Fotos reproduzidas do site: omensageiro.org.br
Por António Carlos Affonso dos Santos *
Existe um homem catador de papéis, que construiu com um
lençol de sua própria casa, cadeiras velhas, pedaços de filmes de cinema e um
velho projetor, tudo encontrado no lixo das ruas de Taboão da Serra, cidade
próxima da capital de São Paulo e com isso tudo, fez um cinema, o Mini Cine
Tupy, que funciona aos domingos no quintal de sua casa, onde todas as crianças
(inclusive muitos adultos) assistem cinema pela primeira vez em sua vida.
São sessões gratuitas, onde não falta carinho, pipocas e até
a distribuição de pequenos brindes, distribuídos por sorteio no final das
sessões dominicais. Os brindes não são nada sofisticados, são pequenos
brinquedos de origem chinesa, comprados em lojas de miudezas (R$ 1,99 cada, ou
cerca de 0,60 Euros, ao câmbio atual).
Este homem é um conhecido meu, de Taboão da Serra, grande
São Paulo; o José Luis Zagatti, que era catador de materiais recicláveis. Nas
suas palavras, ele era um reciclador, nome que acho mais nobre; que certo dia
achou uma máquina de projeção de cinema no lixo de uma empresa. Apaixonado que
era por cinema e sem condições de ir a cinemas (em São Paulo um ingresso de
cinema chega a US$15.00); o Zagatti levou um tempo «consertando» o projetor até
fazê-lo funcionar.
Em outras oportunidades encontrou pedaços de filmes de
cinema, os quais limpou cuidadosamente, recortou e colou-os uns aos outros. Com
esse filme, testou seu projetor; com o filme e o projetor, montou seu próprio
cinema! Um amigo dele, também reciclador, achou vários trechos de filme de
cinema, com qual foi presenteado. Sabendo onde o filme foi encontrado, foi até
lá e procurou muito e encontrou quase um milheiro de pedaços de filmes.
Num domingo, ele foi limpando os pedaços de filme que tinha
em mão, cortava os trechos rasgados ou com imagens apagadas com seu canivete, e
colava as partes com fita adesiva. Montou assim o filme com o qual fez a
primeira projeção em família.
O «filme», que poderia ser chamado de «Frankstein», formado
por pedaços de vários filmes, era apenas uma grande mistura de imagens, cenas
de perseguição policial, cenas bucólicas, imagens de documentários mostrando
cidades da América do Norte e da Europa, documentários indígenas, «westerns»
(faroeste) e etc. Não havia som, nem havia uma ordem, mas havia sonho.
Eis o José Luis Zagatti em ação, em tarde dominical no Mini
Cine Tupy
Segundo pesquisa in loco, feita pelo jornalista Júlio César
Caldeira, o Zagatti (é assim como é conhecido em Taboão da Serra), quando tinha
cinco anos de idade, ele que é paulista da cidade de Guariba, região de
Ribeirão Preto (Brasil), entrou pela primeira vez numa sala de cinema, pelas
mãos de uma irmã.
Desde então, aquele retrato de imagens projetadas numa
grande tela nunca mais saiu da sua cabeça. Quarenta e sete anos depois, Zagatti
representa para os moradores da sua comunidade, em Taboão da Serra, Grande São
Paulo, a única idéia que eles têm do cinema. Há oito anos projeta na frente de
sua casa, naquilo que ele pretendia chamar de garagem, em sessões gratuitas com
direito até a pipoca; filmes antigos em 16 mm numa máquina que ele mesmo
comprou por oitenta reais. Hoje ele é o «dono» do Mini Cine Tupy.
Além do lirismo dessa história, há um fato importantíssimo
por trás da atitude do projetista, uma realidade que ele conhece muito bem:
«Não há como as pessoas daqui irem ao cinema», testemunha Zagatti, que ficou
mais de vinte anos sem pisar numa sala de projeção. «E é com isso que eu me
preocupo bastante. A periferia é esquecida. Em todos os departamentos é assim,
principalmente no da cultura.»
Zagatti nunca havia procurado ajuda do Estado para seguir
com seu pequeno cinema ou mesmo ampliar suas instalações. A única ajuda que
recebia, há oito anos, era da Associação Paulista dos Colecionadores, que lhe
fornecia filmes novos, sempre que podiam. «Conversamos bastante. Não sou como
eles; sou humilde, mas sou considerado um colecionador também», conta com
justificável orgulho.
