terça-feira, 30 de outubro de 2018

Acervo da antiga Cinédia

Alice Gonzaga e Bebel Assaf, filha e neta do fundador da Cinédia  
Foto: Vânia Laranjeira

Publicado originalmente no site Cultura RJ, em 19.07.2011

Preciosidades do cinema, num casarão na Glória

Acervo da antiga Cinédia é acalentado pela família de Adhemar Gonzaga, seu fundador

Sempre que vai à Feira de Antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio, a pesquisadora Alice Gonzaga se ressente com um anacronismo. "Olho para o chão e vejo, estendidas, imagens de pessoas com quem eu convivia", diz, sobre as fotos antigas oferecidas para venda, acrescentando que, dia desses, flagrou a si própria, ainda menina, num dos registros.

Desde os 6 anos de idade, Alice, hoje com 76, dedica-se a resguardar dos efeitos do tempo imagens importantes para a memória cultural do Brasil. Filha do jornalista e cineasta Adhemar Gonzaga, fundador da mítica Cinédia? nada menos que o primeiro estúdio cinematográfico do país -, ela preserva, num casarão histórico no bairro da Glória, parte essencial da cinematografia brasileira, além de registros raros do começo do século passado que lançam luz a produções de outros países.

"A maioria das pessoas pensam que só guardamos material da Cinédia. Mas a parte mais preciosa do nosso acervo são fotografias e documentos de produções alemãs, dinamarquesas americanas e francesas das décadas de 1920 e 1930. Temos aqui imagens que não existem mais em seus países de origem, porque foram destruídas pela guerra", conta.

O "aqui" refere-se à casa na Rua Santa Cristina que, rebatizada com o nome Cinédia, abriga há três anos os arquivos que antes habitavam os estúdios de Jacarepaguá. Por lá estão guardados equipamentos que testemunharam as primeiras filmagens brasileiras; fotos, cartazes, contratos e documentos de filmes de diferentes fases e estilos do cinema nacional; cerca de 40 fitas de obras produzidas pela Cinédia original. Mas não apenas isso. Colecionador voraz desde a infância, Adhemar Gonzaga preservou em seus arquivos um vasto material sobre o cinema e a cultura ao redor do mundo, o que inclui desde recortes de jornal até fotos que recebia divulgando produções estrangeiras. Alice herdou a mania do pai, e continua engordando os arquivos, que contam com mais de 250 mil imagens.

Em família

Além da abrangência do acervo da Rua Santa Cristina, o que surpreende no trabalho atual da Cinédia é o caráter familiar que o sustenta. Fora Alice, trabalham no arquivo duas de suas filhas: Bebel e Maria Eugênia. Juntas, as três administram e cuidam do acervo, rejeitando qualquer possibilidade de abri-lo a parcerias públicas ou privadas.

"Eu defendo esse arquivo com unhas e dentes. Quero tê-lo sob meus olhos, garantindo sua integridade", justifica a matriarca, ela própria um arquivo vivo. Grandes figuras da cultura brasileira eram, afinal, personagens corriqueiros em sua vida desde o berço. "Eu gostava de ir à costureira com a Carmem Miranda, quando criança. Só lamentava que o caminho fosse tão breve: bastava uma caminhada até a Lagoa, no Edifício Lombardi". Com Humberto Mauro, grande colaborador dos estúdios Cinédia, Alice teve pouco contato. Mas conviveu longamente com o casal Vicente Celestino e Gilda de Abreu. "O Vicente era muito simpático e alegre, não tinha nada daquela tristeza toda de O ébrio. Mas a Gilda era muito mandona. Foi ela que segurou a carreira do Celestino, era a cabeça do casal", conta.

Sem qualquer patrocínio, a Cinédia atual tem a base de sua receita na venda de reproduções de fotos e de trechos de filmes. "Na internet há bastante coisa, mas a qualidade não é a mesma", justifica. Há 1 ano, duas salas do casarão são usadas para cursos, que vão da música aos quadrinhos. O acesso ao acervo, porém, acontece de forma mediada. Quem descreve é a própria Alice: "Os pesquisadores devem me procurar, explicar o objetivo da pesquisa e eu mesma separo o material. Infelizmente, isso é pago, de acordo com o volume de informações envolvidas. Afinal, precisamos manter essa casa".

O rigor nos procedimentos possivelmente afasta candidatos à pesquisa, a própria Alice admite. "Sou chata", diz, bem-humorada. Algumas pessoas acabam conquistando, porém, regalias. É o caso do escritor Ruy Castro, que recorreu às raridades do acervo quando escreveu a biografia de Carmen Miranda. "Meu sonho é convencê-lo a escrever agora a biografia do Adhemar Gonzaga", revela a pesquisadora, que acalenta o hábito de chamar o pai e as filhas pelo nome próprio. "Precisamos zelar pelo profissionalismo", justifica.

Mas há outros sonhos que Alice enumera. Um deles é conseguir digitalizar os filmes feitos pela Cinédia. Há pouco tempo, cinco deles foram restaurados, graças ao apoio da Petrobras. "Queremos restaurar outros, mas preciso recobrar o fôlego. Os laboratórios no Brasil têm um processo muito demorado. Às vezes eu penso se não seria mais fácil fazer esses restauros em Amsterdã", brinca.

Outro sonho é criar um Museu do Cinema. E convencer algum carnavalesco a transformar em samba-enredo o filme Alô, alô Carnaval. "Cada número musical seria uma ala", imagina.

Juliana Krapp

Texto e imagem reproduzidos do site: cultura.rj.gov.br

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