com os aprimoramentos no tratamento da imagem do front-end (dispositivo de reprodução) usado, e com os recursos de inteligência artificial aplicados nesta reprodução, é possível hoje assistir um filme em vídeo satisfatoriamente!

Eu confesso que sou fã incondicional da película de cinema e lamentei muito, quando anos atrás, o Orion Jardim de Faria (Incol 70/35) me avisou que os projetores de película seriam retirados dos cinemas e substituídos por modelos alimentados por disco rígido contendo o filme a ser exibido, em formato DCP.

Para mim, a película não tem substituto dentro das salas de cinema, mas dentro de casa ela é dispensável, dependendo, é claro, de quem não tem condições de projetar película, como antigamente, hábito que ficou restrito apenas aos colecionadores.

Eu aposto que quem assistiu filmes em cinemas na maior parte de suas vidas, vai sempre racionalizar a projeção em termos de película. Anos atrás, eu estava em uma sala multiplex do shopping local, e a tela era pequena. Na minha frente, sentaram uns garotos, e quando a projeção começou um deles disse aos outros: “parece a televisão lá de casa”. E ele estava certo!

Se este menino tivesse alcançado os antigos palácios de cinema, certamente iria se ressentir mais ainda. Porque, para ver uma imagem de um filme em dimensões reduzidas, nem é preciso sair de casa!

Méritos das películas

Notem que o objetivo das restaurações foi sempre o de recuperar películas de filmes próximas da perda completa, e obviamente preservar o que for possível. As restaurações são muito caras e exigem técnicos especializados neste tipo de trabalho. O que justifica plenamente que toda e qualquer restauração possa, e deva, ser aproveitada para a transcrição para outras mídias. Neste momento, é o Blu-Ray 4K que melhor cumpre esta função.

O Blu-Ray 4K consegue reunir o áudio de alta resolução e em 3D (Atmos e DTS:X), que já estava presente no Blu-Ray 2K, com uma imagem de alta qualidade, tratada com HDR. O lançamento dos discos 4K valoriza ainda mais os esforços de restauração.

A projeção com película, por seu turno, dá ao frequentador de cinema tradicional a sensação de estar assistindo um filme. Existe uma explicação técnica para isso: os projetores de cinema exibem o filme em uma cadência real de 24 quadros por segundo, e isso não pode ser alterado. Já na TV ou no projetor, a imagem pode facilmente ser convertida para 60 quadros por segundo, tirando, muitas vezes, a sensação de percepção de se estar assistindo um filme de cinema.

Os cinemas podiam usar a projeção em películas para construir o tamanho de telas que quisessem, e para resolver o brilho da projeção os projetores eram montados com lanternas (fontes de luz) com amperagem alta. Os antigos cinemas Metro, por exemplo, usavam lanternas com 120 ampères, mostrando uma imagem na tela mais clara do que os outros cinemas. Os projetores de película 70 mm obrigatoriamente usaram lanternas com alta amperagem, por causa das dimensões do fotograma. Com a mudança para lanternas com lâmpadas Xenon, alguns cinemas exibiam uma imagem escura, problema este que foi corrigido depois.

Méritos da imagem digital

Em contrapartida, a reprodução digital tem os seus méritos nas telas atuais, que trabalham com a estrutura física montada por pixels, e não mais por pontos. Cada pixel pode ser controlado, de maneira a ser exibida uma imagem de alta resolução, em qualquer tamanho de tela. E quanto maior for o tamanho da tela, maior será a quantidade de detalhes que podem ser percebidos. O tratamento com HDR, privilégio da imagem digital, aumenta mais ainda o mapeamento de cores, o brilho da imagem, e os detalhes das zonas de penumbra, antes imperceptíveis.

No documentário sobre a restauração física e digital de Tubarão (“Jaws”), Steven Spielberg comenta que uma tela de televisão de alta resolução é capaz de mostrar uma imagem superior àquela projetada na época do lançamento daquele filme.

Se ele ousou fazer tal afirmação é porque ele sabe que a imagem digital tratada corretamente não tem oscilação de movimentos e nem incorreções de cor. Ambos os problemas podem agora serem corrigidos digitalmente!

