segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ivan Cineminha faz 80 anos, ainda na plateia


Memorabilia de Ivan Cineminha abrange
 foto com  Jô Soares e Anthony Quinn
 Fotos: Marcelo Abreu

Artigo compartilhado do site REVISTA CONTINENTE, de 28 de Novembro de 2025

Ivan Cineminha faz 80 anos, ainda na plateia
Por Marcelo Abreu*

Cinéfilo e colecionador paraibano, com memória prodigiosa para fatos e fichas técnicas de produções cinematográficas, mantém, há décadas, memorabília dedicada ao cinema

Num pequeno apartamento no andar térreo de uma rua tranquila do centro de João Pessoa, vive um fanático por cinema. A sétima arte é parte essencial na experiência de muita gente que vivenciou o século XX, mas, para uns poucos, torna-se a própria vida. Esse parece ser o caso de Ivan Araújo Costa, conhecido como Ivan Cineminha. Conversar com ele é como mergulhar num mar de informações, memórias, fichas técnicas, estúdios, datas, salas de cinemas, curiosidades em geral.

Memórias que vêm desde o primeiro filme que lembra ter assistido, aos 7 anos de idade, O intrépido General Custer, de Raoul Walsh, com Errol Flynn e Olivia de Havilland. E que prosseguem até as fitas mais recentes, que vê ainda no cinema ou pela televisão, nos serviços de streaming.

Ivan nasceu na pequena cidade de Picuí, na fronteira entre Paraíba e Rio Grande do Norte. O pai era dono de uma sapataria e de uma fazenda. Um dia chegou alguém na cidade com um projetor de cinema para vender. Na época, a cidade não tinha diversões. O pai decidiu comprar o projetor de 16 milímetros e alugou uma sala onde cabiam umas 300 pessoas. “Sou do tempo em que você levava cadeira para assistir ao filme”, lembra Ivan. Depois que uma igreja fechou, o pai comprou os bancos e, posteriormente, adquiriu mais cadeiras em Campina Grande, que fica a cerca de 120 quilômetros. Os filmes eram alugados também na cidade vizinha.

Picuí nem tinha energia elétrica. O projetor funcionava impulsionado por um motor a gasolina. À noite, a cidade ficava no escuro, mas com o cinema funcionando às sextas, sábados e domingos. Havia uma sessão somente, às 20 horas, divulgada por um carro de som. Anunciava-se o começo com uma valsa de Johann Strauss, “Danúbio Azul”, no sistema de som. Imagine-se o deslumbramento daquelas imagens em movimento para uma população do interior do Brasil nos anos 1950, sem acesso nem à luz elétrica.

Ivan viveu em torno desse cinema, o Guarany, de 1952, aos 7 anos de idade, até 1956, quando foi morar em João Pessoa. O pai decidiu mudar-se para a capital com parte da família. O cinema ficou com um irmão mais velho e funcionou até os anos 1990. “Quando você chegar na capital vai acabar com essa mania de ver filmes”, dizia o pai, esperançoso.

Ao chegar em João Pessoa, no entanto, aos 11 anos, Ivan deparou-se com nada menos de 13 salas de cinema diferentes. “Aí a coisa enlouqueceu. Tinha dia que eu via três filmes”, conta. No centro, cinemas como Plaza, Brasil, Rex e depois o Municipal. Nos bairros, o Metrópole, Torre, Santo Antônio e Jaguaribe. O menino circulava pelas salas com desenvoltura. O que lhe distinguia dos outros era a mania de anotar em cadernos as fichas técnicas dos filmes, hábito que mantém até hoje.

Faltava sempre às aulas no Liceu Paraibano nas quartas-feiras, dia em que o Cine Brasil exibia, à tarde, uma sessão dupla: dois filmes pelo preço de um. Na chamada de presença nas aulas de Desenho e Trabalhos manuais, a chamada do nome “Ivan” era sempre respondida por algum colega: “Está no cinema”. Daí veio o apelido de “Cineminha”. Acabou sendo reprovado. Não concluiu o que hoje se chama de Ensino Médio. “Só me interessava por cinema e depois também por motos e namoradas”.

Uma visita ao pequeno apartamento em que mora sozinho na área central de João Pessoa é uma entrada num universo de recordações ligadas ao cinema: revistas, cartazes, fotos de divulgação, recortes da imprensa, cadernos de anotações. Pilhas de revistas do passado como Cinemin, Cinelândia e Filmelândia. Uma infinidade de discos de vinil, fitas cassete e CDs com trilhas sonoras. E, claro, cópias de centenas, talvez milhares de filmes em VHS e DVDs. As prateleiras circundam a sala de estar onde tem uma cama de dormir e uma TV de 65 polegadas. O material prossegue em todos os espaços, em um quarto e nos armários da cozinha. Tem também inúmeros aparelhos antigos para tocar discos e CDs, ouvir fitas cassetes, assistir vídeo e DVDs e ouvir rádio.

Ivan Cineminha não é um colecionador sistemático, organizado, apesar de ter um arquivo precioso. Nesses 73 anos de cinefilia, além de colecionar objetos e anotações, cultivou sobretudo uma memória prodigiosa que lhe faz lembrar de muitos filmes com riqueza de detalhes que envolvem direção, elenco e enredo.