No entanto, sua humildade não o impede de enxergar a
realidade na qual vivem os moradores da periferia. E a vontade de propiciar uma
luz no fim do túnel, aliada à sua paixão pelo cinema, o motivou a começar e o
impulsiona a continuar. «Uma ou meia hora que as crianças ficam reunidas em
torno de uma tela e de um projetor já é uma forma de evitar que tenham contato
com a marginalidade, o que futuramente evitará problemas para elas e para a
sociedade de modo geral», ensina o catador de papelão, que ainda cita uma
frase, segundo ele, lida num livro do educador Paulo Freire: «Ninguém educa ninguém
e ninguém se educa sozinho».
Origem do nome do «cinema do Zagatti»
Quando chegou em Taboão da Serra, o Zagatti conheceu o único
cinema que Taboão da Serra teve por muitos anos: o Cine Tupy; cinema este criado
e mantido por uma família tradicional de Taboão da Serra. Para se ter uma
idéia, mudei-me para Taboão da Serra na década de 1980 e tal cinema já não mais
existia há uns quinze anos. Eu sei até onde funcionava o cine Tupy, porém
jamais vi ao menos uma foto dele; sobraram imagens apenas na cabeça do Zagatti.
Sempre achei esta homenagem do Zagatti uma das maiores demonstrações de sua
alma pura. Portanto, o Mini Cine Tupy é uma homenagem do Zagatti ao antigo
cinema de Taboão da Serra.
Mais dados sobre o cinéfilo Zagatti
José Luís Zagatti é apenas um dos vários casos que existem
em todo o país, de pessoas que, cansadas de esperar alguma atitude dos órgãos
públicos, resolveram arregaçar as mangas e criar um movimento de reação da
sociedade.
«E uma tendência que vem se espalhando no Brasil desta
década», analisa a ensaísta e professora Walnice Nogueira Galvão in ...«Uma
iniciativa pessoal que tem por ambição sanar lacunas e falhas do tecido
social.» Bons exemplos, como o do Zagatti, meu amigo, devem ser seguidos. Creio
que deva haver centenas de Zagattis, espalhados em todo o mundo.
Como o Zagatti foi «descoberto» e ficou conhecido
O professor de música e canto orfeônico, Nelson, funcionário
da Prefeitura Municipal de Taboão da Serra da Secretaria da Educação e Cultura,
foi um dos «descobridores» do cinéfilo Zagatti.
A sua existência e sua obra solitária na Vila das Madres, de
Taboão da Serra, emocionaram o professor de música. Sua história foi repassada
ao Secretário de Educação e Cultura; deste ao Prefeito Municipal.
Nos últimos oito anos; Zagatti não deixou de ser uma pessoa
de vida e hábitos modestos, mas deixou de catar material reciclável nas ruas e
becos de Taboão da Serra.
A notícia de sua existência e sua obra, repassada pelo
serviço de assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo, tornou-se matéria
com fotos do jornal «O Estado de São Paulo».
Depois disso, foi convidado a dar entrevista no programa
«Mulheres», da TV Gazeta, de São Paulo. Sua humildade, seus sonhos, sua
preocupação com seus filhos e os filhos dos moradores da periferia,
sensibilizaram muitos corações. Ele ainda tem aquela «cara que irradia bondade»;
a meu ver o seu maior trunfo.
A efervescência cultural no início dos anos 2000 em Taboão
da Serra, propiciou ao Zagatti ter contato com o pessoal de teatro (à época
Taboão da Serra tinha ao menos cinco grupos de teatro; um deles era mantido,
ainda que minimamente, pela prefeitura.
Pois foi este grupo que deu ao Zagatti a primeira
oportunidade de trabalhar em uma peça de teatro experimental, onde o Zagatti,
portando um projetor portátil, projetava imagens por sobre os personagens da
peça.
Eu, ACAS, estive lá e constatei a felicidade que ele tinha
em participar. (Em toda sua vida só havia visto teatro de circo mambembe, lá na
nossa terra, no interior de São Paulo).
A matéria publicada pelo jornal «O Estado de São Paulo»,
repercutiu na França e a partir dela vieram jornalistas e gente da televisão
para conhecê-lo e ao seu Mini Cine Tupy.