Existe pendente uma limitação na imagem digital, que é a da resolução nativa da imagem transcrita. Um fotograma de 70 mm exigiria, em tese, um telecine com 12K de resolução. Muitos filmes transcritos com este tipo de negativo vão até 8K, mas são reduzidos para 2K ou 4K, para mídias digitais.

Esta limitação não é, na prática, percebida, porque o tamanho das telas de TV não é grande o suficiente para que a discriminação de resolução seja percebida. Assim, um filme em vídeo com 4K pode ser visto confortavelmente em telas de mais de 80 polegadas. Com os recursos atuais de upscaling, o mesmo pode ser dito, com imagens a partir de 2k de resolução.

A preservação digital e em película

Os técnicos de restauração afirmam com segurança que um novo negativo, derivado do processo de restauração, pode durar mais de 10 anos. Mesmo assim, uma cópia digital do original é sempre feita e arquivada.

Em alguns casos, como foi na restauração do filme de Alfred Hitchcock “Vertigo” (Um Corpo Que Cai), rodado em VistaVision, foi feita uma cópia em 70 mm também. A telecinagem pós restauração revelou uma qualidade de imagem surpreendente, como seria de se esperar, tanto em 2K quanto em 4K.

São nessas circunstâncias que as mídias analógica e digital encontram as suas reais aplicações. Entretanto, eu entendo que não se pode descartar o valor histórico e técnico alcançado pelo cinema do passado. O processo de vídeo Smilebox, por exemplo, simula uma tela curva, mas quem assistiu os filmes em Cinerama nos cinemas vai perceber que a diferença está lá para quem quiser ver!

O ideal seria que os cinemas preservassem os dois formatos, analógico e digital. Alguns cinemas no exterior já fazem isso, inclusive em salas com IMAX. Infelizmente, por aqui eu ainda não vi nenhum exibidor se aventurando novamente no aluguel de películas para projeção. 

Texto e imagem reproduzidos do site: webinsider com br

terça-feira, 23 de setembro de 2025

O projecionista, colecionador e cinéfilo, Benjamim Ribeiro Sobrinho

Texto publicado originalmente no site do JORNAL O NORTE, de 11 de janeiro de 2007 

O projecionista, colecionador e cinéfilo, Benjamim Ribeiro Sobrinho expõe seu acervo cinematográfico reunido, peça a peça, desde a década de 1940

Com curadoria de Fábio Borges, a exposição acontece dentro da programação do I Festival de Cinema de Montes Claros, e segue até o início de fevereiro, na galeria Godofredo Guedes, no Centro Cultural Hermes de Paula. As visitas são gratuitas.

Por Jerúsia Arruda (Repórter)

Ele nasceu em 1933 em berço simples e, ainda na tenra infância, se viu sozinho no mundo. Para sobreviver, vivia perambulando pelas ruas e fazia pequenos serviços em troca do pão de cada dia. Para dormir, José Paculdino o Ferreira, o Juquinha, lhe arranjou um quartinho nos fundos do antigo Cine São Luis, na Rua Simeão Ribeiro, do qual era proprietário. Isso no Final da década de 1930. Assim cresceu Benjamim Ribeiro Sobrinho, um menino pequerrucho e branquelo que, graças às agruras da vida, foi tomado por uma paixão que, como ele mesmo diz, deu norte a sua vida: a paixão pelo cinema.

Sua história se confunde com a história do cinema de Montes Claros, pois acompanhou de perto a ascensão e queda de cada um deles, do Cine Renascença (1921-1938) ao Cine Fátima (1960-1995). A história de um menino que dormia nos fundos do cinema e que, para assistir aos filmes, ajudava na limpeza das salas.

- Todos os dias ia a, pelo menos, uma sessão. Chegava a ver 10-20 vezes o mesmo filme e cada vez que via, descobria um novo detalhe, uma nova mensagem – relembra Seu Benjamim, que diz ter visto ao longo desses anos mais de 15 mil filmes.

Já adolescente, por volta de 12-13 anos de idade, arranjou um emprego em uma loja frente ao Cine São Luis e ficava atento a tudo que acontecia do outro lado da rua.

