"Zé Sozinho" posa em projetor no Cine São Luís, em Fortaleza,
onde aconteceu o Cine Ceará. (Jarbas Oliveira/Divulgação).
Publicado originalmente no site da Folha de S. Paulo, em 04/07/2001
Cine mambembe ajuda a "matar" fome de agricultor
no Nordeste
Marcelo Bartolomei (Editor de Entretenimento da Folha Online)
O cinema mambembe já driblou a fome do agricultor José
Raimundo Cavalcante, 59, o "Zé Sozinho", que há mais de 30 anos leva
filmes nada inéditos a cidades que não têm salas de exibição no interior do
Nordeste, na tentativa de suprir a falta de diversão e entretenimento.
Sempre com um projetor de filmes e um megafone debaixo do
braço, Cavalcante, que disse sobreviver com suas exibições de R$ 0,50 por
ingresso, faz parte da história do cinema nordestino e foi apresentado durante
a 11ª edição do Cine Ceará, festival nacional de cinema e vídeo que apresentou
filmes inéditos e a recente produção local em Fortaleza na semana passada.
Cavalcante carrega consigo, para onde vai, um megafone
comprado em 1965, um microfone Panasonic amador, uma pilha pequena, um
amplificador de pequeno porte, uma extensão, fita crepe e fios desemcapados.
Com isso, consegue projetar sua voz e divulgar os filmes que exibe, chamando o
público.
"Cinema é alegria. Agora só tem cinema nas cidades grandes.
Eu queria morrer trabalhando com cinema", afirmou.
Sua última exibição foi na Quinta-feira da Paixão, em abril,
em Caririaçu (CE), cidade próxima a Juazeiro do Norte, onde mora, e, com ela,
"Zé Sozinho" disse ter ganho R$ 32. Ele está há mais de um ano sem
fazer suas tradicionais exibições por não ter um projetor de filmes 35mm,
padrão atual mais utilizado no cinema. Ele tem um projetor de filmes Super 8 e
outro em 16mm.
Sua trajetória é irregular, dividida entre o trabalho no
campo e a paixão pelo cinema, que o move desde os 28 anos. Atualmente, vive com
o dinheiro que a mulher ganha no trabalho, sustentando a pequena família de
três pessoas no interior do Ceará ["Zé Sozinho" mora com a mulher e
uma filha de 16 anos, já que os outros filhos estão "encaminhados",
como ele próprio diz], e vendendo latinhas de alumínio, a R$ 5 a cada dez
quilos arrecadados.
Cavalcante nem se lembra mais do último filme que assistiu
no cinema, fora os que têm em seu acervo de vídeos. "Hoje eu não posso
pagar um ingresso de filme, sabe por que? Porque eu não tenho dinheiro para
pagar R$ 6, que é o ingresso mais barato de cinema hoje em dia. Eu cobro R$
0,50 e não tenho condições de pegar o que ganho com minhas exibições e pagar
tudo isso para ir ao cinema. Quando eu pego um dinheiro desse na mão eu quero
fazer algo pra mim. Para quem tem [dinheiro] é pouco, mas para mim é muita coisa.
Com R$ 6 eu compro alimento para minha casa que dá para seis dias."
A escassez de dinheiro ficou maior depois que passou a
frequentar a igreja Batista em Caririaçu e parou de exibir filmes eróticos, o
seu maior acervo, de 60 fitas.
"Já está com mais de um ano que eu não vejo uma nota de
R$ 50 no bolso só porque eu me recusei a passar filmes eróticos. Arrumei uma
máquina de projeção com a igreja. Com este negócio eu não posso estar com filme
imoral. O pastor me disse que eu podia exibir Os Trapalhões e outros filmes,
mas não essas coisas imundas", disse o agricultor, que, atualmente na
igreja, passa filmes religiosos.
Com o esquema mambembe, o agricultor já levou cinema a mais
de mil cidades, de acordo com suas próprias contas. Ele exibia os filmes em
qualquer salão desocupado e até mesmo em igrejas.
Com sua retórica, conquistava o público e lotava as salas
improvisadas de cinema. "Coloco cartazes, uma musiquinha no gravador, ligo
o amplificador e chamo o povo para assistir. Se não fizer isso não tenho fé de
que vá encher, e se não encher eu não tenho como pagar o aluguel do
prédio", disse.
Segundo ele, os filmes que mais lhe renderam audiência foram
sobre o cangaço e os com o personagem Zé do Caixão, criado por José Mojica
Marins. Ele já dispensou Mazzaroppi da sua lista de favoritos, por não atrair o
público.
Seu objetivo, agora, é comprar uma TV de 32 polegadas para
poder exibir vídeos em qualquer lugar do Nordeste, retomando sua atividade.
O jornalista Marcelo Bartolomei viajou a convite da organização
do Cine Ceará
Texto e imagem reproduzidos do site: folha.uol.com.br
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