quinta-feira, 7 de junho de 2018

REGISTRO: Cinema em transição: da película ao digital

Foto: Antonio Paz/JC

Publicado originalmente no site do Jornal do Comércio, em 30/10/2012

REGISTRO: Cinema em transição: da película ao digital

Por Priscila Pasko

A luz da projeção de um filme ilumina as poltronas de uma sala de cinema vazia, quando o Cinespaço Wallig, no Bourbon Shopping Wallig, ainda não tinha sido inaugurado. Enquanto a imagem é exibida à audiência inanimada, lá atrás, de onde parte o facho de luz, técnicos em mecânica, eletrônica e elétrica caminham apressados de um lado ao outro entre as sete cabines de projeção. Diálogos soltos de diferentes filmes se fundem nos corredores juntando-se aos ruídos dos últimos ajustes. Um cinema não é feito apenas de público, filme e pipoca, mas, sobretudo, dos bastidores que fomentam essa engrenagem.

Em uma das janelas envidraçadas, antes de fazer um reparo, dois funcionários estão sentados sobre uma maleta de ferramentas. Mas logo todos voltam ao trabalho. Se é noite ou dia, ninguém sabe, a noção do tempo se perde no ambiente refrigerado pelo potente ar-condicionado.

São as consequências enfrentadas por equipes de empresas que montam a estrutura de um cinema. Muitas vezes, a rotina de trabalho ultrapassa 15 horas por dia.  “Almoço e janto no shopping. Só vejo a luz do sol no trajeto até aqui”, conta o carioca Valter dos Santos, de 48 anos, prestes a se aposentar daqui a cinco.

A rotina deste técnico montador está prestes a acabar, para a felicidade de sua filha de oito anos, que cobra a presença do pai, afinal, ele costuma ficar, em média, até um mês fora de casa, montando salas de cinema pelo Brasil afora. “Comecei como bilheteiro. E, como sempre gostei de máquinas, acabei gostando da coisa e com isso lá se vão 30 anos. Comi e me vesti por meio desta profissão. Mas, apesar de curtir, estou me cansando. Mesmo assim, estou preocupado. Quero parar, mas se eu adoecer por falta disso?”, indaga, aflito, Santos.

Se depender do avanço tecnológico no segmento cinematográfico, profissionais como Valter sentirão muitas saudades de casa, já que a tecnologia está renovando as salas e cabines, o que exige a presença de profissionais. Um exemplo disso é a sala Imax, que tem previsão de ser inaugurada em dezembro no Cinespaço Wallig. A tecnologia desenvolvida pela Sony apresenta ao espectador uma tela com 14m de altura e 21m de largura, tamanho que equivale a um edifício de cinco andares.

É justamente esta magia que o espectador busca, desde quando a imagem de uma locomotiva afugentou espectadores durante a primeira exibição pública dos irmãos Lumière, em 1895. “O público se transforma em função também desse viés tecnológico”, explica o coordenador do curso de superior de Tecnologia em Produção Audiovisual da Pucrs, João Guilherme Barone. “A partir do momento em que o público se acostuma a isso (tecnologia), ele passa a desenvolver outras capacidades de recepção. O cinema não é mais apenas o que se vê na sala escura. Isso é um tipo de cinema muito original ainda, mas já se oferecem outras maneiras de ver o conteúdo audiovisual.” Barone lembra que a atração do público, ligada à tradição do espetáculo artístico, ainda exerce atração na natureza humana: “O digital não elimina isso”.

Película com os dias contados

No entanto, não é o protagonismo da tecnologia na projeção de imagens que incomoda os mais puristas da sétima arte, mas a substituição de sua fonte que, durante mais de 100 anos, registrou 24 quadros por segundo. Sim, o fim da película já foi preconizado.

Na opinião do crítico de cinema do Jornal do Comércio, Hélio Nascimento, se for para mudar, que seja para melhor. “Porque, neste caso, não faria sentido tirar a projeção de película e inserir a digital. Agora, quando o equipamento (digital) é bom, é extraordinária a qualidade (da imagem). Até arriscaria dizer que é melhor do que a projeção de película, mas isso acontece raramente ainda”, lamenta. Nascimento aponta que alguns equipamentos digitais ainda encontram problemas, resultando em imagens “sem luz, contraste, quase sem cor”, o que já não acontece com a película, quando a cópia é boa.  

A previsão é de que em 2014 a película não seja mais distribuída pelos grandes estúdios, mas apenas o formato digital. O coordenador do curso superior de Tecnologia em Produção Audiovisual da Pucrs, João Guilherme Barone, salienta que, na França, no ano passado, 52% dos filmes rodados eram em formato digital, um marco histórico.