- Levantava bem cedo e ajudava na limpeza, ante de ir para o trabalho. À noite ia ver o filme que nem sempre era próprio para minha idade. Através do cinema conheci coisas boas e más que ajudaram a moldar minha personalidade. Com o tempo passei a me interessar pela parte técnica, queria saber como funcionavam as máquinas e, sempre que podia, ia para a sala de projeção – conta.

Para matar a curiosidade, Seu Benjamim conta que pegou uns endereços nos cartazes dos filmes e enviou cartas pedindo informações sobre equipamentos, projetores, novas tecnologias e logo começou a receber prospectos de grandes produtoras como Fox, Colúmbia, Universal, entre outras.

- Era tudo em inglês, mas, de tanto assistir aos filmes, comecei a aprender a língua e decifrar os prospectos. Foi assim que comecei a entender como as máquinas funcionavam e a dar palpites no trabalho do projecionista, falar das novidades lançadas no mundo e onde encontrá-las no Brasil. Acabei me tornando projecionista também e trabalhei em todos os cinemas criados em Montes Claros a partir da década de 1950.

Durante esse período, Seu Benjamim, cinéfilo de carteirinha, guardou prospectos, cartazes, banners e mais de 1000 sinopses de filmes, fotos, ingressos além de diversos equipamentos que usou em seu trabalho, entre eles, um projetor de 35mm, de 1960, a última unidade a ser produzida no Brasil – numa fábrica em Belo Horizonte/MG -  e que usou no Cine Fátima até seu fechamento.

Todo esse acervo foi reunido com a curadoria de Fábio Borges, de Belo Horizonte, e fica exposto durante o I Festival de Cinema de Montes Claros e segue até o início de fevereiro.

- Estamos esperando um público de cerca de 5.000 pessoas durante o Festival. O acervo é muito interessante e conta um pouco da história da cidade na época - explica Fábio.

Para facilitar a compreensão dos visitantes um grupo de monitores acompanha as visitas, explicando como eram utilizados os equipamentos, falando sobre os filmes exibidos na época, tomando o material exposto como referência.

O estudante de Publicidade e Propaganda, Moisés de Oliveira Júnior é um dos monitores da exposição e se diz entusiasmado com a experiência.

- Cinema é uma paixão, eu diria, unânime, e lidar com sua história tão de perto me deixa eufórico. A exposição nos aproxima da história de Montes Claros e, pelos cartazes e fotos, dá para entender como as pessoas se divertiam na época e como o cinema era presente na agenda de todos. Tenho certeza de que essa experiência vai acrescentar muito, não só para meu currículo, mas, principalmente, como cidadão, como pessoa, no reconhecimento da minha formação, das minhas origens – comemora Júnior.

O professor e jornalista Elpídio Rocha, que também participa da coordenação do Festival, diz que a presença do cinéfilo sempre foi uma constante na história do cinema.

- Muitos diretores consagrados contam que roubaram cartazes de filmes na infância e os guardam como um tesouro. A arte sempre desperta paixões e, dependendo da qualidade do material que coleciona, o cinéfilo pode se tornar uma referência histórica. Esse é o caso de Seu Benjamim, cujo acervo que colecionou ao longo dos anos faz um resgate da história não só dos cinemas de Montes Claros, mas de como vivia a geração no período em que estavam em plena atividade. E esse acervo agora está servindo para recontar essa para uma nova geração – explica o jornalista.

Seu Benjamim diz que os filmes mais badalados de que pode se lembrar foram os filmes de faroeste, a primeira versão de King Kong, ...E o vento levou, Romeu e Julieta, Em cada coração um pecado e Por quem os sinos dobram.

- Apesar do sucesso dos filmes de Hollywood, os filmes nacionais eram os que mais mobilizavam a comunidade. Os filmes de Mazzaropi, por exemplo, as pessoas faziam filas para conseguir um ingresso – lembra saudoso.

A história do cinema em Montes Claros, assim como sua própria história está escrita no livro História do cinema em Montes Claros, onde seu Benjamim narra desde as primeiras experiências com o cinema, em 1904, até a chegada das salas de cinemas na cidade.

