quinta-feira, 21 de julho de 2016

Projecionistas resistem ao tempo e declaram seu amor ao ofício


Projecionistas resistem ao tempo e declaram seu amor ao ofício.
Escrito por: Tiago Faria e Yale Gontijo.
Fonte: Correio Braziliense.

Nas sessões de cinema, eles estão à sombra do espetáculo. É uma profissão sem muitas glórias — que, aos olhos do espectador mais desatento, pode parecer apenas a aplicação de uma técnica. Mas, apesar de ameaçado pela invasão da tecnologia digital, os projecionistas à moda antiga resistem no circuito de Brasília. Talvez sem o romantismo de Alfredo, o inesquecível personagem de Cinema Paradiso, eles tratam o ofício com um misto de dedicação, rigor e, finalmente, prazer pela arte.

Em alguns casos, são cinéfilos de longa data. Por vezes, simplesmente devotam aos filmes um carinho espontâneo, até mesmo inocente. Vigiam a película — esse bicho em extinção — com familiaridade, primeiro na montagem dos rolos de longas-metragens e depois no acompanhamento de cada exibição, para evitar escorregões. Ainda assim, acidentes acontecem — e é aí que o público finalmente percebe a existência de um profissional silencioso no comando do show. O Correio conta as histórias cinematográficas de Carlos Camurça, Almerinda Soares, Salustiano Gomes e Edson Martins.

Arte em dupla.

Salustiano Gomes, 40 anos, testemunhou o fim de um dos últimos cinemas de rua da capital federal. O Cine Bristol oferecia cerca de 600 lugares no Setor de Diversões Sul quando ele começou a trabalhar lá em 1994. No começo, servia drinques no bar anexo à sala de projeção. Apesar das gorjetas gordas, cismou que deveria aprender as artimanhas do ofício tão antigo quanto a criação da sétima arte. No começo era só observador, mas depois passou a regular com as próprias mãos o toque na película cinematográfica. Recebeu com surpresa a notícia da demissão de todos os funcionários do Bristol, que aconteceria no dia seguinte. Trabalhou algum tempo como fiscal da Viplan. Mas o gosto pelo cinema acabou tomando conta de Salustiano. “A gente tem de gostar do que faz”, resume Salu, como é chamado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) onde trabalha hoje ao lado do colega, Edson Martins, 34 anos.

Os dois são responsáveis pelo único cinema de arte de Brasília. Por ali, o vilão é o tempo. Não aquele que causa ansiedade e o estresse por ter de cuidar de várias projeções simultaneamente, mas tempo que provoca o desgaste das películas e deixa em apuro cópias que um dia foram perfeitas. “Nós temos uma responsabilidade tremenda aqui. Em geral, exibimos filmes muito antigos. Muitas películas chegam aqui desgastadas”, adverte Martins. “Os espectadores não fazem ideia do que acontece aqui dentro”, suspeita o projecionista sobre o trabalho dentro da cabine de projeção.

Os filmes que Edson exibe hoje são bem diferentes daqueles que costumava exibir no estabelecimento de shopping onde trabalhava anteriormente. Lá eram nove salas para cuidar sozinho. “Aqui é um mamão com açúcar. Uma sala só, menos público”. Vencido o choque inicial ao perceber que havia abandonado a automação para finalmente colocar as mãos em lentes e películas de diferentes formatos, os dois profissionais de vez em quando precisam enfrentar desafios enormes. Os rolos de Stalker, de Andrei Tarkovski, tiveram de ser recolocados em ordem com o auxílio de um DVD do mesmo filme. Detalhe: a cópia estava tão danificada que foram necessários cerca de 50 remendos só nos primeiros minutos do filme.

O contato com a arte de diretores “difíceis”, digamos assim, não é motivo de reclamação. Salu passou a admirar os diretores franceses depois de uma série de exibições de títulos da nouvelle vague. E Edson só perdeu a paciência mesmo com as 11 horas de duração do longa-metragem Evolução de uma família filipina, do diretor Lav Diaz. Naquele dia, o turno foi de 12 horas no total e a lentidão da narrativa desviou a atenção do projecionista. Mas, bom mesmo foi rever os filmes da infância na mostra dedicada ao faroeste italiano no ano passado. “Django, Keoma, O retorno de Sabata, todos esses eu vi com o meu pai na Sessão Bang-Bang da tevê Bandeirantes. Nunca imaginei que projetaria esses filmes”, relembra Gomes. Algo do que reclamar, rapazes? “Não existe curso de formação de projecionista no Brasil. Você tem de aprender com alguém que queira te ensinar”, ressente-se Edson. “Isso aqui é uma profissão para passar de pai para filho. Não dá para passar para qualquer arrogante que tem por aí, não”, avisa Salu.

Quatro por uma.

Quando o relógio indica o início da sessão, uma cena de ação se desenrola todos os dias nos corredores do shopping Liberty Mall, na Asa Norte. Almerinda Soares, a protagonista da história, dispensa dublês para subir e descer escadas, adaptar rolos de películas aos projetores grandalhões, ajudar no som e dar a partida na programação de quatro salas — cujos horários, nos dias mais tensos, calham de coincidir. Nas primeiras horas da tarde, enquanto o outro projecionista não chega para ajudá-la no batente, o corre-corre é tão intenso que a piauiense de 54 anos não consegue ver os longas-metragens do começo ao fim. Se contenta com sessões picotadas, cenas em ordem aleatória, um quebra-cabeça. “Faço a montagem dos filmes depois, na minha cabeça”, conta.

A curto-circuito de imagens não desnorteia Almerinda, que só descobriu filmes quando começou a tomar aulas nas cabines de projeção do Liberty, há 15 anos. Antes, trabalhou por um ano no caixa, cobrando os ingressos. “Hoje moro no cinema, vivo cinema, me alimento de cinema. Só vou para casa dormir. Mas é o melhor dos trabalhos. Eu me divirto”, resume. Se mantém atualizada com comédias românticas, dramas e fitas de ficção científica. Terror, prefere evitar. Recentemente, aprovou Nosso Lar, a fita espírita inspirada nos escritos de Chico Xavier. “Gosto quando o filme mostra coisas que eu nunca vi”, afirma. Em casa, prefere os DVDs de música. No aconchego, cinema dá sono.

Quando dois projetores digitais foram instalados no Liberty, temeu perder o emprego. “E eu ia ficar em casa fazendo o quê? Lavando prato?”, comenta. “Aí descobri que o projetor digital também precisa do dedo humano”, conta. Na cabine, teto baixo, Almedrinda se posiciona no canto da parede. Não adianta gritar de dentro da sala, pedir para aumentar o som: lá em cima, só se ouve a trilha do filme, transmitida por um pequeno amplificador. O ruído do projetor, como o de uma máquina de costura, não é dos mais confortáveis. Mas isso ela releva. “São 15 anos com esse barulho na cabeça”, observa. Os projetores digitais, em comparação, soam mais silenciosos. “A tecnologia vai melhorar nosso trabalho. Ela chega, entra na nossa casa, vem para ficar”, admite. Sem nostalgia.


Texto reproduzido do site: fndc.org.br

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