Ele é uma metralhadora giratória ao exibir seu arquivo mental com nomes de atores, atrizes, diretores e estúdios. Nunca pretendeu trabalhar com cinema. Sempre quis ser espectador. Não gosta de filmes sobre religião e de filmes infantis. Pelos pôsteres nas paredes, pelos livros e anotações, ficam claras as suas paixões: Alain Delon, Charles Bronson, Jece Valadão, entre os homens (Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone estão presentes em muitas fotos também). Entre as atrizes, Demi Moore, Jodie Foster, Olivia de Havilland, Grace Kelly. Os diretores preferidos são Alfred Hitchcock, Steven Spielberg, Arthur Penn, Roman Polanski (“só os primeiros filmes”) Costa-Gavras e Anthony Mann.

GUERRA E AMOR

Ivan diz acompanhar o cinema brasileiro, mas não gosta da produção atual. Acha que o cinema, em geral, está dominado pelos super-heróis e pela temática da identidade sexual. Protocolarmente, diz gostar de cinema francês e italiano. Mas, pelas referências que cita, seu mundo é mesmo a Hollywood clássica, o cinemão norte-americano das décadas de 1940 até a década de 1990 do século passado. Filmes de ação, filmes de guerra e de amor. Não perde tempo com teorias e apreciações estéticas. Seu orgulho é ser um colecionador, um espectador, e ter uma grande memória. Sua obsessão mesmo são as fichas técnicas. Insiste em comprovar tudo o que diz com os objetos colecionados em casa.

O crítico de cinema João Batista de Brito conta um episódio curioso. Certa vez, conversando com Ivan, fez referência a um filme obscuro que pensou ter sido o único a ver em João Pessoa, numa noite chuvosa de segunda-feira, num cinema de bairro, o Bela Vista. O filme era intitulado Meu coração tem dois amores. Ivan interrompeu a conversa e passou a dar a ficha do filme, com Susan Hayward e Stephen Boyd (“que trabalhou em Ben Hur”), direção de Henry Hathaway, de 1959. “Como é que você viu esse filme? Não tinha quase ninguém no cinema”, perguntou Brito. “Isso é porque você não olhou bem. Se tivesse se virado, veria que, lá atrás, eu estava também”, respondeu Cineminha.

Além do cinema, Ivan tem paixões na música, como o cantor Elvis Presley e os Beatles. Ganhou a vida como comerciário, trabalhando na então melhor loja de discos de João Pessoa, a Eletropeças, de 1967 a 1995, o que lhe ajudou a acompanhar de perto o mundo da música, sobretudo as trilhas sonoras do cinema.

Aos três filhos do primeiro casamento, deu os nomes de Elvis, Maximillian (inspirado no ator Maximillian Schell) e Vanessa (por causa da atriz Vanessa Redgrave). O quarto filho, chama-se simplesmente Felipe (o nome foi dado pela mãe), mas este gosta de cinema e motos, como o pai.

BEATLES NO RECIFE

Quando atuava no comércio de discos, viajava com os donos da loja ao Recife para fazer compras, semanalmente, e aproveitava para ver mais filmes. Cineminha tem uma longa relação com a cidade. Décadas atrás, muitos filmes demoravam para estrear em João Pessoa. Basta lembrar que os padrões de exibição eram bem diferentes: os cinemas de rua tinham sessões das 14h até as 22h, de um único filme, para plateias quase lotadas nas cidades maiores. As cópias, pouco numerosas, viajavam depois de cidade em cidade em latas com as películas. No interior, às vezes chegavam somente anos depois. Então Cineminha não se continha. Vinha ao Recife ver os filmes dos Beatles e de Elvis, assim que estreavam. Em um de seus cadernos de anotações, por exemplo, está escrito com canetas coloridas, em letras grandes: “Art-Palácio - 17 de julho de 65, Os reis do Iê-iê-iê”. Trata-se do título em português para o primeiro filme dos Beatles, A hard day’s night.

Ainda hoje gosta de assistir tudo, logo que pode. Na pré-estreia para convidados de Elvis, filme de Baz Luhrmann, lançado em 2022, Cineminha veio ver o filme no cinema do Shopping Tacaruna acompanhado de seis imitadores de Elvis provenientes de João Pessoa. No Recife, encontraram-se com outros covers do cantor para a sessão inaugural do filme.

O cinéfilo foi tema de um folheto de cordel intitulado Uma carta a Ivan Cineminha, de autoria de Janduhi Dantas, no qual está escrito: “Como assistidor de filmes / és primeiro sem segundo / Falou-se em fã de cinema / Tu és o maior do mundo”. Também foi tema do documentário O contador de filmes, de Elinaldo Rodrigues, lançado em 2010. O filme tem uma reconstituição, com atores, das primeiras experiências no cinema, quando criança. No filme, Ivan refaz, de moto, uma viajem a Picuí para relembrar a infância.

Cineminha deu duas entrevistas importantes na televisão: uma no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1995, no SBT, e outra no Programa do Jô, em 2000, na Globo. Numa das vezes, teve a oportunidade de conversar, diante e fora das câmeras, com um dos atores de sua preferência, Anthony Quinn, que ficou impressionado com a memória do cinéfilo sobre sua própria carreira.

Sobre o melhor filme já visto, Ivan Cineminha hesita: “Muito difícil dizer. Talvez A lista de Schindler, de Steven Spielberg (1993), Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore (1990) ou Em cada coração uma saudade, de Allen Reisner (1957).

 * MARCELO ABREU, jornalista e escritor, autor de Viva o grande líder

Texto e imagens reproduzidos do site: revistacontinente com br

Nenhum comentário:

Postar um comentário