- O livro tem cerca de 150 páginas e está pronto para ser editado. Estamos tentando conseguir uma editora para publicá-lo. Apesar de ter perdido boa parte do material que guardava em um incêndio, que poderiam ajudar na ilustração, no livro conto todos os detalhes e os momentos mais marcantes da história do cinema.

Aos 74 anos, depois de passar por muitas dificuldades na infância, de se sentir recompensado pela vida ao trabalhar por mais de 20 anos na rede ferroviária Central do Brasil, seu Benjamim diz que a exposição é o seu momento de glória.

- Esses objetos são parte de mim, representam minhas alegrias, emoções, tristezas e dores, e ao compartilhá-los com as pessoas, me sinto como se estivesse repartindo um pouco de mim mesmo, minha melhor parte – conclui emocionado.

Texto reproduzido do site: onorte net

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Texto compartilhado do site do JORNAL O NORTE, de 30 de outubro de 2006

Um sonho de criança que se tornou realidade: o menino que brincava de cinema no quintal de sua casa na cidade Coração de Jesus mais tarde veio construir o mais romântico dos cinemas que Montes Claros já teve

Por Samuel Nunes - Repórter - samuelnunes@onorte.net

Na edição de hoje a reportagem de O Norte outra vez mais foi no fundo do baú e através até o ex-operador de projeção do cine Fátima, Benjamim Ribeiro Sobrinho, natural da cidade de Várzea da Palma e que hoje está com 74 anos e mora em Montes Claros desde os 3 anos de idade. Ele demonstra seu amor pela terra da carne de sol e do pequi ao se referir a alguns patrimônios históricos da cidade que ao decorrer dos anos vem se perdendo, ou pela vinda do progresso, ou mesmo pela falta de políticas públicas voltadas para a arte e a cultura. Ele conta que é aposentado pela rede ferroviária Central do Brasil, e sempre gosta de acompanhar tudo que envolve cultura.

- Também escrevia uma coluna no suplemento Opinião do jornal O Norte, onde eu elogiava e criticava o que via em Montes Claros - lembra.

COMO SURGIU O CINE FÁTIMA

Com precisão Benjamim Ribeiro Sobrinho afirma que vivenciou um interesse pela arte e cultura com o progresso das casas de diversão nesta década e teve a oportunidade, portanto de acompanhar de perto as construções das principais casas de cinema de Montes Claros. Com uma memória invejável ele revela que o Euller Lafetá, proprietário do cine Fátima ainda quando criança brincava de uma forma diferente das demais crianças da sua idade.

Benjamim Ribeiro Sobrinho diz que acompanhou o Cine Fátima da inauguração até o fechamento 

- Ele brincava de cinema no quintal de sua casa na cidade de Coração de Jesus, o tempo passou e já na sua idade adulta ele se transformou em comerciante sendo que logo depois mudou se para Montes Claros – conta.

Benjamim revela que em 1958 aproximadamente aconteceu a compra de um terreno por parte de Euller Lafetá na rua D.Pedro II centro de Montes Claros. Depois disto ele foi até a cidade de Varginha, sul de Minas Gerais, e conheceu um engenheiro-arquiteto que já tinha uma planta de um cinema construído na cidade de Sete Lagoas e com este modelo o Euller Lafetá construiu o cine Fátima.

- Nesta época ele já se preocupava em construir um cinema de qualidade e à altura do que nossa cidade merecia. O Cine Fátima foi comparado com outros cinemas dos grandes centros do país. A construção foi grande e pode se dizer lenta, mas o importante é que esta obra não parou - salienta.

ESTRUTURA ADEQUADA

Sobre a estrutura do cinema Benjamim diz que a que foi usada veio de Belo Horizonte e foi a primeira que chegou a cidade.

- A estrutura usada foi de metal, a construção da sala de projeção foi feita de acordo com a aparelhagem que foi comprada. As paredes eram de granitos a jato isento de quinas vivas e arredondadas. Sobre o teto e as paredes de frente para as telas. Segundo Benjamim estas foram forradas com material acústico. Quanto ao equipamento de som e projeção ele explica que foi feito um contrato com um representante do Brasil, e que este equipamento para exibição de filmes tinha o som ótico comum e magnético estéreo de 4 canais e foi importado da Inglaterra sendo de alto valor. Segundo Benjamim esta aparelhagem era uma novidade no comércio cinematográfico e para uma pessoa para lidar com ela seria necessário treinamento para adquirir conhecimento e aptidão para o assunto. Ele conta ainda que a cortina do cinema era automática e tinha 400 metros de tecidos, 15 metros de altura e 32 de largura.