Automaticamente, a redução na circulação de filmes em película implica aumento na produção do formato digital. “A questão do armazenamento do material digital é dramática, pois a preservação dos arquivos é muito mais complexa e cara do que película, que tem a garantia de 100 anos, se armazenada em condições ideais”, adverte o professor.

Atrás da janela de projeção

Para Fernando Costa, magia do cinema está na película.
Foto: Marco Quintana/JC

Considerando o alto custo de conservação dos filmes em arquivos digitais - cerca de cinco vezes mais do que a película - e os valores nada modestos de equipamentos que façam tais projeções, as pequenas salas de cinema temem o futuro. “Inapelavelmente terei que mudar para projeção digital, porque já não trabalho mais com determinadas distribuidoras em função disso”, conta o diretor do Guion Center, Carlos Schmidt. “Essa fase de transição não está me agradando muito. Um projetor hoje custa cerca de R$ 200 mil. Estou ao sabor do vento”, lamenta.

Na visão de profissionais do ramo, os reflexos já afetam - mesmo que timidamente - a presença do público nas salas de cinema do circuito alternativo, por exemplo. “Quando inauguramos este espaço, em 1999, havia forte presença de universitários. Mas com a possibilidade de fazer download de filmes, perdeu-se o hábito”, lamenta o programador da Sala P. F. Gastal, Marcus Mello.

Enquanto o processo de criação, projeção e armazenamento do cinema sofre as mudanças inevitáveis, na sala de projeção, o som da película estalando no equipamento ainda é a trilha sonora de muitos projecionistas. “A condição de eu trabalhar aqui e a minha identificação com o cinema está justamente em montar um filme de 35 mm”, conta um dos projecionistas da Sala P. F. Gastal, Fernando Costa, há cerca de dez anos na função.

Neste universo, a tarefa de montar um filme e vê-lo projetado é transmitida por uma espécie de herança, que alcança bilheteiros, trabalhadores de serviços e quem mais espiar com certa frequência o que acontece dentro de uma sala de projeção. “Não existe vestibular para operador de cinema”, lembra Fernando, que faz questão de exibir à reportagem um trecho do filme Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988).

Rota alternativa

Até que o projecionista monte e exiba o filme, uma seleção é feita pelo programador da sala em questão. No caso da Capital, apenas para citar as do circuito alternativo - são dez no total ,- é preciso manter alguma identidade para atrair o público e não ter conflito entre os títulos. “Porto Alegre tem um circuito alternativo muito privilegiado, proporcionalmente, além de ser a cidade que mais tem salas de cinema por espectadores. Fazendo a relação entre sala e habitantes, nosso circuito é o mais generoso”, destaca Marcus Mello, programador da Sala P. F. Gastal, na Usina do Gasômetro.

Por outro lado, o programador do Cine Santander, Glênio Póvoas, pensa que está cada vez mais complicado programar uma sala de cinema. “Os custos de distribuição são tão elevados que, às vezes, chegam a patamares que não damos conta”, lamenta. Quanto ao retorno de público ou bilheteria, Póvoas concorda com a pluralidade de opções, o que também ajuda a dispersar espectadores. “Porto Alegre tem muita sala alternativa e uma concentração muito grande no Centro da cidade”, conclui. Por isso, a sala procura apostar em pequenas mostras, entre outros eventos, como festivais de cinema, que também costumam ser exibidos no espaço.

Enquanto a programação das salas comerciais geralmente é pautada pelo mercado e pelo que as majors oferecem, as salas alternativas procuram outros requisitos, dependendo do perfil que pretendem apresentar.

No caso do Guion Center, o formato da grade assumiu essa identidade pela dificuldade em adquirir determinadas cópias comerciais. Mesmo assim, o diretor do local mostra restrição ao termo: “Nunca quis exibir filmes de um só gênero. Mas acabei enveredando para um tipo de filme mais alternativo, palavra muito ruim para qualificar o que é extremamente comercial em seu país de origem”, afirma Carlos Schmidt.

Outra sala que mantém um conceito forte é a P. F. Gastal, que procura dar destaque ao cinema brasileiro e latino-americano, além de trabalhar com a formação do público, dirigida a estudantes da rede municipal, como explica Mello: “Também damos espaço à cinematografia chamada periférica, que está à margem do cinemão americano, que ocupa quase 90% do mercado”. O programador pensa que uma sala pública tem que ser espaço de divulgação de outro tipo de cinematografia, como as produções europeias e orientais, por exemplo.

Na verdade, não existe propriamente uma data que marque o início da função no circuito alternativo, explica o crítico de cinema Hélio Nascimento. “O termo programador de cinema alternativo está diretamente relacionado a salas especializadas em uma programação selecionada. Mas, atualmente, o conceito de cinema de arte perdeu um pouco de sua força, mas ainda é uma referência e território de resistência.” (PP).

Texto e imagens reproduzidos do site: jornaldocomercio.com

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