Depois que foi mostrado na França, Zagatti foi convidado a
participar de programas na REDE TV (programa de auditório), quando ganhou da
apresentadora um telefone celular (ou telemóvel, como os lusos dizem).
O sucesso e o impacto que sua figura fizeram neste programa
foi tão grande, que passados oito anos, eu creio que a audiência do tal
programa jamais chegou ao número de telespectadores daquele dia.
Os jornais franceses compararam sua história e seu Mini Cine
Tupy, com o filme premiado mundialmente, o «Cinema Paradiso».
Zagatti participou também do programa de entrevistas mais
famoso do Brasil, o «Programa do Jô», apresentado pelo multiartista Jô Soares
(ator, dramaturgo, escritor, diretor de cinema e teatro, cômico e entrevistador
por excelência), na poderosa e conhecida Rede Globo de Televisão.
Após sua participação, Zagatti recebeu uma dezena de filmes
novos, um novo projetor, caixas de som, uma máquina de fazer pipoca e um saco
de milho, para fazer as guloseimas.
Zagatti conseguiu
popularidade por méritos e reconhecimento. Sobre ele foi feito um filme
«documentário» de curta – metragem, filme este premiado no Festival de Cinema
de Curitiba, em 2003, onde o Zagatti foi receber o prêmio e arrebatar a platéia
de atores e gente de cinema e empresários.
Cena do «curta: Zagatti», filme premiado no Festival de
Cinema de Curitiba em 2003
O Filme «Zagatti» ganhou o prêmio de «melhor filme» no 7º
Festival dos Festivais de Cinema de Curitiba. «Zagatti», foi dirigido e
produzido por Edu Felistoque e Nereu Cerdeira (SP). O 7º Festival de Curitiba
aconteceu entre os dias 19 e 24 de Maio de 2003.
O filme mostra um dia na vida do Zagatti, como «catador».
Porém, ao vê-lo puxando seu «carrinho», separando papelão, metais e não metais,
ouvimos uma declaração sua, demonstrando a importância ecológica de seu
trabalho.
Ele diz que cada papelão que coleta e que vai ser reciclado,
é uma árvore a menos a ser abatida na natureza; a mesma coisa a respeito de
materiais recicláveis como alumínio, cobre, ferro e etc. como ficou aqui bem
claro, até um cinema praticamente «emergiu» do lixo.
Nos jornais locais, em Taboão da Serra, inclusive n´O
Taboanense, onde colaborei, como diletante, por um ano; dá-se como certo a
execução de um filme de longa metragem sobre o mesmo tema do «Curta metragem»,
que foi premiado.
Segundo divulgado, até o intérprete para o lugar de Zagatti
já foi escolhido; trata-se nada mais nada menos que o ator Lima Duarte,
sobejamente conhecido pelas novelas nas quais participa pela Rede globo de
Televisão, e do teatro de do cinema, naturalmente.
A jornalista Adriana Bosco escreveu em fevereiro de 2001:
...«dizia o Zagatti: a primeira vez que eu entrei em um cinema eu estava no
colo da minha irmã. Vi aquela tela branca grande e aquela luz que saia e
refletia nela e me encantei».
Concordo com a jornalista Adriana Bosco, quando afirma que
há que se construir um Mini Cine Tupy em cada cidade pobre do mundo, em todos
os continentes. Se os governantes não resolvem os problemas sociais, a
esperança de um Mini Cine Tupy em cada um destes lugares miseráveis do mundo,
traria senão a redenção, pelo menos a perspectiva de um mundo melhor, com mais
esperança.
Talvez a nossa presença neste mundo faça sentido, se nos
irmanarmos nisso, ou se plantarmos esta semente.
Segundo o jornalista Júlio César Caldeira, José Luis Zagatti
é apenas um dos vários casos que existem no Brasil, de pessoas cidadãs por
excelência que, cansadas de esperar por alguma atitude dos órgão públicos,
resolvem arregaçar as mangas e criar um movimento, ou principiar uma ação de
reação da sociedade.
O Zagatti achou seu próprio modo de criar espaço de lazer
para as crianças pobres, como até plantar sementes de cidadania, brasilidade e
de cultura...
*Reproduzido do site: raizonline.net
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