CONVITE PARA TRABALHAR

Com emoção ele conta que foi convidado por Euller Lafetá para trabalhar no cine Fátima e, inclusive, fazer um estágio na Inglaterra, mas ele não achou necessária sua ida ao continente Europeu.

- Além de eu não ter achado necessário minha ida, outro fator negativo seria minha ausência do serviço durante muitos dias - argumenta. Ele conta que as 1.400 poltronas do Cine Fátima foram adquiridas com assento automático junto à empresa Brefor. Benjamim diz com orgulho que através do seu trabalho no cinema e mesmo depois da sua extinção teve a oportunidade de assistir aproximadamente de 15 mil filmes o que para ele é uma fonte inesgotável de cultura.

- Eu trabalhei na sala de projeção até 1962 e depois passei a dar manutenção na aparelhagem - lembra. Outro ponto mencionado por ele é que enquanto os filmes não eram exibidos em algumas capitais eles não chegavam a Montes Claros. Benjamim afirma que os filmes eram passados no departamento de censura e diversões públicas, lá eles eram exibidos e depois era criada uma comissão, se existisse alguma fala que iria de encontro ao governo de modo negativo ou qualquer outra inconveniência o filme era censurado.

PORQUE CINE FÁTIMA

Outra informação importante mencionada por Benjamim é que o motivo pelo qual Euller Lafetá denominou de Cine Fátima o principal cinema de Montes Claros na época é que ele tinha uma filha por nome de Fátima e também pelo fato de ele ser devoto de Nossa Senhora de Fátima. Benjamim conta que o cinema foi inaugurado em 13 de fevereiro de 1960 e foi feito um coquetel neste dia para mais de 200 pessoas de Montes Claros e de outros centros do país como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de janeiro.

- Neste dia foram exibidos trailers de desenhos animados, à noite aconteceu uma sessão especial com o filme Cristo de Bronze. Com saudade ele conta com orgulho que mais de 4 mil pessoas por semana freqüentavam o Cine Fátima.

- A fila para entrar no cinema subia as ruas Doutor Santos e São Francisco, era muita gente. Eu presenciei a construção do cine Fátima e hoje vejo com tristeza a sua destruição por completo - desabafa.

Questionado sobre por que isto não acontece mais na cidade ele ressalta que um dos motivos é um grande número de jovens que estudam à noite.

Montes Claros

Texto reproduzido do site: onorte net

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

História de Alexandro Nascimento Genaro



Artigo compartilhado do site MUSEU DA PESSOA, de 16 de maio de 2016

Página Inicial | História de vida

Personagem: Alexandro Nascimento Genaro

Energia que move

Alexandro Nascimento Genaro, o Sandro, é um aficionado por filmes, que começou sua carreira profissional no Cinema Aricanduva. Em seu depoimento, ele fala sobre as brincadeiras de infância no bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo, da profissão do pai como tipógrafo, sobre sua vida escolar e o trabalho como office-boy.  Descreve o trabalho como projecionista e explica como a tecnologia está extinguindo a profissão. Fala sobre os tipos de película com que já trabalhou e dos filmes que gosta. Finaliza falando sobre seu casamento e sobre os filhos. 

Sou Alexandro Nascimento Genaro, nasci aqui em São Paulo, dia 20 de janeiro de 1974. Meus pais são Miguel Luís Carlos Genaro e Maria Aparecida do Nascimento Genaro. Meu pai era tipógrafo e tinha, como eu, uma profissão que acabou com a tecnologia. E a minha mãe era costureira, é costureira até hoje, mas agora só trabalhos pequenos. Tenho três irmãs mulheres, uma é professora, uma é policial civil e a outra trabalhava na Natura, eu acho que na parte de química.

