quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Parece coisa de cinema: e é


Fotos Allan Bastos.

Parece coisa de cinema: e é

Zé Sozinho saiu nordeste afora exibindo filmes e fazendo graça
Por Mariana Albanese

Seu Zé vem da linhagem dos Sozinhos. Herdou o apelido da mãe, Maria, que criou quatro filhos sem ajuda do pai. O menino José Raimundo, que nunca gostou de conversa besta, sentava isolado na escola, e Zé Sozinho ficou.

Solitário, saiu aos 12 anos de Caririaçu, cidade serrana do sertão cearense, rumo a Fortaleza, onde encontrou o cinema por companheiro. Subiu em um caminhão de rapadura rumo à Fortaleza, onde no Cine Marambá, em Parangaba, em 1954, viu seu primeiro filme. "Um daqueles americanos, que estava fazendo sucesso", relembra.

Já de volta ao sertão, começou a ajudar alguns mambembes que passavam pela cidade. Sua missão era ajustar a energia a gerador: ligando o projetor, as casas se apagavam. Mas foi no Círculo Operário de Caririaçu, já rapazote, que passou a exibir ele mesmo os filmes. Ali começou a entender o que o povo gosta, e a criar suas artimanhas para entreter.

Quando conseguiu o primeiro projetor, em 1970, aos 28 anos, ganhou o mundo - e perdeu a mulher. Por causa das viagens, que duravam até três meses, a esposa, que hoje mora em Cajazeiras, Paraíba, desenvolveu uma aversão por cinema: "Ela diz que cinema só serviu pra encher ela de filhos. Porque eu viajava, voltava, fazia um filho e viajava de novo". Foram cinco, no total. Hoje, uma filha e alguns netos ocupam, ao menos em fotografia, a parede da minúscula casa em que vive. Chão de terra, cadeiras empilhadas, projetor antigo, data show, telão e cartazes dão um contraste sem fim ao espaço escuro e úmido, o que preocupa Seu Zé. Afinal, é ali que ele guarda sua maior preciosidade: os filmes em VHS e DVD, essencialmente de dois gêneros: luta e terror, ou "karatê e vampiro", como ele descreve. Dos filmes de luta, gosta dos autênticos: "Jack Chan é uma mentira grande, prefiro os de Bruce Lee".

Nunca produziu um filme, mas fez suas edições. Se exibia um título duas vezes na mesma cidade, era preciso mudar o desfecho. "O único filme em que o artista morre no final e os cabra não acham ruim é o de Jesus". Mas nem este escapou. Em certa data, misturou a Paixão de Cristo com pedaços do Zorro. Houve surpresa do público diante dos homens armados. Seu Zé justificou: "são os amigos de Jesus que vieram ajudar ele".

Conta também de quando passou uma série de filmes sobre Sansão e Dalila. O povo reclamou. No dia seguinte, estampou no cartaz: "Hoje, Nem Sansão, Nem Dalila". Para decepção dos que esperavam assistir o filme com Oscarito, a atração da noite foi a dupla O Gordo e o Magro.

Há cerca de dois anos, o exibidor solitário recebeu do Centro Cultural Banco do Nordeste uma ajuda preciosa: equipamento de projeção completo, no valor de 18 mil reais. O vídeo da cerimônia de entrega ele exibe com orgulho no pequeno televisor do espaço que mora. Não chama de casa, diz que está ali provisoriamente, até conseguir sair em viagem. O contrato com o BNB lhe pede presença semanal, para exibição de um filme escolhido pela instituição. Por essas ironias da vida, nunca passou em sua cidade o documentário feito por Adriano Lima, sobre sua trajetória. Cine Zé Sozinho é um curta-metragem produzido ao longo de dois anos, entre Fortaleza e Cariri. Em abril de 2008, foi o homenageado da II Mostra Curtas Cariri, que aconteceu nas cidades de Crato e Juazeiro do Norte. Na ocasião, exibiu o documentário de Adriano Lima e contou um pouco sobre as histórias que viveu. Quando perguntado o que achava da homenagem, respondeu do jeito que lhe é peculiar: "sendo sobre cinema, pode faturar em cima de mim".

Texto e imagens reproduzidos do blog: revistaarteplural.blogspot.com.br

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