Meu avô me contava que eles usavam lampião, era a querosene, sabe? Ele me ensinou fazer uma lamparina a óleo de cozinha! Você pegava um cadarço de sapato velho, enfiava numa chapinha de metal e fazia uma lamparina a óleo. Quando eu era moleque, eu ia brincar, fazer cabaninha no mato e fazia essas lanterninhas para iluminar, entendeu? Brincadeira de molecada, né? Ele falava que quando chegou a energia elétrica, eles tinham só uma lâmpada na casa, porque eles economizavam. Era uma festa e uma lâmpada! Aí, depois de muito tempo ele comprou um rádio. Só quando minha mãe já era adulta que ele foi comprar uma televisão.

Quando criança eu ia em cinema de rua, mas na adolescência eu passei a ir muito ao cinema. Lembro de “Robocop”, que a censura era, se eu não me engano, 16 anos. Eu devia ter 14, 13 anos, mas eu consegui entrar. E quando eu virei office-boy, eu chegava a ir para o cinema, eu pegava e ligava: “Está uma fila gigantesca no banco, vou ter que ir embora daqui, tudo bem?” “Tudo bem”, eu ia para o cinema, eu já tinha saído do banco já fazia tempo, já, que era para dar tempo de eu ir no cinema e depois ir para a escola. Eu fazia isso para ir no cinema. Sempre fui fanático por cinema, depois que eu comecei a trabalhar com cinema, parei de ir ao cinema… parei de ir, não, eu vou muito ao cinema para levar meus filhos, mas eu vou mais para ver os filmes com eles.

Com 19 anos, consegui um emprego no Cine Aricanduva. Foi naquela fase militar que não podia largar o emprego, nem nada, porque senão, não ia conseguir arrumar nada. Já logo no começo eu era trabalhava na portaria, rasgando ingresso. Com uns dois meses lá, eu passei para auxiliar de borderô, que é o ajudante do gerente. Eu contava a renda do dia, fazia os relatórios, preenchia os dados dos impostos que eram pagos, fazia toda a questão burocrática do cinema, preenchia aquele monte de formulários. E quando eu tinha uma folguinha, ficava na cabine, porque para mim, aquilo era fascinante, a projeção. E fiquei aprendendo, trabalhando na cabine, olhando tudo aquilo e aí, teve uma greve grande dos projecionistas aqui em São Paulo, onde mandaram embora todos os projecionistas. E eu sabia fazer projeção.

Eu comecei no Alvorada Cinemas, onde eu trabalhei seis anos. A Alvorada Cinemas faliu, fechou as portas, aí naqueles poucos meses, eu conhecia muita gente, porque eu rodava vários cinemas, então, eu criei vários amigos, e aí, quando eu saí do Alvorada, alguns amigos meus ficaram sabendo que eu estava desempregado e ficaram sabendo do Espaço Unibanco de cinemas, ali na Augusta, agora Espaço Itaú de Cinemas, que estava precisando de um projecionista. Lá eu fiquei oito anos, eu pedi para sair de lá, não queria mais ficar ali, porque chega um momento da nossa vida que a gente tem que tomar alguns rumos, e eu sabia que ali não tinha jeito, ali era um lugar muito limitado, entendeu? Eu sai de lá, acabei ficando como temporário no Sesc durante cinco anos. O Carlos Magalhaes que era o diretor aqui da Cinemateca era muito amigo do gerente do Sesc. O Magalhães falou para ele assim: “Estou precisando de um projecionista, mas estou com dificuldade, os caras não sabem muito”, aí ele falou: “Tem um rapaz aqui que trabalha bem, ele está fazendo temporário aqui, faz uma entrevista com ele”. Eu fiz uma entrevista e fui contratado.

A energia está presente em tudo! Acho que não tem mais como a gente ter uma rotina sem energia, hoje em dia, se acaba a energia elétrica, a gente fica louco. No meu trabalho mesmo, ele não existiria sem energia, não tem como, desde que a projeção iniciou… logico, no início das projeções, eram tipo lamparina, sabe, mas projeção cinematográfica não tem como sem a energia. Ela é parte integral do meu dia a dia. Minha maior preocupação é os meus filhos ficarem sem energia em casa, porque eles ficam doidos, cara!

Texto e imagens reproduzidos do site: museudapessoa org